quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


26 de fevereiro de 2014 | N° 17716
MARTHA MEDEIROS

O fim do “aqui entre nós”

Enquanto assistia à novela, você comparou a atriz ao Coringa por causa da plástica que ela fez na boca. Ao ver a foto de uma socialite no jornal, comentou que aquilo não era um penteado, e sim uma vingança do cabeleireiro. Num bar, deu uma zoada no garçom assim que ele se virou de costas: é a cara do Bart Simpson! A dona de olheiras profundas que é amiga da amiga da sua amiga não escapa de uma piadinha em off. Você não se conforma: por que a Teca continua usando aquela camisa azul-turquesa acetinada? E não acreditou no microtamanho do biquíni da vizinha de praia. Ela não tem espelho em casa?

Sei que você é boa gente e que jamais negaria um emprego ao garçom com cara de Bart Simpson, que ama de paixão a amiga que usa camisa azul-turquesa e que convidaria a vizinha fora de forma para ser madrinha do seu filho. Você sabe que as pessoas valem pelo que são por dentro. Você tem plena noção de que aparência não determina caráter, inteligência, talento, importância. Você não é burra. Você apenas pega no pé de vez em quando, como todo mundo.

Nenhum de nós passaria incólume por um “microfone aberto”. Falar mal faz parte da natureza humana, mas quem quer saber de absolver humanizações quando se pode ser o paladino da justiça? Todas as pessoas são terríveis e preconceituosas, menos você, não é assim?

É bem ilustrativo o caso da professora de uma universidade carioca que teve a infeliz ideia de fazer uma foto de um sujeito na área de embarque do aeroporto vestindo bermuda e camiseta regata, publicando-a no Facebook com a seguinte legenda: “Aeroporto ou rodoviária?”. Bastaram essas três palavras para ser afastada do cargo e sofrer um linchamento moral por internautas que não perdoaram a indelicadeza do registro.

Não defendo a postagem de fotos de desconhecidos no Face – aliás, não defendo nem a de conhecidos. Não considero elegante a atitude da professora, ainda mais que o rosto do sujeito foi exposto. É possível que venha a ser processada por ele: não foi uma crítica ao pé do ouvido, e sim pública. Não dá. Não pode. Que o cara se sentisse ridicularizado, era de se esperar, mas a reação exagerada da coletividade evidencia uma certa hipocrisia. A professora foi massacrada por todos os anjos do universo que jamais fizeram um comentário jocoso em suas vidas.

Particularmente, acho que homem de camiseta regata, só se for salva-vidas. Questão de gosto, opinião que se compartilha entre risadas com meia dúzia de amigas. Era o que a professora imaginava estar fazendo, sem considerar as consequências dessa nova sociedade em que nada mais fica “entre nós”, tudo fica entre todos. Ninguém deve humilhar ninguém, e ela o fez, mesmo que num impulso zombeteiro, sem intenção de que repercutisse fora da sua turma. Foi ingênua. Que sirva de exemplo para todas as postagens indevidas em redes sociais. Não existe mais piada interna.



domingo, 23 de fevereiro de 2014

ANTONIO PRATA

A pátria de ponteiros

Quando o brasileiro diz 'tô chegando!', em quanto tempo, exatamente, o brasileiro chega?

Numa demonstração de abertura e inequívoca coragem, Fritz pediu uma feijoada. Eu comentei que, aparentemente, ele não estava tendo dificuldades de adaptação. O alemão disse que não. Por conta do seu trabalho --instala e conserta máquinas de tomografia computadorizada--, viajava o mundo todo. A única coisa que lhe incomodava, no Brasil, era nunca saber quando as pessoas chegariam aos encontros. 

O problema era menos o atraso, confessou, do que nossa dificuldade em admiti-lo: "O pessoa manda mensagem, diz tô chegando!', eu levanta do minha cadeirrra e olha prrro porrrta da restaurrrante, mas pessoa chega só quarrrenta minutos depois". Então me fez a pergunta que só poderia vir de um compatriota de Emanuel Kant: "Quando a brrrasileirrro diz tô chegando!', em quanto tempo brrrrasileirrro chega?".

Pensei em mentir, em dizer que uns atrasam, mas outros aparecem rapidinho. Achei, porém, que em nome de nossa dignidade --ali, naquela mesa, eu era a "pátria de ponteiros"-- o melhor seria falar a verdade: "Fritz, é assim: quando o brasileiro diz tô chegando!' é porque, na real, ele tá saindo". Tentei atenuar o assombro do alemão: veja, não é exatamente mentira, afinal, ao pôr o pé pra fora de casa dá-se início ao processo de chegada, assim como ao sair do útero se começa a caminhar para a cova. É só uma questão de perspectiva.

"Mas e quando o pessoa diz tô saindo!'?" Expliquei que as declarações do brasileiro, no que tange ao atraso, estão sempre uma etapa à frente da realidade --são uma manifestação do seu desejo. Se a pessoa diz que está chegando, é porque tá saindo, e se diz que tá saindo, é porque ainda precisa tomar banho, tirar a roupa da máquina e botar comida pro cachorro.

Fritz ficou pensativo. Uma morena entrou no bar e percebi certa reverberação nos hormônios teutões. Era a chance de mudar de assunto, mas eu havia sido mordido pela mosca da sinceridade e resolvi ir até o fim: revelei que, além do "tô chegando!" e do "tô saindo!", ele teria de aprender a lidar com "chego em 15!" e "cinco minutinhos!".

"Chego em 15!" é sinônimo de "tô chegando!": quer dizer que o patrício está saindo. Quinze minutos é o tempo mágico que o brasileiro acredita gastar em qualquer percurso --a despeito da experiência, da Sulamérica trânsito e do Waze. Da Mooca pra USP? "Chego em 15!" De Santo Amaro pra Cantareira? "Quinze!" Mais uma vez, não é propriamente mentira. Se pegássemos todos os faróis abertos e todos os carros saíssem da nossa frente, em tese, vai que...?

Já o "cinco minutinhos!" é um pouco mais vago. Pode significar tanto que o brasileiro está a cem metros do destino quanto a 27 quilômetros. Às vezes, cinco minutinhos demoram muito mais do que quinze, mais do que uma hora: há casos, até, menos raros do que se imagina, em que a pessoa a cinco minutinhos jamais aparece.


Fritz ficou olhando o chope, contemplativo, imaginando, talvez, na espuma branca, a tomografia multicolor desses cérebros tropicais. Senti que, agora sim, era o momento de mudar de assunto, de mostrar ressonâncias, digamos, mais magnéticas do nosso país. Chamei o garçom. "Chefe, a gente pediu uma feijoada, já faz um tempinho..." "Tá chegando, amigo, tá chegando!"
JOSÉ SIMÃO

Carnaval! Só Como na Rua!

O Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Piadas Prontas: "Pato só vai estrear daqui a um mês em ALAGOAS". "Americana presa por não ter entregado filme que pegou há nove meses na locadora". Nome do filme? "A SOGRA". Presa por não devolver a sogra! Passar nove meses com a sogra ou é sequestro ou é muito amor! Rarará.

E o técnico da Argentina: "O pior inimigo da Argentina na Copa é....". O BRASIL? Não, ele disse que o pior inimigo da Argentina na Copa é a própria Argentina! Isso que é ego! Final da Copa: Argentina x Argentina.

Grande final da Copa 2014 no Maracanã: Argentina x Argentina! E o juiz vai ser o Maradona. E todo mundo vai gritar: "Não meta o nariz onde não é chamado". Rarará!

E argentino dorme em beliche. Ele dorme embaixo e o ego em cima!

E o chargista Rico diz que o Genoino e o Zé Dirceu vão juntar as vaquinhas e fazer uma Cow Parade! Cow Parade na Papuda! A "cow" do Genoino é a de camisa rosa. Rarará!

E atenção! Faltam cinco dias inúteis para o Carnaval. A Grande Festa da Esculhambação Nacional! E eu vou passar o Carnaval em Curitiba. De blusa de lã! E chovendo! Rarará!

Ou então em escola de samba mineira: as passistas são de fora, o mestre-sala dança no Municipal e o mestre de bateria dá aula no conservatório. Uma explosão de desânimo! Rarará.

E recebi o e-mail de um amigo baiano: "O Carnaval tá quase acabando e você não veio!". E paulista é tão "workaholic" que tem carteiro na segunda-feira de Carnaval. Ao som de britadeira! Trio elétrico de paulista é britadeira! Rarará!

E os blocos de Carnaval! Fui convidado pra ser padrinho do bloco da Tijuca: Já Comi Pior, Pagando!. Isso não é um bloco, é uma verdade insofismável!

E do Maranhão: Chupa, mas Não Morde. Deve ser da família Sarney. Ops, me enganei! A família Sarney chupa e morde! Rarará!

E direto de Floripa: Baiacu de Alguém. Ainda bem que é de alguém! E em Búzios, uns coroas fizeram o bloco Os Tremendo. Rarará!

E direto de Olinda: Só Como na Rua. Mas pelas fotos das folionas, é melhor comer em casa mesmo! Rarará! E do Rio: "É Mole, mas é Meu!". O cúmulo da autoestima! Rarará!

Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


19 de fevereiro de 2014 | N° 17709
MARTHA MEDEIROS

Amores ideais

No filme A Garota Ideal, de 2007, o ator Ryan Gosling vive um cara tímido e introspectivo que compra uma boneca inflável, dá a ela o nome de Bianca e começa a tratá-la como a uma namorada de verdade. Cega, surda e muda, mas com um corpo, ele a leva para passear e a apresenta aos colegas, deixando todos perplexos com esse delírio.

Em determinada cena, uma vizinha, entrando no jogo do rapaz, presenteia a “namorada” dele com flores de plástico, deixando-o comovido: as flores durariam para sempre, como Bianca. Em sua cabeça, ele havia conquistado uma relação eterna, à prova de realidade.

Corta para o excelente Ela, filme em cartaz com Joaquin Phoenix vivendo um recém-divorciado que, solitário e carente, se apaixona pela voz de um sistema operacional – outro absurdo, mas é isso mesmo que acontece: ele fala com um smartphone através de um serviço de inteligência artificial que faz parecer que há, de fato, uma pessoa real batendo papo com o cara.

Dessa vez, não há um corpo, mas há uma voz feminina que pergunta, responde, conversa, faz declarações de amor, discute a relação, faz sexo por telefone, dá toda a pinta de que é humana – só que é outra “garota ideal” que não existe.

Em ambos os filmes, os protagonistas tratam as suplentes como gente: um leva a boneca para as refeições à mesa com a família, o outro leva o aparelho tagarela para um piquenique com um casal de amigos. A diferença entre os filmes é que, no primeiro, todos ao redor estão conscientes de que aquela maluquice é um caso isolado. Já em Ela, a situação é considerada normal, corriqueira até. Não duvide: em muito pouco tempo, estaremos namorando smartphones e quiçá casando com eles.

Se, no primeiro filme, o protagonista é um desajustado, no segundo é um homem sensível, romântico, que está apenas atravessando uma fossa e encontra na tecnologia uma forma aparentemente menos sofrida de se relacionar. Porém, havendo idealização, sempre haverá a dor da perda – mesmo entre um homem e uma máquina. A única forma de manter uma relação sem brigas, ciúmes e desencantos é não se envolvendo emocionalmente. Ou seja: quem almeja um romance perfeito, que abrace de vez a solidão, a única candidata à altura do projeto.

Parece ficção científica, mas o relacionamento entre pessoas reais e virtuais, que já acontece, não demora será convencional. Esse futuro está logo ali, dobrando a esquina. O artificial e o verdadeiro estão cada vez mais próximos e parecidos. Enquanto isso, o melhor é continuarmos nos virando com amores onde há cheiro, toque, pele, e que brotam e murcham, dois processos naturais da vida orgânica. Ao menos, poderemos guardar deles a lembrança das mãos que acariciaram nossos cabelos e dos beijos de boa noite.


O dia que um smartphone também fizer isso, eu caso.

sábado, 15 de fevereiro de 2014


16 de fevereiro de 2014 | N° 17706
FABRÍCIO CARPINEJAR

Chave do carro

Ao perguntar para o homem se ele quer dirigir seu carro, a mulher se mostra apaixonada. Perdidamente interessada.

É um pedido implícito de namoro.

Ninguém está bêbado, estão se conhecendo, sóbrios das palavras e sussurros, e ela concretiza esta prova de amor.

Entrega a chave sorrindo, como se fosse um prêmio de loteria federal.

Não é uma artimanha da sedução, um teste para ver se ele dirige bem ou não, para classificar ou desclassificar o sujeito.

O pretendente talvez seja um péssimo motorista, um barbeiro, com mais de 20 pontos na carteira, nada mudará a natureza da declaração.

Ela não se preocupa com o que vai acontecer, porque dentro dela já aconteceu. Não há acidente que interrompa a escolha de seu coração.

Quando uma mulher oferece seu carro — e só a mulher —, é que ela se entregou para a história.

É quando duplica sua alma. É quando se confessa vulnerável. É quando se anuncia disposta a construir uma vida a dois.

É mais do que um “eu te amo”, é um “não tenho mais reservas com você, não tenho mais segredos, não tenho mais medo”.

Ela vem a dizer que aquilo que é dela é também dele. Ela vem a dizer que ele pode guiá-la, que pode cuidá-la, que pode levá-la para o mau caminho, tanto faz o fim, pois chegaram ao destino no momento em que se encontraram.

A chave do carro é mais importante do que a cópia da chave do apartamento.

Porque o carro não é o mundo para a mulher, como é para o homem. Não é aventura para a mulher, como é para o homem. Não é ostentação para a mulher, como é para o homem. Não é um investimento e senha bancária para a mulher, como é para homem.

Na perspectiva feminina, o carro é extensão de sua personalidade, conquista afetiva, intimidade. É seu quarto, seu guarda-roupa, seu salão de beleza móvel.

Ela não tomará a atitude intempestivamente. Foi um gesto pensado, ponderado, maduro.

Alcançará o posto como um convite psicológico para que ele assuma o ponto de vista dela.

É o equivalente a “ponha-se no meu lugar” e “olhe por mim e através de mim”.

Não tem machismo envolvido, não é fraqueza educada. Trata-se de um sinal de confiança.

É um ato de muita coragem, um mergulho consciente nas inconsequências da paixão.


Talvez conte com seguro do veículo, mas dificilmente terá seguro para cobrir o relacionamento. E ela não se importa.

16 de fevereiro de 2014 | N° 17706
MARTHA MEDEIROS

Woody Allen vs. Mia Farrow, ainda

Nem uma, nem duas, mas oito pessoas me enviaram e-mails exigindo que eu me posicionasse sobre a acusação de que Woody Allen abusou sexualmente de uma filha adotiva quando esta tinha sete anos. Isso mesmo, eu, que não sou irmã, prima, esposa, advogada, terapeuta, amante ou vizinha do Woody Allen, senti como se me jogassem tomates em plena rua. E agora, o que você nos diz sobre seu ídolo, hein, hein?. Me chamaram para a briga.

Não deixo de admirar os filmes do Polanski mesmo ele tendo sido acusado de abuso sexual, nem deixo de me emocionar com a obra de Picasso mesmo sabendo que ele tinha um caráter peçonhento, e não vou deixar de reverenciar a filmografia do Woody Allen mesmo que um dia se comprove sua depravação – da qual sigo duvidando. Mia Farrow, sim, é que não me parece de confiança.

Estou sendo tendenciosa? Ora, estou sendo hiper, super, megatendenciosa, pois é incômodo acreditar que um sujeito com capacidade de transformar neuroses em tiradas geniais, um homem que extrai o melhor de seu elenco, que é fiel à sua equipe técnica, que ama o jazz, que não se deixa bajular por tapetes vermelhos, que deu ao mundo filmes como Manhattan, Hannah e Suas Irmãs, Crimes e Pecados, Match Point e tantas outras obras-primas, vá ferrar com a vida de uma garotinha. É a palavra de um contra o outro, então me dou o direito de escolher de que lado ficar.

A questão é pessoal, familiar e intricada. Allen leva sobre os ombros as acusações de ter seduzido a jovem Soon-Yi, adotada por Mia Farrow e o ex-marido dela, André Previn. Segundo Allen, ele e Soon-Yi nunca tiveram relação de pai e filha nem mesmo moravam sob o mesmo teto (ele e Mia moravam em casas separadas e a moça morava com a mãe). O romance vingou e estão casados até hoje, e lá se vão uns 20 anos – não era um capricho, como se vê. Mas foi suficiente para deixar a ex-esposa ferida em seu orgulho e a opinião pública disposta a julgar o diretor sem atenuar nada.

Será Woody Allen um tarado, um pedófilo, um cara que deveria estar atrás das grades? Não acredito, mas tudo pode nesse mundo maluco. Ainda assim, devemos deixar de admirar o trabalho daqueles que não vivem com retidão? Se um presidiário escrever uma emocionante peça de teatro ou esculpir magistralmente, não merecerá reconhecimento pelo que faz pela arte, a despeito do que fez contra a sociedade? Deixo aqui essas perguntas porque não tenho resposta conclusiva para a questão. Mas vale lembrar aquela máxima de Nelson Rodrigues: se soubéssemos o que cada um faz na intimidade, ninguém cumprimentaria ninguém.


Tomara que nenhuma agressão tenha acontecido de fato, mas se aconteceu, sinto muito, não conseguirei gostar menos dos filmes de Woody Allen. Apenas deixarei de cogitar ter um filho com ele – vá saber.

15 de fevereiro de 2014 | N° 17705
CELSO GUTFREIND (INTERINO)

Querido presidente

“Senhor presidente, eu vos escrevo uma carta...”

Canção de Boris Vian

Querido Mujica, me deixa falar assim contigo. Teu modo de governar o Uruguai mostra que o senhor não tem frescura. Usa sandálias, veste, mora, fala, come com simplicidade. Vem propondo uma sociedade mais justa. Então, eu faço um apelo para ti. Antes, vou contar a história de uma luta bonita como a tua.

Sei que pode parecer ridículo, mas o senhor legalizou o uso da maconha. E vai compreender. Fui educado desde bebê a fazer cocô sozinho. Eu tinha pouco mais de um ano. Não foi tarefa fácil. Era preciso reconhecer a necessidade, ajustar os esfíncteres, encarar a solidão. Pior ainda: a pressão de mãe, pai, professora. Só aguentei, porque faziam tudo parecer solene para mim. Eu era um rei diante do trono. Com tal pompa, que em breve estava apegado ao meu cocô. Ele era como o ouro para o ourives, a pedra para o escultor, a maconha para o traficante. Quer dizer, para o maconheiro, porque agora não haverá mais tráfico no Uruguai. Graças à tua sensibilidade.

É para este ser sensível que me dirijo com a mesma simplicidade. Voltando à história, eu estava apegado. O apego, para a criança, é uma tarefa laboriosa. Eu cheguei a ele com muito afeto dos outros e esforço meu. O apego é um desafio enorme, pois logo já é preciso desapegar-se. Despedir-se. O senhor vem se despedindo de mitos arraigados no coração da sociedade. Por isso, é a pessoa indicada para compreender. Meus cuidadores eram que nem tu. E acolhiam. Ensinaram-me a olhar para o cocô. A contar historinha para ele. A cantar: “Adeus, adeus, cocozinho,/Segue em paz para o fundo/Que eu continuo no mundo/A seguir o meu caminho”.

A melodia era a mesma de O Boi da Cara Preta. Eu nunca mais esqueci. Até hoje mantenho (em parte) o ritual. Ganhei peso, altura, amigos, profissão, mulher, filha, mas nunca perdi o apego. Mesmo que a gente mude, tem sempre algo que fica. O senhor é a pessoa certa para me entender, basta ver o esforço em manter a companhia aérea Pluna.

Ainda preciso de tempo antes que o cocô voe. Ou afunde. Claro que o aeroporto novo de Carrasco está bonito, confortável. E promissor como o teu governo. Mas tem no banheiro um dispositivo automático que faz o cocô desaparecer de repente. Sei que toda privada deseja isto, mas a maioria – exceção para as checas, cada vez mais raras – deixa que a gente ganhe tempo, se despeça, se desapegue.


Querido Mujica, eu agradeço pela atenção. A carne do teu país está cada vez mais suculenta. E barata. Não pretendo comer fruta nos próximos dias. Portanto, aguardo sem pressa a volta das privadas antigas e simples como tu. Despeço-me com carinho. Lentamente.

15 de fevereiro de 2014 | N° 17705
NÍLSON SOUZA

Que país é este?

Amiga que mora em Londres me passa repetidos WhatsApps de pavor:

– O que está acontecendo aí? Que loucura é essa?

Num dia, ela vê a BBC mostrar cenas de pancadaria no centro do Rio, entre policiais e manifestantes anti-Copa. No outro, os jornais locais exibem a foto de um adolescente nu e ferido, acorrentado a um poste por justiceiros. Por telefone, ela fica sabendo que os porto-alegrenses passaram 15 dias sem ônibus e enfrentam uma onda de calor sem precedentes. E toma conhecimento da morte do cinegrafista atingido pelo rojão criminoso. Não passa dia sem que ela veja uma barbárie made in Brazil na imprensa londrina e nas redes sociais. Mas o que mais a espanta são as minhas respostas:

– Tá tudo bem. Já vai passar. Faremos uma Copa bonita. Pode voltar, querida!

Escrevo e me sinto o próprio conde Afonso Celso, aquele que escreveu em 1900 um livreto tão polêmico quanto inesquecível: Por que me Ufano de Meu País. Nessa obra, o mineiro, que foi poeta, escritor, político e fundador da Academia Brasileira de Letras, enaltece as potencialidades do Brasil de uma forma verdadeiramente ufanista. Da extensão territorial à miscigenação racial, passando pelas belezas naturais e pelas riquezas minerais, tudo é maravilhoso na visão do nosso imortal. Ele chega a dizer, no seu estilo rebuscado: “Deveis agradecer todo dia a Deus o haver Ele vos outorgado por berço o Brasil”.

Menos, conde, menos.

Mas o livro teve uma grande utilidade. Colocou no vocabulário nacional o termo ufanismo, que entrou definitivamente para o cotidiano do país durante o regime militar e solidificou-se com a conquista da Copa de 1970. “Pra frente, Brasil”, “Ninguém segura este país”, “Ninguém segura a juventude brasileira”. Eta, nóis!

Afonso Celso é trisavô de Dinho Ouro Preto, que vem a ser o vocalista da banda Capital Inicial. O título desta crônica é também o título de uma canção da Legião Urbana cantada por Dinho, que mexe com os jovens e diz o seguinte: “Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado, ninguém respeita a Constituição. Mas todos acreditam no futuro da nação”.

Bah, pior é que eu acredito mesmo. Não me considero ufanista, mas, quando vejo pessoas que trabalham duro, levam a vida honestamente, cuidam de doentes, praticam a solidariedade de forma anônima e se esforçam para educar os filhos, penso que este país tem jeito, sim.

E essas barbaridades que assustam a minha amiga em Londres?


Deixo Chico Buarque responder: vai passar. Ou o Eclesiastes: tudo passa.
WALCYR CARRASCO
11/02/2014 07h00 - Atualizado em 11/02/2014 07h48
 
A história de um beijo

A redenção de Félix, com ajuda de Niko, me fez perceber ali um casal. Era preciso um beijo de amor

Muita gente pergunta sobre meu método para escrever. Sempre respondo: é o caos. Não tenho exatamente um método, escrevo de acordo com minha antena criativa. Que às vezes entorta, confesso. Em outras, ela entra numa sintonia fina, ideal para captar as emoções do público. Confesso: escrever o primeiro beijo gay entre dois homens da televisão brasileira não estava em meus planos originais. 

Eu pretendia, sim, contar a história de um personagem gay que queria ter uma família, filhos. Era Niko, vivido por Thiago Fragoso. Já achava atualíssimo colocar essa questão. Ouvi relatos de gays que tentam o método de fertilização artificial numa barriga solidária (ou de aluguel) para depois, quando a criança nasce, ter de lutar pela posse do filho. Durante a gravidez, a dona da barriga se apega ao bebê e não quer mais entregá-lo. Até porque, nesses casos, as leis não são claras.

Sou um autor que cria e recria a novela enquanto ela está no ar. Mudo a história. Para minha surpresa, o personagem de Félix (Mateus Solano), a bicha má, teve uma enorme aceitação desde o princípio. Venenoso, malvado, mas divertido, Félix caiu na graça dos telespectadores. Não é à toa que meu livro predileto é Os miseráveis, de Victor Hugo. Adoro histórias de redenção. Acredito que o ser humano pode se transformar. É linda essa capacidade de nos transformarmos em outra pessoa. 

Em minhas novelas, a questão da mudança pessoal aparece com frequência. Talvez porque eu mesmo tenha atravessado fases ruins na vida. Houve uma época em que eu era invejoso e amargurado. Superei essa fase por meio de grandes experiências pessoais. Só depois consegui construir uma carreira sólida como escritor. É como sempre digo, a amargura não ajuda ninguém.

A redenção de Félix, em parte proporcionada por Niko, me fez descobrir que lá havia um casal. Um casal com uma trama clássica de novela. Tanto que chegaram a dizer que Thiago Fragoso virou a heroína de Amor à vida. Todos morremos de rir, é claro. Thiago é um grande ator. Na vida pessoal, é casado, tipo pai de família, bem resolvido.

Ele se entregou, sim, ao papel. Isso não tirou de Paloma (Paolla Oliveira) e Bruno (Malvino Salvador) a importância como casal romântico, como as línguas mais ardentes andaram dizendo. Havia um grupo na internet que não suportava vê-los separados. Em todos os capítulos, cronometrava o tempo em que Paloma e Bruno apareciam em cenas de amor, para reclamar a mim se fosse pouco. Eu imaginava: “Se a cena começar com um beijo na cama e durar 20 minutos, aonde vou chegar?”. Com Paloma e Bruno resolvidos, Félix e Niko ocuparam boa parte do espaço romântico. Sou um autor honesto com minhas tramas. O desfecho usual de uma trama romântica é o beijo.

Mas não era uma decisão que eu poderia tomar sozinho. Coloquei a questão para a direção da TV Globo. Expliquei que sentia a necessidade do beijo, como resultado de uma relação. Muitas vezes me sinto muito orgulhoso de trabalhar na TV Globo, e essa foi uma dessas ocasiões. A Globo dá imensa liberdade ao autor. Muitas vezes saem notícias equivocadas, dizendo que a direção mandou fazer isso ou aquilo. É raríssimo. Só acontece quando, por exemplo, o autor cria uma trama que não está na sinopse e é, por coincidência, semelhante a outra que entrará no ar. No caso do beijo, não houve resistência. Só me perguntaram qual seria seu teor. Respondi:

– Será um beijo de amor.

Queria o beijo como algo que faz parte do cotidiano das pessoas. Não o beijo do gueto, com rapazes dançando de sunga ao fundo. Queria dizer que o beijo gay também pode fazer parte de uma vida familiar.

O diretor Mauro Mendonça Filho, o Maurinho, gravou várias versões, é claro. No dia do último capítulo, acordei, ai meu Deus, às 8 da manhã para assistir a elas. A decisão foi unânime. O beijo exibido foi escolhido por todos, Maurinho, Wolf Maya e eu, em conjunto. Foi um sucesso. Soube de prédios que gritavam como se fosse final de campeonato. No último capítulo, incluí também a apresentação de um recém-nascido numa igreja evangélica.


O mundo é para todos, e essa foi a mensagem que eu pretendia transmitir. Quis falar de aceitação. De convivência entre pessoas diferentes. Estou orgulhoso pela reação do público: há uma abertura de consciência no país. O brasileiro é bem melhor do que se fala. O beijo aconteceu, como pedia a trama de Amor à vida. Eu me sinto de alma lavada.

Bom Dia Anjo!
Mais longe

"No mesmo instante em que recebemos
Pedras em nosso caminho,
flores estão sendo plantadas mais longe.
Quem desiste não as vê."

William Shakespeare

By Keyla
LINDO DIA ANJO AMIGO.

Nas pedras e nas estrelas

Apenas tente ser feliz, e um dia,
Quando você estiver dançando em sua felicidade,
Quando seu rio interior estiver fluindo, de repente
A vida não parecerá mais banal.
Em todos os lugares, alguma força
Desconhecida se esconderá,
E você verá Deus nas flores,
Nas pedras e nas estrelas."
(Osho)


Bom Dia Anjo!
A gente cuida.
"Quando a gente gosta, a gente cuida.
Cuida mais do que devia. Gostar é se prevenir do desgosto.
A gente nunca sabe o que é suficiente, a gente vai se doando,
se gastando, sem pedir troco.
A gente gasta mais do que tem e corre atrás para imaginar
o que não viveu, para não fazer falta à memória mais adiante."

By Keyla

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014


A vida pode ser mais leve.
Mais lúdica. 
Se eu não brincasse, enlouqueceria. 
Não posso nem sei ser essa imagem que tanta gente 
congelou a respeito do que é ser adulto. 
Passo longe desse freezer. 
Quero o calor da vida. 
Quero o sonho e a realidade melhor que ele puder gerar. 
Quero alguma inocência que não seja maculada. 
Quero descobrir coisas que não suspeito existirem e, 
que para minha surpresa, 
têm significado para o meu coração. 
Adulta, quero caminhar de mãos dadas, 
vida afora, com a criança que me habita: 
curiosa, arteira, espontânea. 

ANA JÁCOMO


No fim tu hás de ver que as coisas mais
leves são as únicas que o vento
não conseguiu levar: um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento."

_Mário Quintana_

By Keyla

Comunidade
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12 de fevereiro de 2014 | N° 17702
MARTHA MEDEIROS

A conexão perdida

Para se estressar, hoje, não é preciso muito. Basta que a pessoa se hospede numa pousada que não tenha wi-fi, ou que haja uma queda de energia que deixe seu computador paralisado: que desespero ficar sem o Instagram, o Face, o Twitter, o YouTube, o Google.

É chato, eu sei. Mas há uma conexão muito mais séria que está sendo perdida sem que ninguém se importe: a conexão entre causa e consequência, que exige apenas o bom funcionamento dos fios que interligam os neurônios.

Quem viu as imagens do rojão que atingiu o cinegrafista Santiago Andrade durante um protesto no Rio reparou que ele não estava cercado por muita gente, havia um clarão ao seu redor, o que resultou num comentário paralelo à comoção geral: alguns consideraram a tragédia um azarão. Não era para acertar ninguém, foi uma fatalidade.

Que azar, o quê. Não foi azar de quem soltou o artefato, nem azar de quem estava no caminho. Não houve azar ou sorte. Houve, mais uma vez, a falta absoluta de conexão entre causa e consequência, uma relação lógica que entrou em desuso.

Quem lida com material explosivo no meio da rua (ou dentro de um estádio, como aconteceu no ano passado num jogo do Corinthians, na Bolívia) tem que estar ciente de que pode ferir e até matar outros. Quem dirige feito um insano na estrada tem que ter noção de que pode provocar um acidente fatal. Quem depreda um ônibus tem que lembrar que aquele é o mesmo ônibus que o levaria ao emprego no dia seguinte.

Quem se descontrola com gastos estapafúrdios tem que responder pela falta de verba para o essencial. Quem pensa que está fazendo economia ao usar material de baixa qualidade em obras de infraestrutura tem que considerar que poderá haver danos, atrasos e acidentes de trabalho. Quem se envolve com corrupção tem que saber que é um ladrão como qualquer outro, não importa se usa gravata e tem curso superior.

Quem não atende com eficiência vê sumir a freguesia. Quem solta boatos obstrui a comunicação. Quem mente perde a credibilidade. Quem não investe não avança. Quem só cultiva aliados em vez de amigos fica sozinho. Quem não lê não pensa direito. Quem não pergunta tateia na ignorância. Quem mima em vez de educar lega ao mundo seres prepotentes. Quem não entendeu que gentileza gera gentileza acabará sentindo na pele que grosseria gera grosseria.

Mas, em vez de manter conectada essa corrente óbvia entre causa e consequência, o que vemos são políticos governando o hoje como se não houvesse amanhã, manifestantes confundindo consciência com delinquência, motoristas desrespeitando as leis para chegar antes, homens e mulheres procurando resolver seus problemas com imediatismo, sem levar em conta as necessidades e sentimentos dos outros.


Apagão é isso.

sábado, 8 de fevereiro de 2014


09 de fevereiro de 2014 | N° 17699 FABRÍCIO CARPINEJAR
carpinejar@terra.com.br


Liga da justiça

Os homens só confessam seus problemas aos amigos quando a casa caiu, quando o casamento desmoronou, quando o fim está sacramentado.

Nada mais pode ser feito, estão oficializando a notícia.

Os amigos são solicitados para socorrer a fossa, não como prevenção da dor; são requisitados para beber as mágoas: dividir o uísque da solidão, a cerveja do desamparo, o conhaque do ressentimento.

Muito distinto do ritmo feminino, que presta uma consultoria permanente às amigas durante os atritos do casamento.

O homem procura seu amigo para esquecer um amor rompido, a mulher procura sua amiga para salvar o amor em apuros.

Sim, por que você acha que sua mulher discute tão bem, tão senhora de si?

Ela está preparada para a DR, recapitulou o que precisava dizer e como dizer com suas amigas, levantou os pontos negativos e os positivos das exigências, assimilou o contraditório com a versão e experiência de suas confidentes.

Na refrega sentimental, ela antecipa suas respostas, não é verdade?

Ela desarma suas opiniões, não é verdade?

Não fica impressionado com o poder e a velocidade do raciocínio dela, o quanto é adulta e equilibrada, enquanto você, do outro lado, espuma raiva, infantilidade e insegurança?

É que ela teve a humildade de pedir opinião para suas colegas, com o objetivo de evitar injustiças. Formou um ibope das diferenças e das dificuldades e carrega as informações privilegiadas para dentro de sua casa.

Não é curioso que antes de uma conversa séria sua esposa ou namorada tenha saído com as melhores amigas na noite anterior?

Elas treinaram o discurso do qual seria vítima. Vírgula por vírgula. Ponto por ponto.

Sua cara-metade chega para o papo com uma oratória de Angela Merkel, uma firmeza de Oprah. É impossível contê-la.

Compreenda que uma mulher jamais toma alguma decisão sozinha. Ela é uma multidão. Ela é um conselho de leitor. Ela é uma reunião ministerial.

São três ou quatro mentalidades pensando ao mesmo tempo em sua cabeça. É como jogar xadrez com um computador. Não tem chance. O que ela fala é absolutamente lindo, honesto, real, comovente, por várias perspectivas. O que resta fazer é pedir desculpa, mesmo que desprovido de culpa.

Já fiquei abobado em várias DRs, exclamando para mim mesmo: – Como ela domina nosso relacionamento, como tem consciência de tudo!

Minha vontade era cumprimentá-la, elogiar o desempenho, assim como um time juvenil leva goleada de uma equipe profissional e ainda quer autógrafos ao final.


Hoje absorvi a lição. Nunca mais o amadorismo. Não brigo com a minha esposa sem antes consultar meus comparsas Éverton e José Klein. Formamos a Liga de Justiça. Meus improvisos são bem ensaiados.

09 de fevereiro de 2014 | N° 17699
MARTHA MEDEIROS

Conversa por dedução

Sabe a.... a... aquela, você sabe....a loirinha.... prima da.... como é mesmo o nome... aquela que morava na rua atrás do clube... aquele clube que teu irmão jogava futebol com o... tsk, que futebol, o quê. Tênis, jogava tênis! Sabe?

Antes era só com minha mãe que eu conversava desse modo, tentando preencher os pontinhos deixados em branco. Mas hoje em dia tem sido com as amigas também. Entramos na fase da conversa por dedução. E dessa fase não sairemos mais. Não vivas.

Vocês já foram nesse restaurante novo que abriu? Esse que foi matéria ontem no... Vocês sabem, me ajudem, esse que foi superbem comentado pela... Ah, não importa, andam dizendo que é onde se come o melhor linguado ao molho de maracujá. Não: de manga. Linguado nada, eu quis dizer salmão. Salmão ao molho de manga. Isso. Já foram lá?

Completar uma frase tem sido tarefa de adivinhação. Não sei com você, mas eu não consigo mais lembrar o nome de artistas, de filmes, de lugares. Mal consigo dizer corretamente o nome das filhas, e são apena duas. Quem tem três – e acerta – vira meu herói.

É sabido que nosso cérebro está com lotação esgotada. É informação demais para processar, não há como manter o estoque, é preciso jogar no lixo o que não serve mais. Aquela atriz... aquela bonitona... me escapa o nome agora. Pois bem, em sua biografia, ela comenta que, quando esquecemos um nome, o melhor é deixar pra lá e seguir em frente, mais adiante a lembrança retorna espontaneamente. Muito bem. Assim tenho levado a vida, aguardando a volta de palavras que debandaram.

Sim, quero o CPF na nota. É 439136... não, 37... esquece, esse é meu RG. O CPF é 30055082... Calma, acabei de te dar o telefone do meu escritório.

Aguardo a volta dos números também.

Caduquice de velha? Olha: não é. Tenho visto muita criança de 30 anos que também está custando para levar uma frase até o final sem se perder nos “como é mesmo?”. A questão é que estamos sobrecarregados de tal forma que esquecer passou a ser mais comum do que lembrar. E os bate-papos agora são assim, um tentando adivinhar o que o outro está querendo dizer.

Estou indo para Ibiraquera, aluguei uma casa. Falei Ibiraquera? Perequê, Perequê! Fica ali pertinho de... de... Porto Belo, obrigada. Só voltaremos depois do Natal. Depois do Carnaval, isso. Muito tempo, né? Estou levando quatro livros... Esse novo da Fernanda Montenegro... Hein? Torres. Fernanda Torres. Um de um australiano, canadense, uma coisa assim. Um sobre a vida da Jane Fonda. E outro daquele cara que tu gosta, o Stephen... Philip Roth, esse aí. E um monte de palavras cruzadas, prescrição médica.

Jane Fonda, claro. Como é que pude esquecer?



08 de fevereiro de 2014 | N° 17698
NICO NICOLAIEWSKY 1957-2014

Próximo ato: “Até que a Sbórnia nos Separe”

Já parte da paisagem cultural de Porto Alegre, os personagens Kraunus e Pletskaya ganharam versões animadas no filme Até que a Sbórnia nos Separe. Já finalizado e exibido em Gramado em 2013, o desenho animado está em processo de conversão para o sistema de projeção 3D, ainda sem previsão de estreia. Com a morte de Nico Nicolaiewsky, ontem, deve ser definido um novo planejamento para exibição comercial do filme dirigido por Otto Guerra e Ennio Torresan Jr.

A animação, livremente inspirada no espetáculo Tangos & Tragédias, foi gestada, originalmente, com o título Fuga em Ré Menor para Kraunus e Pletskaya. Na trama, que tem roteiro de Rodrigo John e Tomás Creus, a queda da grande muralha que cerca a Sbórnia, terra natal dos personagens Kraunus (Hique Gomez) e Pletskaya (Nico), expõe a fechada sociedade sborniana a um choque trazido pelos ventos da modernidade e pelas pessoas do continente. O embate de culturas é agravado pela ganância de um empresário do continente interessado em engarrafar o extrato da Bizuvin, cujo chá é bebida tradicional na Sbórnia.

A versão convencional da animação já foi apresentada em festivais e mostras. Segundo Marta Machado, produtora do longa, a primeira sessão pública de Até que a Sbórnia nos Separe na versão 3D deve ser em março, no Festival de Cinema de Animação da Holanda.

– É inacreditável o que ocorreu – diz o diretor Otto Guerra – Foi tudo muito rápido. Estávamos planejando a divulgação do filme. Conhecia o Nico há mais de 30 anos, é dele a trilha do meu curta O Natal do Burrinho (1984). O Nico trabalhou com muita dedicação na dublagem e na trilha do Sbórnia. A voz do Pletskaya se destaca porque, na história, o Kraunus não fala. Além do talento musical, ele tinha um timing impressionante, fez muitos improvisos no estúdio – lembra Otto.

“Achei o trabalho fantástico”, disse Nico

Desde o traço, mais tortuoso, com ângulos acentuados, a direção de arte de Eloar Guazzelli buscou dotar Até que a Sbórnia nos Separe de um visual de animação europeia – aproveitando o fato de que a fictícia ilha natal de Kraunus e Pletskaya, embora seja móvel pelos oceanos, tem uma vaga similitude com o Leste Europeu. Nico já havia manifestado mais de uma vez aprovação pelo resultado.

– Achei o trabalho fantástico. Para mim, é muito especial porque, antes de ser músico, uma das coisas em que eu gostaria de trabalhar era com animação. Fazer parte do processo foi mágico – disse ele, em entrevista em janeiro.

Abre aspas

Luciano Alabarse, diretor de teatro, coordenador do Porto Alegre Em Cena e secretário municipal de Canoas

Estive há muito pouco tempo com Nico. Nos encontramos em Canoas, no dia do concerto da Bibi Ferreira de Natal, no qual ele era um dos convidados. Essa morte pega a gente de surpresa, pois é uma perda prematura. Tangos & Tragédias é umas das coisas mais lindas já criadas no Estado. Nico foi um dos maiores compositores gaúchos, com canções geniais. Tem músicas dele que me arrepiam até hoje, como Feito um Picolé no Sol.”

Zé Victor Castiel, ator

Ele era meu amigo de uma vida inteira. Acompanhei o início do Nico no Colégio Israelita. Assisti ao primeiro espetáculo de Tangos & Tragédias no bar do IAB. Eu vinha acompanhando a doença dele, mas não esperava que tivesse um desfecho tão repentino. Nico terá um velório à moda antiga, no qual as pessoas são veladas na sua própria casa.

Vitor Ramil, músico

Foi uma notícia muita dura, porque nós sempre fomos parceiros e amigos. A gente produziu juntos o Pé de Pilão, eu, ele e o Cláudio Levitan, e colaborei com ele no Tangos & Tragédias com participações especiais. Quando comecei a tocar em Porto Alegre, ele tinha o Musical Saracura. Passamos a vida nos cruzando. Ele tinha um talento incrível, sempre com grandes achados, como seu novo trabalho, Música de Camelô. Ele era um artista muito versátil.

Juarez Fonseca,

jornalista

Nunca nenhum artista no Brasil teve tanto tempo de cartaz quanto Nico e Hique em Tangos & Tragédias: todos os anos, tinha temporada no Theatro São Pedro, e todas as apresentações sempre lotavam. Era um espetáculo de 30 anos com grande demanda, inclusive fora do Estado. Nico era uma pessoa muito cordial, sempre disposto a dialogar. Era um cara supercriativo, com várias facetas.




08 de fevereiro de 2014 | N° 17698
NICO NICOLAIEWSKY 1957-2014

Adeus ao amigo

É difícil de escrever este texto, como se, ao não falar a notícia, ela não fosse existir, como se guardar silêncio fosse postergar esta frase fria e tão inacreditável: o Nico morreu! Isso nunca deveria ter saído da minha boca, sempre queria que fosse ao contrário, fosse tu, meu querido amigo e parceiro, que noticiasse aos outros com teu jeito tão sensível, emotivo, poético e com um sorriso no fim, essa notícia que, por estarmos vivos, em algum momento será dita: morreu!

O triste é pensar nos dias futuros quando a ficha for caindo, caindo e a saudade aumentando ao nível do insuportável. O triste é pensar na Nina, tua querida filha, e na harmonia carinhosa e silenciosa que existia entre vocês dois! O triste é ver a Márcia, tua esposa, com seu coração partido e tentando garantir as pontas para que a casa não caia. Tudo é triste, meu amigo, com tua ausência. Ah, se eu fosse um Monty Python, encontraria uma piada para elevar nossa tragédia ao patamar da comédia, mas está sendo impossível.

Me falta aquele teu jeito forte e rápido de transfigurar a realidade numa gargalhada, num riso que acariciava nossa dor e nos transportava para a vida. Falar contigo sempre me acalma, e agora, sabendo que falamos de alma para alma, estás me confortando novamente. E estou cada vez mais seguro de que estamos cada vez mais juntos e que agora somos mais amigos ainda! 

Quis sempre dizer aos quatro ventos o quanto te amava, mas o que iriam dizer? Até tu ficarias constrangido (Ué, o que houve contigo, Levitan, desmunhecou?). Agora vou dizer, te amo, foste mais que um amigo, foste meu irmão, parceiro, alma gêmea... quanta coisa planejávamos fazer... por que tão cedo?

As respostas não cabem ao nosso plano, são de outra esfera e que fiquem nela. Aceitemos os fatos e garantiremos que vamos honrar a tua memória, tão cara e tão grata para nossa cidade que aprendeu a te amar, nossa cidade e o mundo inteiro, inclusive, o mundo de outras esferas! Meus profundos e sinceros pesares para a querida e maravilhosa família do Nico, seus pais, irmãos, esposa 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014


05 de fevereiro de 2014 | N° 17695
MARTHA MEDEIROS

Depois daquele beijo

Quase todas as novelas acabam virando o samba do crioulo doido da metade para o final. Os autores precisam esticar a trama e aí personagens que no início eram interessantes tornam-se patéticos e a história que fazia sentido passa a não fazer mais sentido algum, a lógica vai para o espaço. Salva-se quem tiver talento acima da média, caso de Mateus Solano, que defendeu seu Félix com bravura e humor, virando o grande destaque de Amor à Vida.

Coube a ele e a Thiago Fragoso a cena histórica da tevê brasileira: o primeiro beijo de amor entre dois homens. Quem vinha acompanhando o desenrolar do relacionamento dos personagens Félix e Niko certamente não se chocou. Se houvesse uma palavra para traduzir aquela relação, seria ternura. O oposto de depravação.

Eu não esperava que o beijo ocorresse. Pega de surpresa, meu senso crítico (bem crítico!) em relação à novela desapareceu e me vi emocionada e feliz por todos os homens e mulheres que vivem um amor homossexual, e por seus pais, e por todos nós. Uma nova sociedade começava ali a sair do armário.

Não se pode desmerecer o alcance de uma novela das nove, ainda mais em seu capítulo final. Dezenas de milhões de pessoas assistiram dentro de suas casas a uma realidade que a cada dia se torna menos secreta. Ouvi de alguém uma comparação espantosa: que assim como os telejornais não mostraram as cenas de cabeças cortadas na penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, as novelas também deveriam se abster de mostrar o beijo gay, bastaria uma insinuação. Se entendi bem, o beijo estaria sendo considerado violento.

Os beijos podem ser românticos, eróticos, indecentes (os melhores), mas só são violentos quando acontecem contra a vontade. Afora isso, são detonadores de histórias de amor – ou de ilusões de amor, que seja. A partir deles, sempre começa alguma coisa (o.k., não nesta era de ficações banais, mas permita-me ser nostálgica). Assim como na vida real, os beijos do cinema, do teatro e da televisão ajudam a construir uma narrativa.

E o que a história de Félix e Niko contou foi que homens enamoram-se entre si, sentem ciúme, ficam inseguros, reatam, tudo como ocorre entre héteros. Mesmo ainda não sendo considerados casais convencionais, podem ser tão amorosos quanto. Há alguma obscenidade no amor? Nenhuma. Não há obscenidade nem no sexo, não quando consentido e entre maiores de idade.

Obscenidade é quando a grosseria nos remete ao nosso estado mais primitivo, mais irracional. Não fazemos questão de ver cabeças cortadas na tevê porque nos dói admitir o quanto o ser humano é descontrolado e feroz. Em contrapartida, nunca haverá razão para cortar cenas de afeto que nos façam lembrar o quanto podemos ser doces, estejamos em cena ou simplesmente aplaudindo de fora.


sábado, 1 de fevereiro de 2014


02 de fevereiro de 2014 | N° 17692
FABRÍCIO CARPINEJAR

Porto alegre a pé

Eu voltava das festas a pé com os amigos.

Não tinha nem dinheiro para bebida, muito menos para o táxi.

Não interessava a distância. A ausência de opção resolvia a vida.

Enfrentávamos o perigo com o destemor da cumplicidade.

Ia caminhando com os amigos. Recapitulando as frustrações ou os namoros das reuniões dançantes.

Porto Alegre não é e nunca será uma cidade grande para o adolescente.

A distância se abreviava na conversa à toa, nas descobertas, na expectativa da opinião de meus confidentes.

Já caminhei de Ipanema a Petrópolis, de Cavalhada a Petrópolis. Se eu fosse um carro na juventude, ultrapassava os quinhentos mil quilômetros rodados.

Meus tênis cediam primeiro pelas solas, furavam nas pontas, marcas da herança dos paralelepípedos.

Era impressionante que não me cansava e não reclamava da lonjura. A amizade oferecia, além do fôlego extra, uma distração dos problemas.

Tomava carona nas vozes de meus amigos.

Avançava por ruelas escuras, por bairros apagados. A algazarra superava o medo do assalto. Quem estava perdido por ali é que ficava com medo da gente.

Não há sensação mais agradável do que percorrer a própria cidade ao clarão da lua, acompanhado da turma de sua confiança.

Ouvia os nossos passos nas calçadas, e os pássaros madrugando com seus piares.

A claridade chegava aos poucos, a fome pedia passagem, a felicidade era esperançosa e aguardava o futuro com cheiro de almoço pronto.

Falávamos sem parar, até entrar em nosso bairro.

Naquele momento, estranhamente nos calávamos.

Quatro quarteirões antes do portão de casa, fechávamos a matraca.

Bastava dobrar na rua Carazinho, que não trocávamos mais nenhuma mensagem.

A avenida representava o marco de nosso laconismo.

Sumiam as palavras. Como um código. Como um princípio ético.

Não é que faltava assunto, ou que acabara o filão dos segredos e dos espantos amorosos para serem repartidos.

O silêncio nos preparava para a despedida.

O silêncio, desde aquela época, diminui a angústia da separação.

O silêncio é quando a cumplicidade vira pensamento. É um respeito pela importância do que foi escutado.

É quando começamos a dormir devagar e atravessar a pé os nossos sonhos.


Já os sonhos precisam de solidão. É um trajeto isolado, por mais que tenhamos bons amigos.

02 de fevereiro de 2014 | N° 17692
MARTHA MEDEIROS

A melhor vida possível

Quanto mais converso por aí, mais percebo que é inútil acreditar em verdades absolutas e fórmulas ideais de convivência. Cada pessoa tem familiares que influenciaram suas escolhas, medos herdados e medos adquiridos, sonhos altos demais ou mesmo nenhum, e um número incalculável de perguntas sem respostas, de desejos embaraçosos, de mágoas vitalícias. Quem vai decretar para mim o que é melhor para mim? E quem vai dizer o que é melhor para você? Com que topete?

A melhor vida não é aquela que atende os mandamentos universais, as ordens celestes e os clichês eternizados, mas a que se tornou possível, a que você vem construindo a despeito de todas as suas dúvidas.

A melhor vida seria a da Gisele Bündchen, pensa a menina feia. A melhor vida seria a da Dilma, pensa a vereadora de uma cidadezinha do interior. Enquanto isso, vivem a vida possível, sem perceber o quanto deveriam ser gratas por não precisarem arcar com consequências que desconhecem.

A melhor vida para mim é bem diferente da melhor vida para você. Reúna o planeta inteiro e não se encontrará duas pessoas que planejem possuir a mesma vida, porque uns não querem ter horário para nada, outros se envaidecem de ter suas atitudes comentadas por estranhos, há os que se paralisam à primeira frustração, os que estão sempre inventando novos desafios, e a vida possível de cada um torna-se impossível para os demais, o que não deixa de ser uma piada termos que conviver intimamente uns com os outros apesar desse tabuleiro inesgotável de escolhas e destinos.

Se eu almejar uma vida ideal, terei que me basear na vida dos outros, pois o ideal é fruto de uma racionalização coletiva e consagrada, enquanto que se eu me contentar com uma vida possível, volto a assumir algum controle sobre os royalties das minhas decisões.

O que não impede que ela seja ótima, a mais adequada para o fôlego que tenho, a mais realizável dentro de minhas ambições, a menos sofrida, já que regulada pelo autoconhecimento que adquiri até aqui. Tenho como manejar uma vida possível de um jeito que jamais teria de manejar uma vida perfeita, até porque vida perfeita não é deste mundo, e o sobrenatural é matéria que não domino.

A melhor vida não é a focada em suposições, fantasias, esperas, surpresas e demais previsões que raramente se confirmam. A melhor vida não é aquela que é cumprida feito um pagamento de dívida, como um acerto de contas com nossos antigos anseios juvenis.


A melhor vida não é a que desenhamos quando criança na folha do caderno, a casinha de venezianas abertas, a fumaça saindo pela chaminé e os girassóis protegidos por uma cerquinha branca, e tudo o que isso sugere de proteção e vizinhança com os desejos comuns a todos. A melhor vida possível é aquela que você ainda vem desenhando, mesmo já com algumas pontas de lápis quebradas.