sábado, 31 de dezembro de 2016



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
LYA LUFT

Para não dizer adeus

Publiquei há alguns anos um livro de poemas com esse título, e, porque gosto dele, roubo-o de mim mesma para este artigo. Vivemos, entre perdas e ganhos (pra falar de outro livro, pois livros são o que eu faço), dizendo alô e adeus.

Uma gangorra esta vida, altos e baixos, médio e horrível ou glorioso.

Este fim de ano é para muitos o único momento em que filosofamos um pouco, construindo objetivos, fazendo juras falsas de melhorar aqui e ali, falar mais com os filhos, procurar mais os pais, retomar aquela amizade, pagar aquela velhíssima conta, que pode ser monetária ou emocional, fazer terapia porque andamos muito loucos, ou admitir e curtir essa nossa pequena insanidade porque afinal “eu sou assim e ninguém tem nada com isso”. Prometemos a nós mesmos saber mais das notícias do mundo e do país, pra não sermos tão alienados, ou nos propomos paz de espírito e espaços de alegria, tentando não ver todas as notícias do dia, da noite e da incansável madrugada.

Mas eu aqui falo de outros adeuses e outras perdas: a do tempo, desperdiçado sentindo raiva, inveja, sendo intolerantes, difamando, mentindo, criticando com azedume, passando por cima do outro, esquecendo quem nos ama de verdade, humilhando para nos sentirmos superiores, sendo bobalhões ou cruéis, quando podíamos estar curtindo bons e belos momentos, preciosos na bizarrice dos tempos atuais.

Falo da perda da juventude, que a grande parte das pessoas ameaça, atormenta, sufoca e faz adoecer. Uma amiga minha corria pela sala desesperada, mãos na cabeça, quando fez cinquenta anos: “Como pôde acontecer isso, como pôde?”, e em lugar de curtir a maturidade, em muitas coisas mais gloriosa do que a confusa juventude, sofria uma dor sem consolo, embora fosse uma bela mulher, cheia de energia e esperança.

Outra conhecida tanto começou a se repuxar para enganar o tempo, os outros e a si mesma, que aos sessenta havia perdido não a juventude que se transforma em maturidade e velhice, mas a si mesma: olhava o espelho e nada mais nela era dela. Em alguns anos, por crueldade talvez dos cirurgiões aos quais recorreu em série, parecia uma máscara feia, distorcida, e a gente tinha vontade de sentar ali no meio-fio e chorar. Só restavam nela a voz e os olhos de um cinza singular.

Também damos adeus a pessoas, o que é o pior: as que vão viver longe, as que se desprendem de nós, como acontece porque o afeto ficou ralo demais ou o “longe” chama com muito fervor, passam para um limbo de onde às vezes emergem, como de um nevoeiro, e dói um pouquinho, e pensamos “mas o que será que aconteceu?”. E damos adeus de verdade aos amados que enveredam pelo jardim de neblina e silêncio que chamamos morte, de onde não vão retornar. Uma vez ou outra, parecem nos mandar recados: o som dos passos no corredor, aquela voz, o jeito de falar, de virar o rosto, de estender a mão, de nos olhar.

Com o tempo, tantos adeuses fazem da alma uma espécie de renda – não necessariamente feia, mas intrigante: porque podemos celebrar com espumante ou lágrimas, ou risos bons, o movimento dessa engrenagem de que somos parte, e que, apesar dos adeuses, se chama, mais do que morte, vida.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
PIANGERS

O pouco que sobrou

Quando peço uma mordida de um chocolate ou de um picolé, sei que vai vir choro em seguida. Minha boca é grande demais, e o pedaço que arranco com os dentes deixa qualquer criança revoltada e é uma revolta difícil de conter.

Depois de contida a revolução revoltosa, tento sempre vir com uma moral da história, alguma justificativa para que não haja choro da próxima vez, sempre sem sucesso. Mas o fato é que um pai que não tenta ensinar sempre os filhos não é pai, é vô. Meu papel é, de alguma forma, achar sentido em joelhos ralados, peixinhos que morrem e mordidas grandes demais em picolés.

“Não chore pelo que perdeu, agradeça pelo que sobrou”, digo sempre para minhas crianças chorosas que, coitadas, além de doce a menos ainda têm que ouvir meus sermões. “Olha o quanto ainda tem de doce! Normalmente você não consegue comer o doce inteiro! Não fica irritada com a mordida, agradece que ainda tem doce na sua mão!”, eu digo. Minha filha está tão revoltada que sente vontade de jogar o resto do doce no chão, impulso não atendido porque suas papilas gustativas estão salivando.

O ano não foi fácil, como já disseram, mas eu não posso fazer coro com quem diz que já vai tarde. Tenho que ter alguma coerência e, quando me tiram parte do doce, agradeço pelo que sobrou. Perdi amigos este ano, perdi até um pouco da esperança em um mundo melhor, mas, se eu olhar com carinho pro que sobrou, posso agradecer. Dá uma vontade louca de jogar tudo no chão quando a gente perde algo, mas não é uma decisão muito inteligente.

Teve um ano em que eu quase morri com pneumonia. Conheci uma praia do Nordeste neste mesmo ano. Teve um ano em que minha mãe se acidentou e ficou 15 dias na UTI. Antes disso, eu tinha feito uma viagem de carro incrível. Teve um ano em que quebrei a perna. O mesmo ano em que minha filha nasceu. Acho que, se a gente olha pro que ganhou, aprende que não existe ano ruim. Tem ano difícil, mas tanta coisa boa aconteceu. Por mais complicado que seja, quero valorizar o que sobrou. Mesmo que, às vezes, a mordida tenha sido grande demais.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729 
MARTHA MEDEIROS

Plateia atuante


A vida fica mais estimulante quando aceitamos o convite para interagir, ao invés de nos isolarmos num mau humor crítico

Um amigo, outro dia, conversava com Zé Celso Martinez Corrêa em São Paulo, no Teatro Oficina, quando o dramaturgo perguntou a ele: você é ator? Meu amigo, que é fotógrafo, respondeu: talvez não para seu critério, mas sim para o meu, já que me considero plateia atuante. Zé Celso semicerrou os olhos, demonstrando aprovação à resposta.

Zé Celso é reconhecido por dirigir não apenas peças, mas verdadeiros happenings provocativos, incitando todos a interagir, dançar, gritar, pertencer ao espetáculo. O que me faz refletir sobre que tipo de plateia atuante temos sido, nós que também somos incitados a pertencer a este espetáculo diário da existência.

Em todo momento, entramos em cena para atuar em um enredo que não foi escrito apenas por nós, mas por várias mãos: criação coletiva. Alguém dá uma festa, o chamado é para celebrar e a plateia é você, que pode contribuir para o sucesso do evento circulando, indo para a pista, ou pode permanecer num canto mal iluminado a fim de dedicar-se a comentários ferinos sobre como as pessoas ficam robotizadas pela felicidade obrigatória imposta pelo calendário, sobre como é indecente sorrir quando tantos sofrem, sobre como a virada do ano é um embuste que só visa o consumismo e a ilusão. É o rosno da plateia que se recusa a suspender a descrença.

De fato, ao fim de cada ano somos incentivados a gastar mais do que podemos, a abraçar quem mal conhecemos e a tomar resoluções meio fictícias, já que quem pretende mudar de vida precisa fazer reflexões mais profundas do que simplesmente repetir o mantra “hoje é um novo tempo, de um novo dia”. Mas isso não é motivo suficiente para se afastar do palco.

Em tudo há um quê de farsa. Estamos todos em um grande teatro. Então, resta assumir nosso papel e desempenhá-lo com integridade. A vida fica mais estimulante quando aceitamos o convite para interagir, ao invés de nos isolarmos num mau humor crítico.

Já que está dentro, esteja.

Reze quando diante de um altar, mesmo sendo ateu. Declare-se apaixonado, mesmo sem nenhuma garantia de que haverá amanhã. Diante de um defunto desconhecido, chore do mesmo jeito, pois sempre temos uma morte íntima a lamentar. Ao pegar uma estrada, abra-se para os imprevistos. Disse sim? Então dê o seu melhor para este sim contribuir para o que está à sua volta.

A vida não tem um roteiro determinado. É um happening no gerúndio: vai acontecendo. Ou você se joga e atua junto – e assim aprende, surpreende, colabora – ou assiste a tudo daquela distância segura de quem dá bastante palpite, mas não se envolve com nada.

Boa entrada em 2017.



31/12/2016 e 01/01/2017 | N° 18729
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O TAMANHO QUE TEREMOS

Todas as pessoas, em escalas variadas de ambição e força, procuram conquistar uma posição de significância aos olhos dos seus pares. Excluindo os invejosos, que nunca irão a lugar nenhum, e absolvidos os frouxos e desanimados congênitos, estaremos falando da maioria dos homens e das mulheres deste mundo de inquietudes heterogêneas. É com esses personagens que construiremos a história contemporânea, onde estamos inseridos.

No fim da I Guerra Mundial, havia no País de Gales um pequeno povoado que ficava ao lado de uma elevação, de onde se podia ver todas as cercanias, casas, riachos e caminhos. Os habitantes do lugar se orgulhavam daquilo que chamavam de a montanha da vila.

Um dia, dois cartógrafos passaram pelo lugarejo e, após cuidadosas medições, constataram que a elevação não passava de uma colina, pois o cume não chegava aos mil pés de altura necessários para ser classificado como montanha. A autoestima dos habitantes foi cruelmente abalada.

De orgulho machucado, organizaram-se e, durante muitos dias e noites, homens, mulheres, velhos e crianças, carregaram toda a terra e pedras que podiam transportar e despejaram no topo da colina. A seguir, conseguiram trazer os cartógrafos de volta e, após novas medições, a colina voltou a ser montanha.

Há alguns anos, aqui mais perto do pago, um velho estancieiro soube, no início de uma manhã, que um dos pais de cabanha mais valiosos tinha sido encontrado caído num poço profundo, de onde a retirada era virtualmente impossível.

Sentado na beira do poço, condoído com o sofrimento do fiel parceiro de tantas andanças, ordenou que o sacrificassem, e partiu lacrimejando. Os empregados decidiram que era mais fácil soterrá-lo, mas se surpreenderam ao ver que, às primeiras pás de terra, o cavalo, num esforço enorme, se ergueu, e inconformado, relinchou.

E assim, a cada nova remessa de pedregulhos, ele prontamente sapateava elevando-se do fundo do poço. Os peões, entusiasmados com a reação do velho gateado, aceleraram o processo e, depois de algumas horas, com o espaço aterrado, o garanhão saiu caminhando do calabouço.

É certo que o grau de inconformismo com o tamanho que temos determinará o tamanho que teremos. De certa forma, tal como os habitantes daquele povoado, na nossa vida estamos sempre carregando terras e pedras para fazer da nossa colina a montanha que sonhamos.

E quando tudo parece determinado para que afundemos, encontramos forças, que nem sabíamos ter, para sacudir a poeira e emergir. Uns nasceram para ser grandes, outros se contentam em ser pequenos, mas, no dia em que se encontrarem, eles terão exatamente o mesmo tamanho, por isso não vale a pena se preocupar com as diferenças.

Aqueles que, correnteza acima, ainda conseguem vislumbrar nesta luta cotidiana a oportunidade de melhorar a vida dos mais fracos se justificam. Os outros apenas sobrevivem.

O ano novo vai começar. Decida em que time você pretende jogar. E não se estresse com ameaças de rebaixamento porque, como você deve ter aprendido, os grandes não só caem, como quando se esparramam no chão fazem um barulho danado. Mas conforta saber que é sempre possível recomeçar.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016



29 de dezembro de 2016 | N° 18727 
DAVID COIMBRA

Por que ela tirava a roupa depois do Jornal Nacional?

Depois que minha vizinha tirou toda a roupa e ficou completamente nua, nua de uma nudez fresca e matinal, nua com evidente orgulho de seu corpo em que nada sobrava e nada faltava, em que tudo parecia compacto e, ao mesmo tempo, farto, depois que ela se pôs naquela nudez trombeteante, suas longas pernas a levaram até a janela e seus delgados braços a fecharam num golpe e eu, no edifício em frente, espiando pela persiana, fiquei por um momento paralisado, feliz, sem saber bem em que pensar, sem ligar para o vinho derramado na minha mesa de trabalho, sem ter condições de voltar ao livro que escrevia.

Na verdade, não escrevia. O livro já estava escrito. Ou não. Mais ou menos. Vou explicar.

E agora entro na história paralela às façanhas da minha vizinha, mas que é de importância para você, amigo leitor. Estou falando do livro Diário do Diabo, escrito pelo presidiário Luiz Augusto Félix dos Santos. Ele havia sido preso por todo tipo de crimes, de estupro a assassinato, passando por roubo, assalto e sequestro. Li o prontuário dele, no presídio. Consideravam-no irrecuperável. Mas havia uma assistente social na penitenciária, uma só, para 1,5 mil detentos. E ela o ensinou a ler e a escrever.

Luiz Augusto começou a ler os livros de Sidney Sheldon, entusiasmou-se e decidiu escrever sua própria história. Escreveu-a à mão, com caneta esferográfica, em dois grandes cadernos de espiral. Esses cadernos me foram passados pelo meu amigo Sérgio Lüdtke, que, na época, tinha uma editora de livros. Sérgio propôs que eu transformasse a narrativa obviamente confusa de Luiz Augusto em livro. Foi o que fiz. Tentei preservar a forma como ele contava a história, e acho que consegui. Mas deu um trabalho maior do que se estivesse escrevendo originalmente.

Visitei Luiz Augusto na cadeia. Encontrei uma pessoa... boa. Por Deus. A leitura tinha transformado o diabo que ele mesmo dizia que era em um ser humano confiável.

Luiz Augusto foi, de certa forma, a repetição cabocla de Malcolm X. Preso por arrombamento de casas aqui, em Boston, Malcolm cumpriu 10 anos de reclusão em uma penitenciária de Massachusetts. Nesse tempo, o que mais fez foi ler. Havia uma boa biblioteca na penitenciária e ele bebeu-a quase toda. Saiu de lá transformado. Estava pronto para se tornar quem foi.

Outro que também mudou para melhor na cadeia: Tim Maia. Ele foi preso por roubo nos Estados Unidos. Atrás das grades, convivendo com os negões americanos cheios de malandragem, ele tornou fluente o seu inglês e absorveu o suingue e a manha do soul.

Um terceiro, ainda mais ilustre: Mandela. Antes de ser preso, Mandela achava que poderia salvar seu povo pela violência. Na prisão, compreendeu que o salvaria pela paz. E o salvou.

A prisão pode ser um lugar de regeneração, portanto. Basta que se trate o preso com dignidade. A punição do infrator é o isolamento da sociedade, e ela já é bastante dura. Mais do que isso é crueldade, e a crueldade sempre se volta contra seu autor. Bons presídios não são luxo. São questão de segurança. Da SUA segurança. E é por isso que essa história vicinal à minha vizinha é central para você.

Bons presídios são bons para a sociedade.

A vizinha? Ah, ela dançou durante todas as noites em que escrevi a história de Luiz Augusto. Com uma curiosidade intrigante: tirava a roupa sempre depois do Jornal Nacional. Será que se empolgava com as notícias? Não sei, mas sei que era só o Cid Moreira dizer “boa noite” com sua voz de Velho Testamento e ela ia para a frente do espelho do quarto, fazer strip-tease. Virou regra. Depois de algum tempo, me acostumei. Meus amigos chegavam e eu avisava:

– Olha pela janela agora. A minha vizinha vai tirar a roupa. Eles enlouqueciam. E eu ia para a cozinha, preparar um sanduíche de atum. A rotina tira a cor das melhores fantasias.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016



27 de dezembro de 2016 | N° 18725 
CARPINEJAR

Dê um desconto ao amigo que vive um momento difícil

Não estrague a amizade porque o seu amigo anda chato. É uma fase. Pode ser falta de dinheiro, problemas familiares, um amor doente que ele fracassa em desatar.

Mas cuidado para não tornar definitivo o que é provisório. Ele está chato, não é chato. Rememore o quanto vocês se conhecem, o quanto viveram de cumplicidade e segredos, o quanto superaram adversidades e desilusões.

Não vale a pena sacrificar uma história inteira feliz por um dia ruim. Uma indiscrição, uma grosseria e uma aspereza não significam que tudo foi em vão. Pondere, todo amigo tem o direito de errar e explodir, de incomodar e se desculpar.

Não converta a falta de sintonia passageira em distanciamento permanente. Desfazemos grandes lealdades por bobagens. Transformamos desentendimentos, resultantes de uma crise pessoal, em divergências irreversíveis da relação.

Com uma propensão imediatista, enxergamos somente o período turbulento e desagradável, e esquecemos de reconhecer o companheirismo anterior. Falta-nos paciência para encarar as lamúrias e contextualizar os ataques. No lugar de respirar um pouco e oferecer um desconto, tratamos de responder as agressões com violência.

Dê um tempo para o amigo, afaste-se por uma semana, crie saudade de um mês, porém não destrua os laços em função de uma implicância. Às vezes ele não quer ser ajudado, às vezes não há como socorrer aflições, às vezes ele não desfruta de condições para escutar seus conselhos, às vezes ele ofende jurando que vem sendo apenas sincero.

Deixe estar. Não fique perto, abra espaço para que ele reflita e se acalme, não se apoie na raiva que aumenta o desconforto e intensifica as retaliações. Evite desligar o telefone na cara, controle-se para não cobrar a devolução dos presentes e afetos, silencie antes de estabelecer ultimatos, contenha-se para não misturar medos antigos com os novos e realizar chantagens emocionais, recue no bate-boca, fuja da conta da culpa e, concordando ou discordando, diga que vai pensar e que retornará depois. Por enquanto, feche as janelas e conserve a porta aberta.

Entenda que as melhores companhias nem sempre são boas companhias. A simbiose que existe numa amizade, de um espelhar o outro, de um ser o outro, é perigosa. Quando alguém pretende se destruir, leva junto quem vive próximo. Os confidentes são os primeiros a sofrer maus-tratos.

Amizade é também prever o momento de se retirar para voltar com mais força e amor redobrado.

sábado, 24 de dezembro de 2016



24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723 
LYA LUFT

Essas datas


Nessas datas como Natal, virada de ano e outras, muitos têm olhos mais brilhantes e se sentem mais contentes – ou porque sua crença religiosa lhes confere isso, ou porque vão reunir pessoas amadas, talvez a família ou parte dela que esteja acessível, porque vão dar uma lembrança especial ao seu amor, ou simplesmente porque não dá para viver sempre angustiado.

Nessas datas, eu às vezes decido não escrever sobre elas. Mas acabo escrevendo. Bobagem minha, porque sempre há o que partilhar, ainda que sejam dúvidas. Por que, por exemplo, considerar datas especiais como farsa porque às vezes aproximam pessoas que nem se gostam, ou desculpam em tantas o frenesi do consumo que as deixa endividadas por todo o ano seguinte?

Essas datas não precisam ser festivais de consumismo, especialmente nesta fase de empobrecimento de quase todo mundo. Mesmo quem há alguns meses podia viver sem preocupação (desde que não cometesse excentricidades), é hora de calcular, encolher, recolher grandes impulsos. Passamos dos generosos presentes, dados e recebidos, às “lembranças” – não menos amorosas, pois revelam: “Não posso mais tanto, mas ainda posso te mostrar, lembrar o quanto és especial para mim”.

Essas datas podem ser aprendizado de economia e de afeto. Aprendemos no bolso e no coração que dinheiro não é tudo. É importante fator de segurança, dignidade e liberdade, mas tudo bastante relativo: não nos confere nenhuma nobreza, nem direitos, nem grandeza, nem, menos ainda, isso que chamamos felicidade. Acredito que muitas pessoas bem modestas têm mais chance de se sentirem amadas, acompanhadas, contentes: porque a união as mantém de pé, porque a proximidade, que de um lado propicia mais conflitos, de outro garante abraço e escuta ou um prato de comida compartilhado.

Talvez as épocas de mais penúria sejam boas para nos ajudar a reavaliar isso que chamamos “valores”, palavra que tantos pronunciam de boca cheia e coração vazio, cabeça mais ainda. O que mais vale? O carrão novo ou o filho encaminhado na vida, decente e ainda entusiasmado? O resort nas Bahamas ou poder pagar as prestações da casa modesta mas nossa, e aconchegante? 

Ganhar na Mega Sena ou recuperar a saúde que parecia perdida? Reencontrar o amigo que se afastou (e nem sabemos por quê), ver emoção brilhando nos olhos das pessoas queridas, só porque estamos juntos, esquecendo por algumas horas as rivalidades, as infantilidades, os mal-entendidos e os desentendimentos – e porque afinal ainda estamos aqui, firmes e atentos?

Gosto dessas datas que muitos dizem detestar: aquele telefonema, aquele recado na internet, aquela visita inesperada, aquela boa conversa frente a frente, lado a lado (se filhos ou netos, parece que ontem ainda estavam em nosso colo, mas passam o braço em nossos ombros, nós menores que ele ou ela). Se parceiro ou parceira, renova-se o calor de um afeto talvez antigo.

Essas datas são ainda mais especiais em tempos preocupantes aqui e pelo mundo. Que o Natal nos dê conforto, calor na alma, renovadas risadas, conversas jogadas fora, simples alegria de escutarmos nossas mútuas vozes, e olharmos nos olhos uns dos outros – ou, para quem estiver muito, muito longe, esse telefonema em que se brinca, pra disfarçar na voz a mal contida emoção.


24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723 
MARTHA MEDEIROS

Noel, quero pedir que a gente volte a morrer de morte natural. Só isso

Carta para Papai Noel

Nem acredito que estou escrevendo para um cara que não existe. Mas a vida anda tão louca que uma loucura a mais não causará assombro. Olá, Papai Noel. Beleza?

Nunca escrevi uma carta para você nem quando era criança. Eu contava quais eram os meus desejos para minha mãe, pois ela garantia que tinha os seus contatos e que faria a informação chegar até a sua casa, e eu a considerava uma mulher tão incrível e cheia de poderes que não desconfiava dessa história nem um pouquinho.

Importa é que dava certo. Ganhava o que pedia. Mas eu cooperava, claro. Nunca pedi coisas caras ou difíceis de serem encontradas. A realização de sonhos impossíveis sempre funcionou em contos de fadas, mas não me parecia praticável numa vidinha mundana em Porto Alegre, então tratei, desde cedo, de desejar coisas razoáveis e realistas, sem correr o risco de me frustrar.

Porém, o que venho pedir hoje não é razoável nem realista, então resolvi apelar para o método tradicional fantasioso, que jeito.

Posso chamar você de pai em vez de papai? Fica menos infantil.

Pai, o que eu desejo é... Não, melhor não chamar de pai, vai parecer uma oração. Meu pedido fará um sobrevoo pela Lapônia e não aterrissará em local algum, ficará vagando sobre as nuvens.

Noel (agora sim, bendita informalidade), quero pedir que a gente volte a morrer de morte natural. Só isso.

Não me olhe dessa maneira, eu sei que é Natal, Noite feliz, Jingle bell, não estou querendo estragar o espírito da festa, longe de mim, mas é que pensei, pensei, pensei e não desejo outra coisa.

Morte natural significa a gente morrer bem velhinho (bem mais velhinho que você, relaxe) por pane súbita. Puf. Nada de morrer de desastre de avião por ganância do piloto, nada de morrer por falta de atendimento médico porque o dinheiro que deveria ser aplicado na saúde está na conta de políticos safados, nada de morrer numa embarcação em alto-mar fugindo do próprio país por causa de terrorismo, nada de ficar em seu país e esperar uma bomba cair sobre sua cabeça, nada de morrer na frente da escola do filho ou no estacionamento de um supermercado porque a falta de policiamento transformou a cidade num faroeste, nada de morrer por falência múltipla do Estado. Chega desses abreviamentos estúpidos e injustos. Minha proposta: antes dos cem anos, fica proibido. Depois dos cem, passa a ser facultativo. Fechado?

Dá para imaginar a dimensão do meu estupor diante da precariedade da vida a ponto de eu, uma mulher séria, acreditar que você lerá essas mal traçadas e que nos trará, de presente, mais futuro. Mas, absurdo por absurdo, resolvi arriscar.



24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723 
CARPINEJAR

Sensação térmica da personalidade

Emoções são fatos. Não dá para desprezar como alguém sente uma experiência, ainda que esteja aumentando a importância do ocorrido.

A versão é a verdade de cada um. É o jeito que a pessoa percebeu emocionalmente uma cena. É o que ela pode entender ou aceitar, de acordo com a sua formação, os seus tabus e preconceitos.

Para alguns, mentir sobre a demora na entrega de um trabalho é motivo de demissão. Para outros, é educação. Para alguns, a deslealdade é motivo de separação. Para outros, é sinal de imaturidade e merece o perdão.

Tem gente que desculpa a infidelidade, tem gente que vira as costas e nunca mais oferece uma segunda chance. Eu parei de provocar a minha irmã com berros fantasmagóricos de surpresa quando notei que ela começava a chorar, exatamente os mesmos sustos que produziam risos consecutivos em meu irmão. O contentamento de um é a tristeza do próximo.

Não há como antever como os outros vão reagir sobre os dilemas e impasses da vida. É o que chamo de sensação térmica da personalidade.

Assim como a temperatura pode registrar 30 graus e a sensação térmica ser de 40 graus, o sofrimento de um amigo ou familiar pode ser bem maior do que o tamanho da realidade, o que não invalida o desabafo.

O nordestino pode se cobrir de casacos em passagem pela Serra no verão enquanto os moradores desfilam de camiseta, a impressão é que manda. Uma tentativa frustrada de assalto talvez renda mais desespero do que alguém que sofreu um sequestro.

Há a ciência do tempo, há a meteorologia, mas também as alterações sentimentais do cotidiano. Toda pessoa é um idioma à parte. Temos que nos preocupar com os efeitos da dor mais do que com a precisão dos acontecimentos.

Não se deve desmerecer a conversa porque o assunto não nos interessa. Ou julgar com os nossos próprios referenciais. Para quem sabe nadar, o medo da água é ridículo. Para quem gosta de show, o medo da multidão é patético. Para quem dança, as coreografias da micareta são fáceis.

Esquecemos de ponderar sobre a sensação térmica do coração.

Não me incomodo com os passionais, os dramáticos e os operísticos. Respeito os efeitos especiais da linguagem. O exagero é uma forma de dizer o que está incomodando e de diminuir a angústia com as palavras.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016



21 de dezembro de 2016 | N° 18720 
MARTHA MEDEIROS

Desembrulhando pessoas


Faz algum tempo que nós, da família, já não trocamos presentes no Natal. Por vários motivos, entre eles, para escapar desse consumismo que mais estressa do que dá prazer e porque, com a passagem do tempo, ficou evidente que estar juntos é o que importa – presenteamos apenas as crianças, para preservar uma ilusão que ainda as encanta.

Essa consciência acabou chegando também para a nossa turma de amigo-secreto. Já comentei que faço parte de um grupo de 10 amigas que são como irmãs. Tudo começou ainda no colégio e temos um orgulho danado de termos cuidado dessa relação como se fosse um cristal. Estamos constantemente em contato, unidas em todos os momentos, dos mais intensos aos mais frívolos, e o nosso jantar de fim de ano é tão obrigatório quanto o Especial do Roberto Carlos. 

Por muito tempo, trocamos presentes entre nós, depois começamos a adotar as cartas de crianças em situação de vulnerabilidade que escrevem para o Papai Noel dos Correios, e neste ano experimentamos ainda outra modalidade de celebração: resolvemos nos presentear com alguma coisa que fosse nossa – mas não algo que estivesse velho ou que não quiséssemos mais. Algo de que a gente gostasse muito, que fizesse parte da nossa história, para que, a partir de então, fizesse parte também da vida da nossa amiga.

Em vez de dar, doar. A inclusão de mais uma vogal no verbo fez toda a diferença.

Entre todos os encontros realizados, foi nosso final de ano mais afetivo. O desapego dá uma polida na alma: ninguém ficou reparando se o presente era de alto ou baixo custo, ninguém percebeu a ausência de uma bela embalagem ou deu falta de uma etiqueta. Prevaleceu a emoção: aquilo que antes estava sob nossa guarda iria ficar sob a responsabilidade de alguém que amamos e em quem confiamos, eliminando o conceito de distância. O “eu” de cada uma se expandiu, virou “eu e você”.

Fabrício Carpinejar, colega de ZH e amigo inspirado, ontem publicou em sua coluna um texto invocando a lembrança comovente das roupas trocadas entre irmãos. Estamos em sintonia, Fabro. Você usou como gancho um hábito de infância que acontecia em tempos bicudos, quando não sobrava grana – hoje, para a maioria, continua não sobrando. 

Mas o recurso da doação não precisa estar relacionado apenas ao saldo no banco. Mesmo havendo condições de comprar um caminhão de brinquedos e uma loja inteira de roupas, vale a reflexão, que é manjada, mas sempre verdadeira: o que deveríamos desejar desembrulhar embaixo da árvore são as pessoas que nos cercam e ter acesso ao que elas trazem de bonito dentro. Então, é Natal.

sábado, 17 de dezembro de 2016



17 de dezembro de 2016 | N° 18717 
LYA LUFT

O rio do tempo

O tempo é um rio que corre é título de um livro meu, dos recentes. “Corre pra onde?”, querem saber. Isso vai depender, como escrevi no livro: para outra vida, para novos horizontes, em círculo nos lugares e pessoas que amamos, finalmente para o nada ou para “um lugar melhor”, como se diz. Mas que esse rio corre, não tem dúvida. “De repente passaram-se vinte anos”, disse Clarice Lispector. 

“De repente eu tenho oitenta anos”, comentou com ar de surpresa minha mãe, antes que a enfermidade lhe roubasse a consciência de si e de nós. De repente, quem sabe, então, vão-se resolver nossas aflições civis de hoje, e as econômicas, e o sentimento de desamparo e confusão. E voltaremos a ser um país simpático, um pouco malandro quem sabe, mas não criminoso, não corrupto, não destruidor do cotidiano digno ou possível de seus filhos.

“Vivemos tempos estranhos”, diz um ministro do Supremo, nesse embate entre autoridades que em outros tempos nem se imaginaria. Tempos confusos, surpreendentes, cada dia uma chateação maior, uma confusão mais elaborada, uma perplexidade mais pungente. (Ainda bem que nos salvamos com novidades boas: os bebês que nascem, as crianças que começam a trotar naquele encantador jeito só delas, os amigos que recuperam a saúde, a família que se encontra, os amados distantes que se comunicam mais, o flamboyant delirando em vermelhos surreais na rua.)

Nós, os incautos pagadores de contas, contadores de trocados, e trocadores de emprego (ou simplesmente sem ele), não sabemos bem o que fazer. “Tá tudo muito esquisito”, comentamos uns com os outros, alguns querendo ir embora, outros querendo aguentar até que tudo melhore, porque é a terra da gente, e muitos são, como esta que escreve, reis em sua zona de conforto. Todos buscamos uma solução, que parece impossível ou distante.

Mas que está ruim está, todas as providências hoje nos deixam duvidosos, e as festas andam sem o brilho de outros tempos, essa é a verdade. Onde as ruas iluminadas numa competição de beleza em tantos bairros da cidade? A gente pegava o carro para ver, de noite, toda aquela beleza. Hoje mal saímos na noite escura.

Mas não dá pra ver só o vazio no copo, na vida, no país, no horizonte. O jeito é multiplicar outro brilho, nos tempos tormentosos: o brilho dos afetos, o calor dos abraços, a sinceridade na tolerância e o respeito pelas manias, esquisitices, aflições alheias, porque é tempo de aflições. Mas, em sendo isso, não precisa deixar de ser tempo de celebração: para os religiosos, celebra-se o nascimento de Cristo. 

Para os descrentes, a confraternização geral, especialmente em família e amigos, porque os amores também não são dádiva gratuita: têm de ser construídos, cuidados e merecidos. Dá algum trabalho manter essa ciranda emocional lubrificada e funcionando com certa mansidão, mas também traz um enorme conforto, apesar da unhada eventual da mágoa, da saudade, ou da preocupação – que, diga-se de passagem, é a inefugível marca das mães.

Complicado: se de um lado corre, de outro lado o rio parece se arrastar. Depende do ângulo pelo qual olhamos, do quanto sobra no bolso antes do fim do mês, depende do emprego seguro, da capacidade de alegria, depende de governantes sábios com recursos para que a grande engrenagem enferrujada volte a funcionar, e o tempo escorra mais manso. E a nossa vida também.



17 de dezembro de 2016 | N° 18717 
MARTHA MEDEIROS

Metade da vida


Não dá para esperar metade da vida para realizar um sonho, metade da vida para resgatar a liberdade, metade da vida para assumir seus desejos mais profundos

Costumo ser ágil, focada, proativa. Me desembaraço fácil das pequenas mazelas cotidianas, não fico valorizando encrencas. Mas, quando tenho que tomar uma decisão menos corriqueira, aí paro e penso. Dependendo do que for, penso por dias, penso por meses. Se for uma decisão séria mesmo, rumino até a exaustão. Perco algum tempo, é verdade, mas, em contrapartida, raramente me arrependo dos meus atos, das minhas aquisições e das minhas guinadas. Não nasci para avançar duas casas e retroceder quatro. Nasci para avançar uma casa de cada vez, cautelosamente.

Só que cautela é uma coisa, medo é outra. O medo paralisa por muito mais do que semanas e meses. Tem gente predisposta a uma virada, mas antes espera a bênção de Deus, espera a situação ficar mais favorável, espera passar o Natal, espera o ok dos astros, espera ter mais certeza, espera aparecer a coragem, só que coragem não aparece, coragem se cria. 

O que a pessoa está esperando, na verdade, é por uma chance de transferir a responsabilidade do seu ato. Está esperando que o destino se encarregue da mudança para não precisar assumir ela própria as consequências de sua decisão. E, por causa dessa protelação descabida, quando dá por si, descobre que já passou metade da vida.

Não dá para esperar metade da vida para realizar um sonho, metade da vida para resgatar a liberdade, metade da vida para assumir seus desejos mais profundos. Metade da vida é tempo demais, metade da vida pode significar uns 20 anos. Levar décadas para mudar uma situação significa ficar mais tempo gestando a tal nova vida do que a vivendo de fato.

Essa consciência de que não se pode mais adiar coisa alguma surge muito claramente quando atingimos a meia-idade, que é variável – cada um pressente quando alcançou a sua. Estou em plena vigência da minha (é, ainda) e convivo com outros em igual período, todos confirmando que é uma etapa efervescente e fértil, adequada para fazer planos, virar mesas, recomeçar do zero, acreditar em si de uma maneira renovada e alegre. 

Querendo ou não, todos nós passamos metade da vida procurando entender quem realmente somos, mas será que ainda somos? Talvez devêssemos trocar o tempo desse verbo: quem éramos. Nossos pais, amigos e parceiros conjugais esperaram muito de nós, e fizemos o possível para atendê-los, porém, agora, ninguém espera mais nada de nós, e nós não esperamos mais nada de nada. Ou a gente ousa, ou morre.

Que não gastemos tanto tempo para escolher entre essas duas alternativas. Morrer é vegetativo, ousar é vertiginoso.



17 de dezembro de 2016 | N° 18717 
CARPINEJAR

Especulação

O solteiro tem um olhar de especulação imobiliária. Assim como quem procura um apartamento sempre está mirando o alto dos prédios, o solteiro não deixa ninguém passar sem investigar de cima a baixo. Chega a ser pornográfico, mas ele fica com o radar inteiramente ligado para flertes e romances. O sensor está ativado para anúncios. Encara os passantes, de frente e de costas, não se intimidando com nada. Faz as perguntas mais diretas e não desperdiça chance de aproximação. Pede o telefone mesmo antes de revelar o seu nome.

A cara-de-pau do solteiro é assustadora. Corre atrás de portas e de espaços para alojar a sua vida. Transforma beleza em metros quadrados, estuda a geografia da paixão com a ciência dos números. Muito diferente do casado, que tem preguiça até para descer de elevador e buscar a sua tele-entrega e se contenta em deitar no sofá de roupas velhas.

O solteiro é incansável. A mesma determinação de alguém caçando imóvel. Pula de uma festa para outra desprezando o cansaço. Emenda saídas e não diz “não” nunca. Dorme pouco respondendo aos amigos e dando conta das ofertas do WhatsApp. Fala com metade da cidade em duas horas.

Já o casado sofre para responder aos mais chegados e vive arrumando desculpas para não frequentar baladas, ou é a fila ou é o tempo feio ou é a música.

O solteiro frequenta academia e tira selfies de perto. O casado se vangloria da panela de brigadeiro e permite apenas fotos de corpo inteiro e de longe.

O solteiro economiza na semana para gastar no final de semana. É pobre de segunda a quinta, e um milionário de sexta a domingo. Por sua vez, o casado prefere gastar numa churrascaria do que em consumação.

O solteiro quer camarote, o casado quer desaparecer. O solteiro quer isenção, o casado quer promoção. O solteiro é amigo dos porteiros e dos garçons, o casado conhece os atendentes do supermercado e da farmácia.

Se o solteiro come na frente do computador, o casado come na frente da televisão.

Se o solteiro persegue a casa dos sonhos, o casado imagina a reforma dos sonhos.

O casado critica o solteiro, o solteiro critica o casado.

O solteiro deseja se aquietar depois de experimentar muito, o casado não deseja sofrer com o excesso de opções.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016



14 de dezembro de 2016 | N° 18714 
MARTHA MEDEIROS

O começo e o fim

Quando algo começa? E quando acaba?

Imagine uma relação amorosa. Em que exato momento ela passa a ser construída, qual foi o gesto feito por uma das partes que desencadeou tudo? Longevidade é patrimônio, por isso sentimos necessidade de estabelecer um marco zero, a fim de fazer a contagem de sua duração. Namoros costumam ser contabilizados a partir do primeiro beijo, mas, na era tecnológica, vá saber. 

Pode a história ter desabrochado via redes sociais muito antes dos olhares terem se cruzado – há quem se apaixone meses antes de qualquer contato físico. O começo, qualquer começo, é um instante mágico que escapa do rigor dos calendários, ele não se deixa aprisionar por uma data, muito menos por um horário. É um efeito dessincronizado com as demarcações do tempo, foge de qualquer apreensão exata.

E o fim? Queremos que siga a mesma bula: dia, hora, lugar. Uma compulsão boba de registrar a passagem de alguém na lápide do nosso cemitério emocional. Quando acabou? Foi quando um dos dois fez a mala e partiu? Ninguém considera que o fim poderá vir a acontecer só alguns anos depois da separação, pois a separação de corpos é apenas a materialização física do afastamento, não a dissolução de um amor. 

E tampouco se considera que o fim possa ter iniciado ainda no durante, bem antes do adeus definitivo. O fim é mais difícil ainda de ser demarcado, pois vem revestido de vivências e lembranças que podem jamais sumir – aliás, tomara que nunca sumam, ou que validação teria esse relacionamento?

O fim nunca se encerra. O começo nunca se inicia.

A exemplo de um palíndromo (palavras que têm a mesma leitura se lidas de trás pra frente), o destino desafia a temporalidade com que nos acostumamos a organizar a cronologia existencial. Por mais que rejeitemos a ideia, em tudo há começo e fim misturados, um faz parte do processo do outro, como a tristeza e a felicidade – a dor é saudade de uma alegria anterior, e a alegria é a superação de uma dor anterior.

Poderia dizer que essa reflexão surgiu de simples observação das nossas reações, mas eu seria injusta se não desse outro crédito. Ela foi provocada pelo filme A chegada, ficção científica que usa uma invasão alienígena como deflagradora da análise entre o que é, o que foi e o que será – em como tudo está interligado de uma maneira que não dominamos.

Não é uma recomendação entusiasmada do filme, até porque não sou fã de ficções científicas, mas, sendo fã do humanismo que nos rege, não poderia deixar de mencioná-lo. Talvez a gente precise mesmo de extraterrestres para nos situar sobre a nossa precariedade e nos ajudar a aceitar que, para os mistérios da vida, só nos resta a rendição.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016



13 de dezembro de 2016 | N° 18713 
CARPINEJAR

Sou a própria Sessão da Tarde


Os hábitos da infância repercutem na vida adulta, desenham as nossas ambições. O que poderia acontecer com a minha cabeça se passei a minha meninice inteira com os mesmos filmes?

Teria que surgir alguma consequência. Fui vítima de uma divertida lavagem cerebral.

Não importa se o filme é ruim, vou até o fim. Não importa se já vi, continuo assistindo. A minha resiliência audiovisual é exemplar. Posso virar madrugadas acompanhando uma história reprisada infinitamente, vacilo ao parar, fracasso ao apagar, simplesmente não durmo. O controle não é remoto para mim.

Sofri o efeito colateral da Sessão da Tarde. Atravessei um exaustivo treinamento militar.

Engraçado é que os dubladores se revezavam. Eddie Murphy e John Travolta dividiam igual voz, por exemplo, e jamais me prendi a esse detalhe. Voltava da escola e, depois do almoço, o lazer consistia em acompanhar a programação da Rede Globo.

Como fica uma criança exposta excessivamente a uma única radiação mental? Só podia formar um zumbi. Não era uma época de canais fechados, somente tinha cinco opções da rede aberta e ainda dependente do bom humor do sinal externo e do bombril na antena em cima do aparelho.

Acho que devo ter visto oito vezes As sete faces de dr. Lao, dez vezes A Lagoa Azul e umas quinhentas vezes Karatê Kid.

O que sou hoje é resultado disso. O que o circo do dr. Lao pode ensinar a um guri a não ser nunca subestimar o diferente? Já Lagoa Azul me infundiu o romantismo pegajoso. Karatê Kid fez com que enxergasse a faxina como um modo de fazer atividades físicas e marciais, coisa que nem a minha mãe conseguiu.

Não me esqueço de Splash uma sereia em minha vida, Curtindo a vida adoidado e Mulher nota mil. Sei de cor. Muito além do ocaso da carreira, os meus ídolos eternos permanecem sendo Daryl Hannah, Matthew Broderick e Kelly Le Brock.

Não havia escolha. Acompanhei a saga da cadela Lassie e sua sabedoria silenciosa. Atravessei os meus aniversários sucessivamente pedindo uma collie.

Lassie transformou-se em meu Harry Potter: A força do coração, A coragem de Lassie, Lassie de volta para casa e A magia de Lassie. Venho de uma linhagem da previsibilidade e da reincidência.

Não duvide de mim, jamais deixo pela metade uma dor ou uma alegria porque é repetida. Sou capaz de me emocionar de novo apesar de conhecer o final.

sábado, 10 de dezembro de 2016


10 de dezembro de 2016 | N° 18711 
CARPINEJAR

  • Depende do ponto de vista

    Ele já tinha sido um cantor de sucesso, tocado para ginásios com mais de 50 mil pessoas, fugido de fãs pelas saídas laterais, conhecido a fama de perto, a ponto de interromper selfies e autógrafos para não ser esmagado pelo público, aparecido no Faustão e no Jô Soares, agora ele mergulhara no anonimato. Ninguém mais comentava sobre seu trabalho, suas músicas não rodavam nas rádios, seus CDs não vendiam como antes, os seus bajuladores haviam desaparecido sob alcunha de falsos amigos.

    Quando chegou para dar um show em restaurante no litoral gaúcho, só tinha três mesas ocupadas. Circulavam mais garçons que espectadores.

    Havia uma melancolia de circo desmontado, uma tristeza de cachorro manco, um dó de tempestade de verão, tanto que o seu assessor estava disposto a cancelar o evento.

    O dono do local, prevendo que não contaria com lucro e antevendo o prejuízo com o pagamento do cachê, aproximou-se do artista e debochou:

    – É o fim de carreira, hein?

    O músico não julgou o comentário, bateu afavelmente nas costas do sujeito e respondeu:

    – Pode ser fim de carreira ou reinício, depende do ponto de vista, eu comecei tocando para três mesas quando jovem.

    Ele pegou seu violão, ajustou o microfone e fez a melhor apresentação de sua trajetória. Cantou com vontade, não se desanimou com a ausência de eco da multidão, pôs os braços para cima a chamar aplausos coreografados e lembrou letras prediletas e melodias antigas que não vinham à tona há muito tempo.

    Quem o via não compreendia a performance entusiasmada, o turbilhão interno, a gana de vencer. Talvez até ficasse constrangido com o escândalo da alegria, absolutamente fora de um contexto vitorioso. Mas o cantor não foi prepotente com a vida, não tingiu um ponto final na fé, não confundiu vocação com ambição, não estacionou a voz na vaidade, não se apequenou com as adversidades, entendeu a escassa procura como uma reestreia.

    Você pode encarar o problema como um fim ou como uma oportunidade, pode aceitar a solidão como um fracasso ou um novo nascimento, pode precipitar o fiasco ou transformá-lo em esperança.

    Humildade é e sempre será otimismo.


10 de dezembro de 2016 | N° 18711
MARTHA MEDEIROS

Três dias sem celular

Fotografar tudo e todos, a toda hora, sofregamente, é “tirar o tempo do próprio tempo”, é não estar mais ali como protagonista da própria vida

Consta que o escritor francês Honoré de Balzac não tinha pela fotografia muita consideração. Dizia ele: Todos os corpos físicos são compostos, na sua totalidade, por infinitas camadas fantasmagóricas, uma em cima da outra. A fotografia tem o poder de retirar cada camada espectral e de transferi-la para o retrato. Ou seja, a cada click, morremos um pouco.

Li também em algum lugar (minhas desculpas ao autor desconhecido que ficará sem crédito) que fotografar é tirar o tempo do próprio tempo, engaiolar o momento, eternizar o homem mortal em arquivo.

Isso explica, em parte, o fato de tantas pessoas, tribos e povos não gostarem de ser fotografados. Quando não conseguem evitar, fecham o rosto: é a resistência possível, sonegar o sorriso. Por respeitar aqueles que acreditam em roubo de alma, costumo pedir permissão antes de fotografar desconhecidos, mas só pensei seriamente neste assunto quando fiquei três dias sem celular.

No início, achei que me sentiria amputada, mas aconteceu o contrário: reintegração de posse. Posse do meu olhar, da minha presença íntegra. De repente, eu estava nos lugares com este único fim: ali estar e ponto – não a fim de gerar conteúdo para abastecer redes sociais. 

Assisti a uma palestra e não fotografei o palestrante, estive num bairro desconhecido e não fotografei seus prédios, almocei com uma amiga e não bati uma selfie nossa, e isto não causou nenhuma sensação de incompletude ou solidão, ao contrário, lembrei como as circunstâncias e experiências do dia se tornam mais perceptíveis quando não temos um dispositivo eletrônico ao alcance da mão. É a mesma regra que o teatro impõe: apreenda o que está vendo e escutando, absorva o encantamento, porque logo tudo irá desaparecer e só o seu sentimento irá ficar.

O que eterniza – qualquer coisa – é a impressão causada. Óbvio que é muito bom ter fotos das pessoas que amamos, das comemorações, das viagens, de nós mesmos quando crianças, de nossos ritos de passagem. E tão importante quanto é a fotografia como expressão artística e/ou jornalística, o registro de um segundo que transcende o banal, que desperta reflexões, espanto, deslumbramento, releituras.

Mas fotografar tudo e todos, a toda hora, sofregamente, é “tirar o tempo do próprio tempo”, é não estar mais ali como protagonista da própria vida, e sim como um freelancer com um contrato temporário a cumprir. De certa forma, estamos todos a serviço do celular, nosso patrão.

Afanaram meu patrão e não fiquei desempregada, continuei usando a vida. E nem deu tempo de comentar aqui sobre esses três dias em que passei, também, sem escutar os apitos do WhatsApp. Ainda que pareça inacreditável, sobrevive-se.




10 de dezembro de 2016 | N° 18711
LYA LUFT

Pode ser mais simples

Almas aflitas, inseguros no turbilhão de informações corretas ou tresloucadas que nos confundem, em que até altas figuras fazem e refazem, decidem e se enrolam, vivemos vulneráveis a toda sorte de famigeradas “receitas” baseadas na futilidade geral: seja bem-sucedido, segure seu marido, enlouqueça sua mulher, tenha pelo menos dois orgasmos a cada relação, jamais envelheça etc. Como tudo está cada vez mais complicado, e andamos desgovernados, encalhados ou jogados por marés imprevistas, desistindo de prever qualquer coisa porque tudo se levanta e desmorona em questão de horas, acabamos nos aferrando a algum desses preceitos espalhados por toda parte.

É a era das receitas, das frases feitas e clichês, adaptados a milhares de desiguais como se assim carimbados não tivessem individualidades. Somos uma manada, o que oferece conforto, mas aniquila o espírito. Rouba a liberdade, mata a originalidade. É essencial ­– nos aconselham – fazer como todo mundo, frequentar o restaurante da hora, o cabeleireiro idem, ler aquele best-seller sem saber do que trata, conhecer as Bahamas, dar uma passadinha em Paris. Transpirando e lutando para pagar as reles contas do dia a dia, corremos ofegantes em busca disso que não podemos avaliar nem alcançar, eternamente frustrados.
Se prestarmos atenção a muitas mutantes e loucas recomendações, havemos de nos divertir: Não beba muito café; café faz bem. Não tome aspirina demais; tome uma por dia (a infantil, claro). Vitaminas não ajudam; tome esse moderno complemento de vitaminas. Faça exames a cada poucos meses; não faça exames demais. Álcool faz mal; uma taça de vinho faz bem. Exercite-se diariamente; não se esforce demais. Coma só carboidratos, evite carboidratos; fuja das gorduras, coma bacon e ovo frito todo dia no café da manhã... além dos grotescos conselhos sobre sucesso profissional, sexual, e ser linda(o), “ser famoso”.

Mesmo em assuntos mais sérios, há declarações duvidosas, como “Quem não lê é uma pessoa triste”. Desculpem, amigos, leitores, ex-alunos e colegas escritores, mas isso é mais uma empulhação. Quem não lê sabe menos, se diverte menos, tem menos bagagem interior, visão bem mais estreita de mundo, talvez fique mais solitário (livro é um belo companheiro) – mas não precisa ser “triste”. Os mais ignorantes quem sabe, andam mais alegrinhos por não fazerem ideia do festival de enganos e desfaçatez em que nos enredam.

Atenção: não estou dizendo que a gente não siga ao menos essa receita, de ler mais. Mas não reside nisso nossa tristeza: apenas, lendo, nossa alma se expande, cria varandas como dizia um amigo meu; aprendemos história, arqueologia, psicologia, saboreamos beleza, nos intrigamos, nos conhecemos melhor, curtimos “as franjas das palavras”, seus muitos sentidos – se soubermos ver. 

Tudo pode ser mais simples do que nossa aflição com receituários financeiros, psicológicos, sexuais. Recentemente, numa palestra, me perguntaram por que alunos deveriam estudar. Não precisei refletir. Do fundo dos meus tantos anos e experiências, fracassos e tolices cometidas, respondi o que julgo ser a verdade mais simples: “Devem estudar para não ficarem burros”. De modo geral, em quase tudo a simplicidade nos salva.

Termino com um P.S.: delícia o encontro de colunistas da ZH na quinta-feira, alegria e orgulho de novamente estar nesta família.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016



06 de dezembro de 2016 | N° 18707 
CARPINEJAR

Tempo emocional

Quantas décadas passaram entre 29 de novembro, madrugada da tragédia da Chapecoense, e 30 de novembro? Em uma única data, correram quantas semanas?

Foi um pesar violento, que 24 horas e 365 dias não fizeram mais nenhum sentido para abarcar o que transcorreu na intimidade da existência de cada um. Tudo o que aconteceu em outubro e setembro parece que está longe demais. Eu tenho que me esforçar para lembrar. Sinto que troquei de ano várias vezes em um ano, que me despedi das folhas do calendário em solitária noite.

O choque, o susto, a calamidade inspiram a reprisar o mesmo ato, de tal modo que você vive uma lembrança eternamente. Você recua e avança na recordação sem força para alterar o imponderável. O destino impacta a sua estabilidade, destrói o seu romantismo e nada mais é fixo e imutável.

O sofrimento nos deixa antigos. A dor nos envelhece rapidamente. O tempo emocional se sobrepõe ao tempo físico. O tempo emocional é o que vigora nas palavras e na realidade sensível. É um fim de uma crença que chega antes do fim do ano, é o Réveillon silencioso de um ideal sem espocar de fogos nem brindes.

Não mudamos de idade, não mudamos a aparência, mas somos outros por dentro, amadurecemos forçosamente. É quando somos abalados por uma tristeza tão grande que a sensação é de que atravessamos a metade de um século em um piscar de olhos. Pode ser um desemprego ou um término de um romance, é algo que não esperávamos e que consome a nossa paz e rotina, que devora a nossa tranquilidade e não tem como fingir indiferença.

Choramos, acumulamos insônia e nos encolhemos no sofá em posição fetal assistindo ao noticiário, com os olhos parados naquilo que é passado e que também não se esgotou como futuro.

Quem já não perdeu um familiar e não acordou como se estivesse sonhando, não crendo, com a impressão do impossível experimentado?

Quem já não se separou de alguém que amava muito e não atravessou a mais funda desilusão? Toda renúncia entorta os relógios e adoece a solidão.

O tempo emocional sempre manda quando transformamos a nossa maneira de pensar a vida, quando a ingenuidade é assassinada, quando o nosso riso é mais difícil de sair dos dentes para os lábios.

Com a morte de Tancredo Neves abandonei a infância, com a morte de Ayrton Senna deixei a adolescência, com a morte dos Mamonas Assassinas ingressei na maturidade. A queda do avião com o time da Chapecoense talvez seja o meu portal para a velhice. Já seguro o guarda-chuva como uma bengala, apoiando o peso do país em meus ombros.

sábado, 3 de dezembro de 2016




03 de dezembro de 2016 | N° 18705
CARPINEJAR

Doce laquê

Nunca entendi a minha atração por salão de beleza.

Havia um mistério na neblina das escovas e dos secadores trabalhando, no adocicado do vento daquele refúgio de beleza.

Desde pequeno, quando acompanhava minha mãe, vinha a vontade irresistível de rondar as cadeiras na frente do espelho, onde as senhoras esperavam alegremente com seus bobes e revistas de fofocas. Não me entediava como a maioria das crianças, não queria retornar rapidamente aos brinquedos de casa. Agradecia a demora e o atraso do almoço. Nem a fome me incomodava.


O ambiente me hipnotizava, acreditava que fosse pelo brilho das tranças e pela altura surpreendente dos andares das cabeças femininas, mas abandonei a lembrança na caixinha de incompreensões da vida e segui em frente.

Quando a minha mulher apertou o spray fixador em seus cabelos antes de sairmos para uma formatura, eu quase tive um colapso de felicidade.

Discerni o feitiço: laquê. O que me inebriava no espaço dos cabeleireiros era o olor do laquê. As borrifadas de 15 centímetros de distância criavam uma aurora boreal em minha respiração.

Sou apaixonado por laquê. Melhor que incenso e aromatizador. Melhor que os toldos dos jacarandás na primavera porto-alegrense.

Por que não trocaram o nebulizador pelo laquê para curar a minha asma? Por que não me dispensaram das aulas de natação e das maçãs diárias?

Gastaria um laquê para perfumar a residência. Jogaria um laquê em cima de minhas roupas.

A vontade é ser um traficante de laquê. Viajar para a fronteira de Uruguaiana ou Santana do Livramento contrabandear laquê. Desviar todo o salário na compra de caixas de laquê. Forrar as prateleiras do banheiro de laquê.

Escrevo compulsivamente laquê, repito laquê freneticamente, em pleno turbilhão de viciado.

No salão, o laquê paralisava os penteados das mulheres e também o meu olfato. Eu planava no ar como um beija-flor ou Dadá Maravilha.

Pena que descobri tarde demais para um reposicionamento de carreira. Eu me daria bem salvando as tranças e os coques das clientes. Imagine o que seriam os meus penteados?



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
MARTHA MEDEIROS

Seu terapeuta é feliz?

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada

Outro dia acompanhei uma conversa instigante. Em meio a um grupo, uma mulher comentou o quanto havia ficado desconcertada ao saber que sua analista não era feliz. Havia se tratado com ela por três anos, nada sabia da vida íntima da profissional com quem tanto havia desabafado e agora, depois de muito tempo, havia descoberto que a analista tinha problemas pessoais e que inclusive havia tentado o suicídio uma vez.

A tentativa de suicídio me pareceu um acréscimo sensacionalista à história, mas, desconsiderando esse detalhe, me concentrei na fantasia que alimentamos a respeito desses profissionais.

Eles ajudam a amenizar nosso sofrimento emocional, a tomar decisões necessárias para que a vida destrave, a compreender e perdoar nosso passado, a vencer medos e traumas, enfim, fazem uma assistência técnica básica. Para que o processo dê resultado, contam com nossa sinceridade e confiança, e é por isso que despejamos, sem reservas, tudo aquilo que ocultamos até de nós mesmos. Declaramos abertamente nossas fraquezas, recalques, frustrações, taras, dificuldades. O que esperamos em troca? Que eles já tenham resolvido todas essas questões em suas próprias vidas para que possam se concentrar na nossa.

É um delírio, mas ficamos mais descansados assim.

Até que um dia descobrimos, sabe-se lá como, que aquela criatura que parecia acima do bem e do mal é uma pessoa que bebe muito, que não consegue manter relações afetivas por mais de seis meses, que já atropelou um cachorro e fugiu, que sofre até hoje por um grande amor perdido, que tem medo de andar de elevador, que coleciona multas de trânsito, que não fala com um irmão há sete anos.

Isso significa que ele não é feliz? Apenas significa que é mais parecido com um ser humano do que com Deus.

Eis a encrenca: ele não pode ser parecido com um ser humano, ou seja, conosco. Se não resolveu suas próprias tranqueiras, que habilidade terá para lidar com as tranqueiras dos outros? Não admitimos que ele enlouqueça de ciúmes, que tenha vaidades, que guarde segredos, que morra de sono no meio da tarde, que sinta tédio, raiva, claustrofobia. Não pode estar atolado em dívidas, não pode ter um botão faltando na camisa, não pode fumar, não pode atrasar, não pode chorar.

Ele não pode ter uma vida, apenas uma carreira. Tem que fixar residência no consultório e estar sempre a nossa espera de banho tomado e alma lavada. Encontrá-lo com um carrinho lotado de cerveja no caixa do supermercado exigirá de nós muito autocontrole.

Desejamos que nossos terapeutas sejam perfeitos, e é por isso que eles costumam acertar no nosso diagnóstico: no fundo, somos todos uns narcisistas.