sábado, 28 de maio de 2016


28 de maio de 2016 | N° 18537 
MARTHA MEDEIROS

Pés no chão

A simplicidade é o novo luxo. Aliás, sempre foi, apenas está recebendo o status merecido diante da falência econômica mundial

Saí de férias nas últimas semanas e não levei nenhum sapato de salto alto na bagagem. Nada contra, acho bonito, só que uso pouco. Salto agulha, só em festas de casamento e similares. Já um saltinho médio, tipo tacão, em botas e sandálias, ok. Mas dessa vez eu saí do país apenas com rasteirinhas e tênis e descobri que estava sintonizada com os atuais costumes, mesmo sem me dar conta. Depois de umas perambulações por lugarejos praianos e vilas medievais, passei três dias em Paris, meca da alta-costura, capital da elegância feminina, e não vi uma única mulher usando salto alto. Sério. Nenhuma.

Por alguma conexão cósmica, no mesmo dia em que percebi isso, li a notícia de que Julia Roberts havia circulado pelo tapete vermelho do Festival de Cinema de Cannes com os pés descalços, em protesto contra a expulsão de algumas mulheres que não seguiram o protocolo ano passado, enquanto que a jornalista Mauren Motta postava em seu perfil no Facebook o apoio à britânica Nicola Tharp, uma recepcionista de 27 anos que se recusou a trabalhar nove horas em pé usando salto e foi demitida.

Não sou partidária do desrespeito ao dress code estipulado por empresas e pelo bom senso: acho que vestir-se convenientemente, de acordo com a ocasião, é uma questão de bons modos. Mas nada impede que a gente repense a obrigatoriedade dos maiores ícones masculinos e femininos: a gravata e o salto alto. O uso de um e de outro deve ser facultativo, não uma imposição.

Posto isso, mudo de assunto, mas nem tanto. Voltei da Europa convencida de que o glamour tornou-se obsoleto. O mundo está em constante mudança, e é hora de sermos mais realistas e práticos. Glamour e ostentação não significam a mesma coisa, mas confundem-se. Tudo o que é over resvala para a cafonice. A simplicidade é o novo luxo. Aliás, sempre foi, apenas está recebendo o status merecido diante da falência econômica mundial.

Não estou falando apenas de consumismo, mas de atitude, de cultura, de estilo de vida. “Menos é mais” já deixou de ser uma tendência para virar um clássico. A Europa não é o paraíso: tem gente nas esquinas pedindo esmola, tem desemprego, tem greves, tem escândalos, nada está assegurado, o pulso pulsa.

Mas pulsa sem espalhafato. A Europa se manifesta num tom mais baixo e nem por isso deixa de ser escutada. Mantém a compostura. Não há celulares em cima das mesas dos restaurantes. Não há barulho excessivo. Não há cores gritantes. Não há tanto agrotóxico, maquiagem, pressa, televisão, grosseria, suores, botox. Não há tanto enfeite, não há tanta sedução ostensiva, não há tanto. As coisas funcionam sem os excessos. Há valores máximos dentro do mínimo.

Voltei sonhando (alto) com um Brasil mais pé no chão.


28 de maio de 2016 | N° 18537
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O QUE PLANTAMOS


Os poderosos inteligentes sabem o quanto é admirável exercer a humildade

A sensação de poder exige do poderoso algumas virtudes. A mais importante delas é a perspicácia de entender que, neste terreno pantanoso, nada é absoluto nem ilimitado.

Os poderosos inteligentes descobrem precocemente o quanto é fácil e admirável nesta condição o exercício da humildade. Ao contrário dos subservientes por necessidade, os poderosos seduzem quando deixam claro que o poder “não lhes subiu à cabeça”.

Infelizmente, na maioria das vezes, a consciência da supremacia sobre seus pares gera comportamentos extravagantes e repulsivos que, como era de se prever, abrem caminho para a solidão e o abandono no futuro. Em algumas circunstâncias, em que a duração da idolatria é preestabelecida, seja pelo tempo de mandato do homem público ou pela transitoriedade do apogeu físico do atleta ou do artista, mais se exige inteligência na semeadura de afetos respeitosos ou não, que reverterão, logo adiante, em agradecimentos ou retaliações. 

Negligenciar esse destino é negar a inflexibilidade de vida, que só reserva para colheita o que plantamos. A constatação tardia do fracasso na construção desse futuro explica as atitudes destemperadas de políticos pós-mandato e os altos índices de drogadição entre ex-atletas e ex-famosos.

O riograndino apresentou as suas credenciais na primeira consulta. Tinha agendado para o primeiro horário e, quando a secretária lhe perguntou se cederia a vez para um paciente dependente de oxigênio, que confessara o temor de que seu reservatório pudesse terminar antes de chegar em casa, ele simplesmente disse: “O meu horário foi marcado com antecedência e não tenho nada a ver com isso!” Só soube desta cena no fim das consultas, mas ela teria sido apenas um prenúncio da trajetória de desamor que marcou a passagem dele pelo hospital. 

A ostentação e o desapreço que ele dedicou aos funcionários mais humildes encontraram ressonância na atitude dos filhos, que mantinham em relação a ele uma distância compatível com uma rigidez afetiva crônica. As referências elogiosas a mim sempre foram vistas com as reservas esperadas para uma relação em que um dos envolvidos estaria anestesiado e o outro empunharia um bisturi.

A evolução pós-operatória foi ótima, a internação foi curta, não houve tempo nem motivação para que nos gostássemos. E não nos gostamos.

Foi só na terceira ou quarta revisão semestral que “conversamos” pela primeira vez. Empobrecera, e a mulher bonita, mais jovem do que seus filhos, apresentada como esposa lá no início, era a parceira do quarto casamento e recentemente o abandonara. Não restara nada da arrogância antiga, e a necessidade de conversar era o preço da solidão. Nova e pungente. Ao sair, perguntou-me se podia me dar um abraço como agradecimento por tê-lo ouvido, e então senti uma dor por ele e cedi o abraço, não como quem simplesmente consola, mas como quem sente a necessidade aguda de compartilhar sofrimento. 

Só percebi a volubilidade da minha opinião depois que ele partiu. Bastou uma confissão de abandono para que eu sentisse uma pena enorme e esquecesse o quanto aquela punição tinha sido regada por uma vida de egoísmo e desamor. Talvez a minha comiseração tenha sido influenciada pelo pesar atávico que sinto dos ricos que viveram só para si e um triste dia descobriram, com desespero, que todo o dinheiro pode acabar antes que a vida termine.

28 de maio de 2016 | N° 18537 
CARPINEJAR

A matemática do amor


Por mais que se perca a razão no amor, o sentimento guarda uma matemática secreta. Há uma equação escondida debaixo das tormentas do relacionamento. Ninguém levanta alicerces para o edifício das palavras e das juras a dois sem recorrer à trigonometria. Dentro da poesia aparentemente passional, caótica e temperamental da coreografia emocional, é possível localizar a precisão da engenharia e a sustentabilidade da arquitetura.

Na separação, eu realizo um cálculo objetivo que costuma funcionar. A felicidade sempre tem que pagar comissão para a dor. Não é uma taxa opcional – todos serão obrigados a participar.

É um coeficiente mínimo de esforço e sacrifício que cada um vai arcar para se desapegar do ex ou da ex. O separado precisa experimentar um isolamento e expiação proporcional ao tempo da relação. Se você viveu vinte anos com alguém, atravessará dois anos de luto. Se viveu dois anos com alguém, serão dois meses de luto. 

Se viveu dois meses com alguém, a conta de angústia fica em dois dias. Depois da alegria do banquete, cabe separar dez por cento da duração da união para o sofrimento. A saúde de um novo romance depende dessa estranha contabilidade. Encurtar ou alargar o período prejudicará o andamento das suas convicções – ou desistirá do romantismo ou emendará lastros com pessoas erradas e inoportunas.

O mundo adulto é feito de tributações. Onde predominou esperança restará um dízimo de frustração a quitar, onde reinou a ilusão sobrará o pedágio de desapontamento a superar, onde vigorou confiança aparecerão pendências para serem solucionadas. A fórmula da felicidade inclui tristeza e solidão com a ruptura. Depois de ser dois, voltar a ser um requer recuperar a metade doada.

O sofrimento é um garçom implacável de gravata-borboleta. Não achará forma de enganá-lo e fugir da dívida. Com o término do prazer e da idealização, ele estará diante de você com a caderneta preta da fatura na mão direita e a maquininha na mão esquerda:

– Crédito ou débito?

Melhor escolher o débito logo. Adiar o pagamento só aumentará os juros do recalque.

Mas há aquele que trai a objetividade e se separa dentro da relação. Parcela o fim em vinte e quatro vezes, a cada briga e discussão, e quando sai porta afora já não deve mais nada.

quarta-feira, 25 de maio de 2016


25 de maio de 2016 | N° 18534 
MARTHA MEDEIROS

Amor não retribuído

Basta uma mulher manifestar certa amargura e logo surge alguém para chamá-la, ofensivamente, de mal-amada. Pois então. É o que somos todas, mal-amadas. E todos os homens são também. De Norte a Sul, formamos uma população de mal-amados: o país não quer nada com a gente.

Desde que comecei a ter alguma noção de política (no meu caso, quando entrei na faculdade), mantenho uma relação de desconfiança com o Brasil. Sabia que ele havia feito sofrer muita gente antes de mim, um repressor sádico, que torturava entre quatro paredes. Eu o amei quando criança porque não o conhecia direito, até que cresci e ele pareceu crescer também, democratizando-se e passando a fazer promessas que eram tudo o que alguém apaixonado gostaria de ouvir.

O Brasil é um sedutor. No discurso, acena com reciprocidade. Necessidades básicas atendidas. Direito de ir e vir, liberdade de expressão, troca de ideias. Uma relação adulta, prazerosa, possibilitando que todos evoluam juntos. O amor ideal.

Mas o Brasil fala muito e faz pouco. O Brasil promete e às vezes chega perto de realizar nossos sonhos, mas logo reincide na cafajestada. Não sai da adolescência. Vive se deixando levar pela lei do menor esforço, querendo obter vantagens, sobrevivendo de conquistas rápidas e inconsistentes, deslumbrado pelo próprio poder e esquecido de suas obrigações. Um gargantão que às vezes dá a impressão de que virou gente grande, mas virou nada, é o mesmo moleque de sempre.

Diante desse descompromisso explícito por parte dele, nasceu nossa mágoa. O povo brasileiro, em sua maioria, hoje se comporta como quem levou um fora. Como quem teve seu amor recusado. E daí para ficar rancoroso é um passo.

A gente acreditou que iria dar certo. Acreditou que haveria futuro, uma relação sólida e para sempre. Que o visual exuberante, esse país tão belo, tinha também conteúdo, honestidade, ética, inteligência. Mas ficou só no desejo, não rolou. Todas as brasileiras são mulheres de bandido. Todos os brasileiros se envolveram com uma nação biscate. O Brasil não quer saber de relacionamento sério. É crau e fim. Não telefona nem manda flores no dia seguinte.

Cada um de nós ainda procura se apegar a algo que nos pareceu bom no início da relação com o país – o que pareceu bom pra você? Os militares? Sarney? Collor? Fernando Henrique? Lula? Deu em nada ou quase nada. Hoje estamos todos nos xingando mutuamente, numa ânsia desesperada de apontar culpados pela própria desilusão, sem perceber que temos algo profundo em comum: o ressentimento. Uma tremenda dor de cotovelo. Somos todos vítimas de um amor cívico que o país nunca retribuiu.

terça-feira, 24 de maio de 2016


24 de maio de 2016 | N° 18533 
CARPINEJAR

Aniversário da amizade


Comemoramos aniversários de namoro e de casamento e jamais lembramos os marcos das amizades.

A amizade repousa num tempo indefinido e vago, sem festa, sem torta e sem parabéns. É uma omissão injusta. Favorecemos as amarras do romance e descuramos dos laços da fraternidade.

Ninguém festeja a data do primeiro encontro com um amigo muito especial. Eu percebi a lacuna quando Eduardo Nasi, meu comparsa gaúcho radicado em São Paulo, lembrou-me de que em 15 de agosto completávamos 20 anos de amizade. Eu ri e logo suspirei:

– Já foram duas décadas, hein? Meu Deus, como passou rápido!

– Pois é, a gente se conheceu porque gostávamos de poesia e nunca deixamos de nos falar mesmo quando morávamos em cidades diferentes – ele respondeu.

Combinamos de jantar neste dia para vibrar com as bodas de porcelana da amizade. Um encontro bem bagual: beber até passar mal, quem cair pagará a conta. Um preço justo para a cara partilha de confidências, pois atravessamos lado a lado as crises dos 20, dos 30 e dos 40.

Amigo é algo tão sério, que deveríamos pedir o ombro do sujeito para os seus pais. Se pedimos a mão da mulher em casamento, o ideal é solicitar o encosto leal e fiel de nosso amigo com a mesma solenidade e tensão, olhando nos olhos dos progenitores e prometendo sinceridade e cuidado pela vida afora. Afinal, o ombro dele será nossa fortaleza nas tristezas e nas separações, nos tropeços e nas fraquezas, na saúde e na doença, até que a morte nos separe. 

Ele não é uma casualidade ou um golpe de sorte ou um resultado das circunstâncias. Amigo é destino, amigo é vocação, amigo é amor de anjo, amigo é inocência de intenção. Longe de um amigo, não há casamento que resista e profissão que se sustente.

Antes de ver quem é a mãe do outro, somos apenas conhecidos. Temos que frequentar a casa e a família, percorrer enterros e nascimentos, suportar a intimidade das contradições e oferecer conselhos com uma visão privilegiada de conjunto, antevendo de onde veio e quais são os seus problemas e lapsos de infância.

Pelo jeito, eu e Eduardo chegaremos às bodas de ouro. Faltam ainda 30 anos, mas não tivemos nenhuma discussão de relacionamento ao longo de nossa cumplicidade.

sábado, 21 de maio de 2016


21 de maio de 2016 | N° 18531 
MARTHA MEDEIROS

Martha Medeiros está em férias. 

Esta coluna foi originalmente publicada em 16/01/2002.

Andróginos

Artista é o que toca no extremo. Catalogar um artista como homem ou mulher e a partir daí tirar conclusões é percorrer um caminho muito curto para a compreensão da obra de alguém

Uma das perguntas que mais fazem a escritores é sobre a diferença entre a literatura feminina e a literatura masculina.

Eu nunca senti essa diferença de forma gritante.

Em tese, TPM e parto podem ser melhor descritos por uma mulher do que por um homem, e assim entraríamos no terreno das vivências para diferenciar uma literatura de outra, mas acredito que, havendo talento, qualquer um escreve sobre qualquer coisa.

Como já disse Virginia Woolf, todo artista é um andrógino.

As pessoas se inquietam com essa afirmação, como se estivéssemos dizendo que todo artista é um androide, quando é justamente o contrário.

O artista não é programado para pensar como mulher ou como homem, para gostar de cor-de-rosa ou de azul, para ser mais romântico ou mais pragmático, segundo as generalizações impostas no berço.

O artista é o oposto do androide, é desprogramado de nascença, aberto a todas as correntes de pensamento, dono de uma antena que capta os sentimentos mais contraditórios.

O artista traz uma liberdade assustadora no peito e o ímpeto de expressá-la na sua dança, através de seus pincéis ou num palco.

Não há juventude e velhice no ato da criação, não há livros escritos por cabeludos que sejam diferentes de livros escritos por calvos, não é o alcoolismo de um músico que o diferenciará de um músico abstêmio, somos todos diferentes na nossa percepção individual e unos na nossa descrença em relação a verdades únicas.

Todo artista é ao mesmo tempo o louco e o sensato. Artista é público e solitário, é quem se dá e se recebe de volta, encarna e desencarna, fala por João, por Maria e pelos bichos todos que traz dentro.

Artista é o que toca no extremo.

Catalogar um artista como homem ou mulher e a partir daí tirar conclusões é percorrer um caminho muito curto para a compreensão da obra de alguém.

Fumamos charuto (somos homens ou mulheres?), sentimos a ausência de um filho (somos homens ou mulheres?), somos ciumentos patológicos (somos homens ou mulheres?), gostamos de cozinhar (somos homens ou mulheres?).

São apenas pessoas em busca do sentido da vida e que convidam a embarcar nessa viagem aqueles que não se preocupam de onde a viagem parte, mas para onde ela nos leva.


21 de maio de 2016 | N° 18531
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

TRISTEZA NÃO TEM FIM...


As circunstâncias da vida, que os pacíficos atribuem ao destino, podem fazer com que um indivíduo, crescido na miséria extrema, perca gradualmente o alento para a indignação e passe a aceitar os atropelos da vida com uma naturalidade inconcebível e chocante.

Isso que JG de Araujo Jorge reconheceu como o drama das pessoas que “de tanto perder, quando chega o dia da morte, já nem tem mais o que morrer”.

Semana passada, convivi com um paciente que é o símbolo da nossa pobreza social: uma vítima de silicose, essa doença mutilante que escancara o desapreço com que as questões elementares de respeito ao ser humano são tratadas no nosso interior. Essa enfermidade, evolutiva e fatal, destrói os pulmões pela inalação repetida de pó de pedra, e mutila milhares de infelizes trabalhadores braçais, que buscam a sobrevivência cavando nas minas de carvão, de pedras preciosas ou simplesmente perfurando poços artesianos, sem nenhum tipo adequado de proteção.

Ouvindo-o relatar a sua história de perda sucessiva dos irmãos com a mesma doença, facilmente evitável pelo simples uso de uma máscara efetiva, o que mais chamava atenção era o conformismo com que ele descrevia a aceitação dos riscos, condicionado que estava a aceitar a miséria sem protesto e o destino sem redenção. A construção de uma vida indigna era mera consequência de gerações de ancestrais vitimadas pela pobreza genética que molda comportamentos pusilânimes, e sepulta os sonhos mais primitivos.

Não por acaso, a preservação da capacidade de indignação é considerada um dos mais confiáveis índices de desenvolvimento social.

Ao vê-lo ofegante, com os olhos sem brilho porque há muito perdera a esperança, não consegui dizer-lhe que o transplante pretendido, e pelo qual foi encaminhado do Ceará, é uma utopia, porque se for alcançado, ainda tenderá ao fracasso pelas más condições de habitação, higiene e saneamento em que vive. 

Há alguns anos, numa situação semelhante em que atendia um nordestino jovem, também vítima de silicose e que também já perdera três irmãos da mesma doença profissional, estupidamente lhe perguntei se não pensara em fazer outra coisa, considerando o que ocorrera com seus irmãos, e ele me impôs o castigo que mereci ouvir pela alienação: “O problema, doutor, é que no sertão nós somos muitas vezes obrigados a escolher entre a fome e a falta de ar. E acabamos escolhendo a falta de ar, porque a fome mata mais rápido!”.

Deprimente dar razão aos estrangeiros que, ao assistirem ao meu relato em Zurique sobre a experiência brasileira em transplantes pulmonares por silicose, se confessaram pasmos com um país que não consegue oferecer o cuidado elementar da prevenção, mas depois que os pulmões estão destruídos, dá a impressão de que se preocupa com eles ao oferecer-lhes um tratamento da complexidade e do custo de um transplante. Que estranho país esse!

Foi doloroso pensar naquele brasileirinho arfante que, como um zumbi, se arrasta pelas ruas por culpa de um sistema miserável, que não tem o mínimo apreço pelos seus cidadãos, mas que se perpetua pela nossa indiferença e permanente omissão. Difícil pensar no metrô da Venezuela e no porto de Cuba sem sentimento de culpa!



21 de maio de 2016 | N° 18531 
CARPINEJAR

VOU TENTAR

“Vou tentar ser fiel.

Vou tentar não mentir.

Vou tentar melhorar.

Vou tentar mudar.

Vou tentar me entregar para a relação.

Vou tentar não me omitir.

Vou tentar cumprir os prazos.

Vou tentar não ser ansioso.

Vou tentar não ficar pressionando os filhos.

Vou tentar obedecer às leis.

Vou tentar não me indispor no trabalho.

Vou tentar vencer.

Vou tentar perdoar.

Vou tentar não reeditar os erros do passado.

Vou tentar atingir as metas.

Vou tentar assumir os meus compromissos.

Vou tentar parar de fumar.

Vou tentar parar de beber.

Vou tentar parar de incomodar.

Vou tentar parar de gritar.

Vou tentar parar de correr.

Vou tentar não discutir.

Vou tentar não brigar.

Vou tentar não ofender.

Vou tentar não magoar.

Vou tentar reclamar menos.

Vou tentar respeitar os meus limites.

Vou tentar não decepcionar.

Vou tentar dar um maior tempo para a família.

Vou tentar me organizar.

Vou tentar arrumar o armário.

Vou tentar ser feliz.

Vou tentar cuidar dos meus pais.

Vou tentar ser mais amoroso.

Vou tentar não cancelar encontros.

Vou tentar não me atrasar.

Vou tentar juntar dinheiro.

Vou tentar não gastar demais no cartão.

Vou tentar não desmarcar a terapia.

Vou tentar revisar a saúde.

Vou tentar estudar para concurso.

Vou tentar me concentrar.

Vou tentar voltar para academia.

Vou tentar telefonar para os amigos.

Vou tentar não me estender de noite.

Vou tentar acordar cedo.

Vou tentar emagrecer.

Vou tentar retornar com as caminhadas.

Vou tentar. Juro que vou tentar.”

Mas tentar são as aspas da preguiça. Tentar é faltar com a verdade.

Tentar é um falso começo.

Tentar é justificar o fim com o esforço.

Tentar é falar pelas expectativas do outro.

Tentar é fingir que é uma promessa quando é apenas uma confissão de culpa.

Tentar é deixar a vida passar.

Tentar é repetir os medos.

Tentar não é esperança, e sim uma ilusão para ganhar tempo para continuar do mesmo jeito.

Tentar é se desculpar por antecedência.

Tentar é um permanente adiamento.

Tentar é uma fantasia onipotente de criança, de quem não aceita o não.

Tentar é se ocupar com o que nunca será feito.

Tentar é não ajudar a si mesmo.

Tentar é evitar provisoriamente as cobranças.

Tentar é trocar as atitudes por lamentos.

Tentar é não dar o exemplo.

Tentar é não estar certo disso.

Tentar é não fazer.

Tentar é sempre fracassar."

sábado, 14 de maio de 2016



14 de maio de 2016 | N° 18525 
MARTHA MEDEIROS

Vende frango-se


Vende carne-se, vende carro-se, vende barco-se. Não incentivo a ignorância, apenas cedo um olhar mais adocicado ao que é estranho a tanta gente, o nosso idioma

Alguém encontrou esta pérola escrita numa placa em frente a um mercadinho de um morro do Rio: Vende frango-se. É poesia? Piada? Apenas mais um erro de português?

É a vida e ela é inventiva. Eu, que estou sempre correndo atrás de algum assunto para comentar, pensei: isto dá samba, dá letra, dá crônica. Vende frango-se, compra casa-se, conserta sapato-se.

Prefiro isso aos “q tc cmg?” espalhados pelo mundo virtual, prefiro a ingenuidade de um comerciante se comunicando do jeito que sabe, é o “beija eu” dele, o “quer vim aqui casa?” de tantos.

Vende carne-se, vende carro-se, vende barco-se. Não incentivo a ignorância, apenas cedo um olhar mais adocicado ao que é estranho a tanta gente, o nosso idioma. Tão poucos estudam, tão poucos leem, queremos o quê? Ao menos trabalham, negociam, vendem frangos, ao menos alguns compram e comem e os dias seguem, não importa a localização do sujeito indeterminado. Vive-se.

Talvez eu tenha é ficado agradecida por este senhor ou senhora que anunciou-se de forma errônea, porém inocente, já que é do meu feitio também trocar algumas coisas de lugar, e nem por isso mereço chicotadas, ao contrário: o comerciante do morro me incentivou a me perdoar. Esquecer o nome de um conhecido, não reconhecer uma voz ao telefone, chamar Gustavos de Olavos, confundir os verbos e embaralhar-se toda para falar: sou a rainha das gafes, dos tropeços involuntários. 

Tento transformar em folclore, já que falta de educação não é. Conserta destrambelhada-se. Eu me ofereço pro serviço. Quem não? Sabemos todos como é constrangedor não acertar, mas lá do alto do seu boteco, ele nos absolve. Ele, o autor de um absurdo, mas um absurdo muito delicado.

Vende frango-se, e eu acho graça, e achar graça é uma coisa boa, sinal de que ainda não estamos tão secos, rudes e patrulheiros, ainda temos grandeza para promover o erro alheio a uma inesperada recriação da gramática, fica eleito o dono da placa o Guimarães Rosa do morro, vale o que está escrito, e do jeito que está escrito, uma vez que entender, todos entenderam. Fica aqui minha homenagem à imperfeição.


14 de maio de 2016 | N° 18525 
CARPINEJAR
Oficina do diabo
Não sou terapeuta de minha mulher. Não sou o melhor amigo. Não pretendo resolver os seus problemas ou traumas. Não tenho a intenção de me sentir superior, disfarçar os meus limites e dar lição de moral.

Quando converso, é de igual para igual. Não há somente um desabafando e um segundo ouvindo e interpretando. Sou o seu homem, o seu presente, o seu futuro, o que significa que a nossa cama não é um divã, muito menos um mausoléu.

Não aceito, portanto, que fale de ex. Não falarei igualmente dos meus antecedentes criminais. Casal que passa a limpo antigos relacionamentos se prende ao passado. É um dos grandes erros da intimidade – achar que se deve contar tudo o que se viveu antes para se prevenir dos desacertos. O efeito é o contrário: desencadeia uma comparação ciumenta sem limites.

No par amoroso, acontece a predisposição de revisar os erros e explicar o que não funcionou, ainda mais quando as rupturas são recentes. Esquece-se que toda relação é um dialeto e o que se aprendeu num romance não é aplicável no próximo.

Desenganado, o casal atravessa a madrugada narrando a linha de tempo dos namoros, casamentos e separações. O que parece inofensivo é a oficina do diabo. As fragilidades serão testadas nas brigas: você sabe que a outra pessoa foi abandonada e ameaça largá-la como chantagem nas horas em que perde a razão, você sabe que a outra pessoa sofreu com as mentiras e abusa do excesso de detalhes para torturá-la nos momentos de crise, você sabe que a outra pessoa foi infiel e verifica a veracidade de seus compromissos. A maldade vem do poder e da informação.

Quando o casal está bem, é óbvio que os segredos permanecem preservados. Mas, quando está mal e inseguro, sai de perto, a confidência retorna distorcida. Aquilo que é soprado no ouvido e reservadamente termina repetido no megafone. No desespero, não há pudor para atacar o ponto fraco de quem nos acompanha – e os relacionamentos desfeitos representam um mapa propício para invasões de personalidade.

As indiscrições sobre o ex alimentam mágoas e ressentimentos, além de garantir uma sobrevida incômoda a uma ausência e ressuscitar um velho contato. O paralelo com os fantasmas é inevitável. Cria-se uma insegurança de que o nosso par já foi mais feliz ou amou melhor um dia. Não é improvável colocar na balança o que realiza para você e o que realizou anteriormente, sempre pensando que amarga uma desvantagem.

A amnésia é o anjo da guarda do amor. A memória tem que ser do aqui e do agora, fechando o espaço para as intrigas, rompendo vícios de vitimização e melancolia e abrindo-se para a porção da alma desconhecida e surpreendente de cada um.

sábado, 7 de maio de 2016


07 de maio de 2016 | N° 18519 
MARTHA MEDEIROS

  • Saudade de sentir saudade

    Temos recursos, temos acesso. A saudade já não precisa ser tamanha, podemos torná-la comedida

    Telefonei para minha mãe hoje de manhã, e ela, ao ouvir minha voz, sussurrou com doçura: Filha, saudades.... Não fazia nem 48 horas que ela havia almoçado aqui em casa, sem contar os dois telefonemas que haviam sido trocados ontem, e ela já estava com saudades. Isso me fez sentir a filha mais amada do mundo e a mãe mais megera do planeta.

    Não vejo minha própria filha há dois meses (está morando ali na Nova Zelândia) e quando me perguntam se não estou derretendo de saudades eu digo que sim, claro, mas na verdade tenho falado com ela mais hoje do que quando ela dormia no quarto ao lado. O WhatsApp e o Facebook fazem com que minha saudade não mereça virar uma queixa e muito menos um sofrimento. Minha saudade é tolerável, ainda que o adjetivo tolerável não costume ser tolerado pelo passional universo materno.

    Lembro com certa nostalgia de quando a gente esperava uma carta, esperava para revelar uma foto, esperava para colocar os olhos no bebê que ainda estava dentro da barriga. Pois andaram me mostrando a ecografia de um feto de quatro semanas cuja resolução era incrivelmente parecida com a de uma selfie. Hoje em dia você pode dizer se seu filho puxou ao pai ou à mãe meses antes de ele nascer. Esperar é verbo condenado à extinção.

    Se não há mais espera, onde colocar a saudade? Posso ver e falar com quem eu quiser, na hora que quiser, em tempo real. Qualquer país do Hemisfério Norte está mais próximo do que a esquina aqui de casa. Longe é um lugar que não existe, confirmado. Caducou até mesmo a Teoria dos 6 Graus de Separação, estudo que prova que estamos a seis pessoas de distância de qualquer outra pessoa, até mesmo do Barack Obama. Ora, o Obama está no Twitter. E já falei com Mark Ruffalo pelo Facebook. Não preciso de intermediários. Daqui a pouco até Deus estará online (aliás, está: www.theconfessor.co.uk ).

    A saudade é provocada pela ausência, mas quem se ausenta, hoje? Aqueles que morreram, apenas – para a morte não há aplicativo. Já reclamar de saudade de quem está vivo virou apenas um afago verbal, uma declaração de amor, e não uma carência real de contato, a não ser que se esteja muito desanimado para ligar os apetrechos eletrônicos que nos conectam. Temos recursos, temos acesso. A saudade já não precisa ser tamanha, podemos torná-la comedida.

    Não estou falando da saudade entre amantes: beijos e seus derivados, só ao vivo mesmo. E para amenizar a saudade constante que minha mãe sente, ela que se nega a aderir ao mundo digital, só vejo um jeito: forçá-la a aceitar um smartphone de presente e convidá-la para almoçar mais vezes.

07 de maio de 2016 | N° 18519 
CARPINEJAR

  • A esperança da mãe

    A morte demora a acontecer, mesmo depois da morte. É lenta e vagarosa quando se ama. A minha namorada Beatriz perdeu a sua mãe em março, vítima de leucemia, doença que a levou em apenas três semanas.

    Ia embora a sua pessoa favorita. As duas dividiam o apartamento, as caronas e as viagens de férias. Amigas a ponto de nunca esconderam nada uma da outra, por mais que preponderasse a diferença de idade e de geração.

    O enterro não foi a parte trágica da despedida. Era acenar para o corpo – e o hábito é acreditar que o corpo voltaria no dia seguinte. Complicado é se desvencilhar aos poucos da proteção e da confidência maternas. Avisar aos amigos que ela não estará mais aqui, fazer os mesmos caminhos e restaurantes e responder, com as lágrimas já domesticadas pelos cílios, as perguntas constrangedoras e repetidas de “como está a sua mãe?”.

    A sequência mais pesada estava por vir: esvaziar o guarda-roupa. Não há tarefa tão ingrata e dolorosa. Ainda mais para uma mulher que desfrutava de manequim parecido e partilhava as peças com a mãe. A roupa é o último reduto da saudade: onde o cheiro do colo e do cuidado emana como se fosse ontem.

    Trata-se do verdadeiro velório, aquele que é consumado sozinho, longe do amparo dos outros, no ritual de dobrar caprichosamente o fim do familiar na mala para uma viagem definitiva.

    Os olhos da namorada tinham medo do que podiam encontrar – sofriam a ansiedade de recolher um recado, um símbolo, um aviso pós-morte. Havia um cuidado vigilante na hora de revistar os bolsos sob o impacto de encontrar um bilhete com letra tremida que reabrisse a fé. Nada de assustador surgiu, a não ser as lembranças puras de quem ouvia restos das conversas de antigamente.

    – Este é o chambre que a minha mãe colocou na lua de mel.

    – Este é o casaco que ela comprou em Gramado.

    – Este é o cinto que ela trocou a fivela.

    – Esta é a camisa que ela roubou de mim e fingi que não vi.

    Ela controlava a sua dor, até perceber vestidos recentemente comprados e que não haviam sido usados. Ali, surpreendida pelas etiquetas, ela se ajoelhou na cama, soluçou o que deu, e percebeu que ninguém morre sem querer continuar vivendo.

    E teve que, corajosamente, enterrar a esperança de sua mãe.