sábado, 30 de julho de 2016


30 de julho de 2016 | N° 18595
COMPORTAMENTO


O primeiro ano do resto de nossas vidas

Terapeuta lista os principais desafios dos recém-casados (e como enfrentá-los)
Antes do casamento ou de ir morar junto, tudo parece muito mais fácil. E a terapeuta de casais Cíntia Fernandes Leite explica por que: ambos satisfazem com mais zelo as necessidades e os desejos um do outro, a responsabilidade das decisões é mais leve e, quando se desentendem, os parceiros podem simplesmente sair de perto um do outro. Até o dia em que juntam as escovas de dentes. E aí vem o depois: rotina, contas, questões domésticas, filhos etc. e tal. Mas o primeiro ano é especialmente delicado, um momento de adaptação. Cíntia Leite, que promove workshops sobre como enfrentar a dois os desgastes do dia a dia na Choices Coaching para Casal, de Curitiba, lista os principais desafios e ensina como superá-los. Com a palavra, Cíntia Leite:

ENCARANDO A FASE DE ADAPTAÇÃO

Durante o primeiro ano de casamento, os parceiros deparam com a necessidade de fazer negociações diárias para equilibrar necessidades e desejos de duas pessoas às vezes muito diferentes. A esta exigência somam-se constantes desilusões, pois antes do casamento os parceiros ainda têm uma imagem muito idealizada um do outro e também de como será a relação com essa pessoa e que, naturalmente, costuma ser muito mais otimista do que realista. Portanto, nesse período inicial, a maioria dos conflitos tem base nas dificuldades de negociação sobre pequenos e grande assuntos e também nas suas respectivas desilusões, como por exemplo, de dar conta de que o outro não é “tão carinhoso, generoso ou divertido” quanto parecia no início do relacionamento. E isso também é muito natural, pois os traços mais positivos da personalidade sempre aparecem com mais evidência na fase inicial da relação e os mais, digamos, autênticos, infelizmente surgem quando os parceiros precisam aprender a ceder, em prol da satisfação conjugal.

O QUE SÓ SE DESCOBRE AO MORAR JUNTO

A partir do momento em que passam a conviver juntos diariamente, a habilidade de conseguir negociar a satisfação das próprias necessidades com as do outro torna-se ainda mais difícil. Assim, caso um dos parceiros seja muito mais impositivo e agressivo do que o outro, tenderá a se impor ainda mais, fazendo com que o outro aceite suas imposições e passe a anular suas próprias vontades. Porém, caso o outro também apresente um perfil mais impositivo, ambos tenderão a competir pela satisfação de suas vontades, o que irá ocasionar diversos conflitos, sempre proporcionais às dificuldades de negociação de ambos.

ALERTA! QUANDO A COMUNICAÇÃO NÃO VAI BEM

Falar um pouco alto ou de forma um pouco impaciente pode acontecer naturalmente. Mas, quando isso se torna um hábito, o casal deve entrar em estado de alerta e identificar as raízes de tanta irritação. Há ainda outros sinais que, quando passam a ocorrer com certa frequência, devem sempre ser tratados como um ponto de atenção: quando se sentem desconfortáveis ao ficarem a dois em silêncio (pois, quando estão bem, ele traz paz); quando perdem a motivação para expressar sentimentos e pensamentos por receio de ser criticado pelo outro; quando começam a fazer ironias e com maior frequência, principalmente criticando o parceiro na frente de outras pessoas; quando passam a discutir mais para saber quem tem razão do que para resolver o problema em questão.

CONCESSÕES: A ARTE DE DRIBLAR AS DIFERENÇAS

A maioria dos casais considera suas diferenças como um possível indicador de que, talvez, a relação possa não dar certo. Porém, quando essas diferenças surgem de forma mais intensa, é também a oportunidade de transformação e desenvolvimento: ambos precisam de um ajuste nas suas formas de pensar, sentir ou se comportar. Portanto, quanto maiores as diferenças, maior a polarização de comportamentos e então maior será a oportunidade para ambos de potencializarem suas virtudes e desenvolverem o que está precisando ser desenvolvido. Assim, em todo relacionamento a longo prazo, ambos passam por uma profunda transformação psicológica, mesmo que não percebam. Em relação a quem deve ceder, diria que ambos sempre devem ceder quando for necessário, desde que busquem sempre expressar e validar suas necessidades assim como levar em consideração as necessidades do parceiro. Pois apenas assim eles poderão se unir de uma forma mais colaborativa para encontrar a melhor solução para seus conflitos.

GAZETA DO POVO


30 de julho de 2016 | N° 18595 
CARPINEJAR

Ponto cruz da memória

A febre é uma terapia há o degelo de lembranças longínquas que eu julgava esquecidas.

Ocorre um derretimento da memória de longo prazo e acesso antiguidades do meu pensamento com grande facilidade. O factual some, o mais imediato desaparece, em compensação o que estava lá atrás das vivências ressurge como se fosse ontem.

Vem um fluxo livre e rico de evocações. Capturo sons e cores da infância, converto fotografias em preto e branco em animação.

Quando fico com febre, não paro de falar. Deliro. Dou uma palestra exclusiva para a minha mulher. Óbvio que ela se assusta porque não calo a boca.

Mas é um reencontro com o meu passado, sem a censura dos sonhos e o medo dos pesadelos.

Febril, recordo que não conseguia dormir na casa de meu avô paterno. Apagava a luz do quarto e começava uma marcha de ratos pelo assoalho. Eu ouvia certinho a migração dos bichinhos pela extensão das tábuas. Para me assustar, o primo Beto dizia que os ratos se escondiam no piano durante o dia. Por muito tempo, não me aproximei do instrumento. Imaginava que os ratos saltariam das teclas nos recitais de minha tia.

Febril, recordo que viajava na infância deitado num pelego, no bagageiro do carro. Os pais armavam uma cama nos fundos da Belina. Eu e os irmãos vivíamos num universo à parte dos adultos. Brincávamos de Stop e acenávamos aos motoristas que se aproximavam do para-choque.

Febril, recordo que conhecia os vizinhos pelas suas árvores. Era o Edgar do pessegueiro, era a Florinda da laranjeira, era o Pedro da caramboleira, era o Alencar da bergamoteira. Os pés de fruta serviam de sobrenome às pessoas.

Febril, recordo que a minha avó materna me deixava pressionar os pedais da máquina de costura. Debaixo da cadeira, mexia o acelerador usando toda a força das duas mãos. Ela bordava nomes de noivos nas fronhas dos travesseiros, atendendo a pedidos de enxoval em Guaporé (RS).

Febril, recordo daquilo que nem sabia que era meu, revejo o que fui e me dá muita saudade dos meus mortos.

A minha consciência é somente uma questão de temperatura.

30 de julho de 2016 | N° 18595 
MARTHA MEDEIROS

O amor e tudo que ele é

Amor é uma forma de escapar da vulgaridade. Amor é uma mentira que amamos contar. Amor é um álibi para crimes e casamentos

O amor já foi uno, concreto e definido. Mas o século mudou e com ele as variantes do amor, que se multiplicaram. Hoje há diversas formatações para vivenciá-lo, são inúmeros os seus significados e ilimitadas as suas maneiras de encantar e transformar. O amor romântico eu e você para sempre é apenas uma de suas modalidades.

O que é o amor, afinal? Impossível resumir num só conceito. Amor é gratidão por alguém ter nos tornado especial. Amor é a realização de um ideal criado ainda na infância. Amor é a possibilidade de repetir o mais importante feito de nossos pais – aquele sem o qual não teríamos nascido. Amor é projetar no outro aquilo que nos falta. Amor é erotismo. Amor é uma experiência sensorial. Amor é carência. Amor é o gatilho para formar uma família. Amor é aquele troço sem razão que bagunça a nossa vida. Que melhora a nossa vida. Que piora a nossa vida. Que justifica a nossa vida.

Amor é uma forma de escapar da vulgaridade. Amor é uma mentira que amamos contar. Amor é um álibi para crimes e casamentos. Amor é a vingança contra a objetividade. Amor é divisão de fardo. Amor é um antídoto contra a solidão. Amor é uma invenção do cinema e da literatura. Amor é paz. Amor é a busca de um tormento que torne a vida mais emocionante. Amor é a vitória do cansaço, já que paixões sequenciais exaurem. Amor é o nome que se dá para uma emoção que nos domina e da qual não queremos ser libertados.

Amamos pais, irmãos, amigos. Amamos os namorados que tivemos e os que ainda teremos, amamos nosso marido até o dia em que ele não volta mais para casa, amamos nossos ídolos até que eles nos decepcionem, amamos nossos filhos mesmo que nos decepcionem, amamos nosso cão e nosso gato quase acima de Deus, amamos Deus acima de tudo pois cremos que ele não nos faltará, amamos a nós mesmos apesar de saber que nem tudo é amável em nós.

Amor não é uma desculpa esfarrapada. Ela é muito bem costurada.

Amor pode brotar de um olhar, de um beijo, de um desejo. Amor é encasquetar. Se alguém lhe faz perguntas a respeito, você, na falta de argumento melhor, responde que é amor, que sempre foi amor, e ninguém espicha a conversa porque contra o amor não há réplica.

Como pode alguém ter amado uma pessoa ontem e hoje amar outra, como pode ter amado uma mulher e hoje um homem, como pode amar duas mulheres ao mesmo tempo, como pode já ter vivido com vários, como pode sentir amor por um salafrário, como pode sentir-se inteiro repartindo-se em dois, como pode ser poli, multi, bissexual, bígamo, hétero, homo, fiel, infiel, amoral? Como, diante deste sentimento, ter alguma certeza?

O amor paira acima das classificações. Tem mil jeitos, mil formas, mil dobras. É a nossa maior proeza.

quarta-feira, 27 de julho de 2016



27 de julho de 2016 | N° 18592 
MARTHA MEDEIROS

Gafes virtuais

Entrou uma mensagem no meu WhatsApp de um ator bonitão, com quem eu nunca havia falado na vida, me convidando para um café a fim de conversarmos sobre uma possível parceria profissional. Disse a ele que seria complicado assumir o projeto que ele me propunha por questão de prazo, perfil e outros impedimentos, mas ele pediu que eu ao menos escutasse o que ele tinha a dizer e acabamos marcando o tal café, em tal lugar, a tal hora. Depois de tudo combinado, quis ser simpática e encerrar a troca de mensagens com um emoji sorridente ou com uma mãozinha com o polegar levantado, mas me atrapalhei e mandei um coração vermelho, gigantesco, batendo forte. Pura paixão.

Logo digitei o inevitável “ops, errei”, ele respondeu que já havia cometido mancadas muito piores, hahahaha, kkkkkkk, e por fim a despedida sóbria, como convém a dois estranhos.

Às vezes, tenho vontade de esganar Steve Jobs, Mark Zuckerberg e demais gênios do Vale do Silício que inventaram essas geringonças eletrônicas para conectar os povos e de quebra perpetuar gafes universais.

Você está no WhatsApp com uma amiga, aquela que sabe um segredo embaraçoso sobre você, e ao mesmo tempo com um grupo de 16 outras amigas (conversas simultâneas entre vários destinatários sempre me faz lembrar o filme Koyaanisqatsi). Ca-la-ro, como diria Alberto Roberto, que você vai mandar para todo o grupo, por engano, o comentário sigiloso que era destinado apenas à sua amiga confidente. E dá-lhe voltas para fazer com que as outras 15 pensem que entenderam o que não entenderam. Expert em enrolation: quem de nós não se tornou um?

Sobre o corretor automático, nada mais a declarar. É o maior puxa-tapete do espaço virtual.

Mas nada se compara aos enganos perpetrados por nossos dedinhos automáticos. Sei de mãe que já mandou nude para a própria filha quando deveria ser para os olhos do namorado only, sei de gente que por engano convidou para um jantar familiar o empreiteiro com quem estava negociando um orçamento, sei de empregador que mandou uma minuta de contrato para o funcionário errado e se viu obrigado a reajustar o salário dele, sei de homem que mandou declarações apaixonadas para a própria mulher e teve que explicar que romantismo todo era aquele depois de 31 anos de casados.

Sem falar das vezes em que a gente toca em cima da foto do perfil e acaba acionando o telefone, ligando para a criatura sem querer – nossos dedos, além de automáticos, são gorduchos demais para essas telas mínimas.

Ato falho? Sei não. Significaria que estamos o tempo todo enviando mensagens que nossa consciência não autoriza, e por isso o subconsciente se intromete e faz acontecer. Será? Prefiro acreditar que é apenas dislexia digital – e acidental. Ops.

sábado, 23 de julho de 2016



23 de julho de 2016 | N° 18589 
MARTHA MEDEIROS

O que fazer da vida

“O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica

Não tinha nem 10 anos de idade e era invadida por uma excitação boa a cada vez que alguém me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. Yeah! Estava confirmado que eu iria mesmo crescer, não era apenas uma hipótese fantasiosa. Eu então respondia: quero ser aeromoça! Se me acusassem de estar com a cabeça nas nuvens, eu aterrissava: então quero ser chacrete! Não importava se o desejo se cumpriria, eu simplesmente idealizava um futuro associado a coisas de que eu gostava, logo, me imaginava cantora, guitarrista (passava os dias ouvindo Suzi Quatro), balconista de supermercado (nas brincadeiras, sempre escolhia atender no caixa), tenista (o esporte da família), psicóloga.

Mentira, eu nem sabia o que fazia uma psicóloga. Só tinha certeza de que jamais seria médica de nenê. Queria me livrar do universo infantil e entrar logo no mundo adulto, que me parecia muito mais divertido.

Até o dia que tive que encarar o vestibular sem ter a mínima ideia de qual curso escolher. Acabei optando pela Publicidade porque uma amiga iria fazer também. Já que eu gostava muito de arte, de criatividade, de escrever, quem sabe não dava pé? Deu. E ninguém mais perguntou o que eu queria ser quando crescesse porque, afinal, eu havia crescido. E crescia junto a minha angústia, pois agora a pergunta era diferente: o que você vai fazer da sua vida?

Esta é uma questão que não abre os portais da imaginação, não induz ao sonho, ao contrário, procura nos enquadrar em algo que ofereça um firme suporte existencial. “O que você vai fazer da sua vida?” é, antes de uma pergunta, um julgamento sumário, uma crítica: o que você vai fazer da sua vida além de ficar perambulando pelas noites de sábado, além de programar feriados em Garopaba, além de namorar, além de fazer estágio não remunerado, além de juntar dólares para viajar, além de passar as tardes trancafiada no quarto ouvindo música, além de ficar com a cara enterrada em livros de poesia? 

Nada disso significava fazer alguma coisa da vida, ao menos não da vida que os outros esperavam que você tivesse, e você também esperaria, se soubesse lidar com assunto tão complexo. Não sabendo, tocou em frente, porque quem aguarda uma resposta absoluta não faz nada.

Então você trabalhou, casou, teve filhos, trabalhou, separou, casou de novo, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou, envelheceu, trabalhou, viajou, voltou, trabalhou e o final ainda está em aberto.

O que você faz da sua vida? A mesma coisa que todos, provavelmente. Ocupa o tempo enquanto ainda se diverte sonhando com o que quer ser quando crescer.



23 de julho de 2016 | N° 18589 
CARPINEJAR

Cadê a coxinha?

Passei na lancheria da escola para matar a saudade dos pecados de infância. Iria pedir um enroladinho. Já salivava ao imaginar a mordida na massinha. Aproveitaria os minutos antes de minha palestra em colégio na Capital para engordar e ressuscitar os sabores da meninice.

O barzinho parecia idêntico ao de minha época de estudante, com jeitão de trailer e a tampa da janela levantada. Mas não tinha enroladinho, este irmão menor do cachorro-quente.

O tio – todos os atendentes sempre serão tios para mim, não importa a minha idade – demorou a entender o que era enroladinho. Procurando me contentar, ofereceu um hossomaki. Juro que a minha audição tossiu de volta as palavras. Não esperava Tóquio em Porto Alegre, tanto que conferi o logotipo dos uniformes ao redor para me certificar de que não se tratava de um pesadelo.

– O quê?  – Sim, é o que mais sai no recreio – ele explicou. – Tá brincando, né?

– Não, os alunos têm preferência pelos rolinhos finos, quer experimentar? Ainda oferecemos temaki, kappamaki, tekkamaki e uramaki.

Não desejava comida japonesa às 10h da manhã. Qual o destino dos lanches perigosos e gordurosos das escolas? O que aconteceu com o rissoles? Onde foi parar o folhado? Cadê a irresistível coxinha?

Suava frio com o excesso de saúde na infância. Os dedos ágeis e aflitos no guardanapo terminaram trocados por pauzinhos? A mostarda e o catchup perderam sua realeza para o shoyu e o wasabi?

Ninguém mais mastigava pastelina com guaraná? Agora era suco verde e tapioca?

Que medo dessas turmas nutri, que desconhecem o poderio doce das balas Xaxá e 7 Belo. Será que os alunos pedem bolo integral de banana em vez de nega maluca?

Que receio dessa geração fitness que não experimenta o proibido, que come no lanche o mesmo que come no almoço e na janta e que não separa o mundo doméstico da casa do selvagem universo escolar.

Só o que faltava não mentir aos pais. Para a família, eu não relatava os feitos gastronômicos. Preservava a privacidade da gula. Fingia que adorava a merenda, um sanduíche insosso de ricota, e devorava um largo e maravilhoso pastel de carne, com o caroço do ovo saltando na pele dourada.

Amadureci porque sempre cultivei os meus segredos.


23 de julho de 2016 | N° 18589
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A SOLIDÃO É UMA PAREDE DE TIJOLOS


O que durante muitos anos não passou de uma impressão, dessas que alimentam a chamada sabedoria popular, foi cientificamente consagrado em uma pesquisa recente, chancelada pela Universidade de Harvard: a qualidade das relações sociais é que define a chance real de que alguém envelheça feliz. Muito mais do que os níveis de colesterol ou o controle rigoroso do perímetro abdominal.

E a construção de relações afetivas sólidas, ou não, começa inexoravelmente no menor dos nossos universos: a família. O que levamos para aplicação nas rodas sociais externas tem a marca do afeto edificado em domicílio. Por isso é tão suspeita a atitude dos que só se revelam solícitos e generosos com estranhos.

O senhor RR era um desses tipos ranzinzas com os seus, e de alguma influência política na comunidade. A gentileza externa, se descobriu depois, era apenas uma fachada para facilitar-lhe o acesso ao poder. Filho de um pai que herdara e pulverizara uma grande fortuna, cresceu com um sentimento de revolta contra os que haviam comprado o espólio da família. As pessoas mais próximas comentavam que ele parecia ter feito um pacto consigo mesmo de resgatar o patrimônio perdido, custasse o que custasse. 

Quando o conheci, tinha 78 anos e era muito mais rico do que qualquer ancestral jamais tinha sido. A cara enfarruscada antecipava que nada do que conquistara afrouxara as amarras da amargura. Nunca consegui vê-lo sorrir. Temi que tivesse desaprendido, se é que alguma vez soubera. Depois de um tempo, me acostumei com ele assim, porque afinal nada mesmo do que ele dizia ou argumentava tinha a menor graça.

Houve uma grande dificuldade para contatar algum familiar quando precisamos que alguém assinasse o consentimento informado para os procedimentos invasivos, indispensáveis na avaliação da operabilidade do seu tumor de pulmão. Ficou claro que ele tinha produzido uma prole de superocupados, sem nenhum tempo a perder, pelo menos não com ele. 

O Euclides era um negro velho com uma catarata visível e um ar resignado, e era a figura que mais se aproximava da ideia de família. Dormia sentado numa poltrona sempre postada atrás do ângulo de visão do seu chefe, mas atento a qualquer gesto ou ruído. Na noite anterior à cirurgia, o paciente fez um pedido típico dos solitários: “As informações referentes a minha doença devem ser repassadas exclusivamente a mim, pelo menos enquanto eu estiver vivo!”. Dada a minha dificuldade de comunicação com os mortos, aquilo me pareceu bem razoável.

Por meio do Euclides, soube que a ausência de qualquer membro da família no dia da operação se explicava por uma viagem programada havia meses e que, no dia anterior, levara para a França todos os filhos que lá se encontrariam com a mãe para a comemoração dos 70 anos dela. Pelo jeito, a ausência dele naquela festa não representaria um trauma insuperável para os viajantes. A parede que os separava tinha muitos tijolos.

Na última conversa pré-operatória, ainda escorreu um resíduo de rancor reprimido: “Traga todos os papéis de autorização que precisar para completar o seu serviço. Faça o que tem de ser feito e preste contas somente a mim!”. Do alto da sua prepotência, nenhum indício de medo ou de afeto, só rigidez e solidão. Esta combinação que, de tão maligna, diminui o impacto do anúncio de um câncer, diluindo-o no caldeirão do abandono, onde até a morte desejada se justifica.


23 de julho de 2016 | N° 18589 
L.F. VERISSIMO

Um bar no Leblon


Com tanta gente com medo de vir para o Rio, onde tem zika, assaltos e corruptos saindo, apropriadamente, pelo ladrão, é bom lembrar os visitantes ilustres que já estiveram por aqui e saíram ilesos. E imaginar que tivessem ficado, seduzidos pelo nosso sortilégio tropical, pela caipirinha ou por qualquer outra razão.

Imagine se os ficados se reunissem regularmente num bar do Leblon, desprezando suas diferenças de idade e das épocas em que estiveram no Brasil. Aquele ali com as longas barbas brancas, por exemplo, é o decano do grupo. Seu nome é Charles Darwin e ele chegou ao Rio de Janeiro num navio chamado Beagle. 

Apaixonou-se pelas praias, pelas florestas e pelas mulatas, abandonou sua expedição científica e ficou. Quando querem provocá-lo, os outros integrantes da roda pedem “Conta aquela da evolução”. É uma teoria meio maluca do velho sobre a seleção natural na evolução das espécies. Se tivesse voltado para a Inglaterra e publicado sua teoria, ela teria causado uma revolução no pensamento humano. Mas sair do Rio de Janeiro, nem pensar.

Essa que está chegando, caminhando com dificuldade, é Sarah Bernhardt. Era uma atriz famosa quando veio se apresentar no Brasil. Aqui, teve um acidente no palco, machucou a perna, a perna foi mal tratada no hospital e o resultado é que anda com uma perna mecânica. Ficou no Rio e acabou como assistente de figurinista da Globo, onde todos a chamam de “Madame Sarrá”.

Essa figura que acaba de sentar-se entre Darwin e Sarah é interessantíssima. Romeno ou coisa parecida. Seu nome é Saul Steinberg. Desembarcou no Recife, foi para o Rio e, apesar de ter, como lhe diziam, “um traço meio esquisito”, conseguiu emprego numa agência de publicidade e vendeu uns cartuns para a Cruzeiro. Quando a revista fechou, o Millôr ainda tentou ajudá-lo, mas Steinberg preferiu deixar, brasileiramente, para lá e arranjar um cargo público. O negócio dele é um chopinho e um bom papo.

E há também os “professores”, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss. Os dois estão sempre de bermudas e sandálias. Braudel lecionou por um tempo na USP e escreveu alguns livros mal recebidos pela crítica acadêmica brasileira. Desanimou e foi para o Rio, onde leva uma vida tranquila, joga seu voleizinho de praia e não perde reunião do grupo. 

Lévi-Strauss veio ao Brasil fazer um curso de antropologia, casou-se com uma índia (“Que tetons”, diz ele até hoje, com saudade) e, depois de viúvo, instalou-se num pequeno apartamento em Copacabana, onde se dedica a sua paixão secreta, ver novelas na TV. Sempre é o último a chegar, sob vaias dos outros, depois de ver as novelas das seis, das nove e das onze.

E quem é esse que chega, irritado como sempre? É Orson Welles! Sim, o diretor de Cidadão Kane. Ele nunca mais saiu do Rio, depois que veio ao Brasil fazer um filme que nunca completou, na década de 1940. E nunca mais fez um filme, apesar de estar em luta constante para conseguir financiamento. Ocupa-se em anarquizar os filmes dos outros. Mas hoje parece estar de bom humor. Senta e faz um sinal para o garçom:

– Ó, gente boa, um chope e aquela linguicinha!



23 de julho de 2016 | N° 18589 
DAVID COIMBRA

O que move o idiota

O pai do rapaz que foi preso por associação com o Estado Islâmico disse que o filho é um idiota – li na matéria do Carlos Rollsing, em Zero Hora.

Os dois, pai e filho, criavam galinhas em Morro Redondo, no interior profundo do Rio Grande do Sul. Levavam uma vida tranquila, até porque não deviam ter outra opção. Dormiam cedo, acordavam cedo. O pai só estranhava que o filho não saía do zap zap, que é como ele chama aquele aplicativo de mensagens que a Justiça brasileira adora bloquear. Na verdade, nem era o zap zap. O idiota se comunicava com seus amigos idiotas por outros meios.

Ao falar do caso, o pai volta e meia embargava a voz, contou o repórter. Fiquei com pena. Como consolo, diria a ele que jovens, em geral, são idiotas. Muitos, inclusive, deixam de ser jovens, mas não deixam de ser idiotas.

O caso desse rapaz é interessante, porque é ilustrativo. Sua família não veio do Oriente Médio, ele não viajou à Síria, nem muçulmano é. Provavelmente, seu conhecimento do que se passa naquele gomo do mundo tem a profundidade de uma letra de axé music.

Por que, então, ele se alinhou ao Estado Islâmico? O pai respondeu: porque é idiota.

Mas o idiota sempre tem uma motivação. Ele precisa de algo que justifique o exercício da sua idiotice. É isso que os seres humanos, idiotas ou não, fazem o tempo todo: procuram um sentido para suas existências. A vida humana necessita de sustentação teórica tanto quanto de água. É o que nos diferencia dos bichos. O bicho vive. Ponto. O homem tem de saber por que vive (ou achar que sabe).

A razão da existência pode ser qualquer uma, embora as mais populares sejam ideologia e religião.

Para o idiota, não faz diferença. Ele pode ser muitas coisas. Pode ser um fanático político, que acredita que quem não concorda com ele é canalha. Ou um religioso fundamentalista, que mata em nome de Deus. E aí não me refiro apenas aos muçulmanos. Não. No começo dos anos 300, o imperador Constantino jurou que, na véspera de uma batalha importante, sonhou com uma cruz luminosa acompanhada de uma voz que lhe aconselhava: “Com este sinal, vencerás!”.

Constantino mandou desenhar cruzes nos pavilhões de seu exército, e venceu. O imperador disse a seus soldados que Jesus, o profeta do amor, os ajudou a decepar, mutilar e matar os próximos que militavam no outro exército.

Constantino, no entanto, não era um idiota: era um espertalhão. Idiotas foram os soldados que acreditaram nele. A cruz deu sentido a muitas idiotices humanas, como agora o dá o crescente.

No momento em que alguém tenta explicar um ato terrorista por alguma motivação que não seja a idiotia humana, esse alguém está se aproximando do idiota e da sua idiotia. Dizer, por exemplo, que a Europa sofre atentados devido à colonização do passado é o mesmo que dizer que a minissaia motivou o estupro. A Europa é vítima do terror, e a vítima, nós sabemos, nunca é a culpada.

O que estou dizendo é que a religião, a ideologia ou o futebol não são causas da idiotice. São meios. O que os idiotas querem não é salvar as almas, os pobres ou a zaga do seu time. Eles querem o mesmo que queria o idiota de Morro Redondo: respeito.

O idiota quer ser respeitado. Ao dar um sentido à sua vida, ele pretende se tornar, de alguma forma, admirável. Ele anseia ser admirado pelas outras pessoas.

E isso, surpreendentemente, é uma boa notícia sobre o ser humano. Porque para nós, homens e mulheres que vivemos debaixo do sol, o que importa, mais do que tudo, mais do que as nossas vidas, mais do que as vidas de outras pessoas, são as outras pessoas. Parece uma contradição. Não é. Até as pessoas que matam outras pessoas importam-se, apenas, com as outras pessoas.



23 de julho de 2016 | N° 18589 
ANTONIO PRATA

A TOCHA


Quase um ano atrás, me ligou o Naief, editor de Esportes da Folha. A Coca-Cola tinha disponibilizado uma vaga no revezamento da tocha olímpica, em Itu: eu toparia correr e escrever uma crônica? Topei. Naquelas priscas eras, pré-desabamento da ciclovia, pré-microcefalia, pré- estado de calamidade pública no Rio e de desalento geral no Brasil, minha maior preocupação era com um possível tombo. 

Não queria ter que alterar o meu currículo: “Antonio Prata é paulistano, escritor, roteirista e extinguiu a milenar chama do Olimpo em julho de 2016, ao pisar no próprio cadarço, caindo de cara numa poça d’água na Rua dos Andradas, 113, Itu. Atualmente se dedica ao seu primeiro romance e à sua quinta defesa num dos inúmeros processos movidos pela Coca-Cola”.

Conforme a data foi se aproximando, contudo, e as notícias sobre os Jogos foram desviando do esporte para as suspeitas nas obras, o desleixo com o legado, o descumprimento das metas ambientais, comecei a ficar ressabiado. Será que carregar a tocha não seria dar apoio ao descaso, à corrupção, não ajudaria a dourar a pílula das eternas maracutaias nacionais?

Estava imerso em tais caraminholas, lá em Itu, na véspera do revezamento, quando meu pai telefonou. Ao saber que eu carregaria a tocha, ele ficou eufórico. Diria, até, emocionado. “Por que você não me falou antes?! Eu ia aí te filmar!” (Meu pai mora em Florianópolis e só costuma sair da ilha pra casamento ou velório.) Expliquei minhas reticências. “Meu filho, que isso?! É Olimpíada! Essa tocha não é do PMDB, essa tocha é de Zeus! Do Cassius Clay! De Apolo! Do João do Pulo! Do Jesse Owens! Deixa de ser besta, vou ligar pro Chico em Sorocaba e ver se ele pode ir aí te filmar!”

Só entendi o meu pai no dia seguinte, no ensaio para o revezamento, quando a competentíssima Frances, da organização do Rio 2016, chamou dois condutores à frente da roda: Fernando Telles, 76 anos, do time brasileiro em Melbourne, 56, e Roma, 60, nos saltos ornamentais, encenou o condutor que receberia a chama; Stephanie Forcin, 18, lutadora de tae-kwon-do, treinando para uma vaga em 2020, encenou a que passaria; um nó se formou na minha garganta e um narrador esportivo se instalou na minha cabeça, tão piegas quanto verdadeiro: “É a experiência e a vontade! É a conquista e a esperança! É o ontem e o amanhã construindo, juntos, o hoje, em Itu!”.

O nó virou choro minutos mais tarde na Rua dos Andradas, 113, ao receber a chama do Rogério Brito – peso-pena que representou o Brasil em Barcelona, 92, e Atlanta, 96, apesar de não ter dinheiro para comprar os próprios tênis e ter de treinar com um par emprestado pelo técnico. A Olimpíada é dessas pessoas, compreendi, não dos ratos que enchem a pança e o bolso desviando dinheiro de estádio, estatal, merenda e hospital.

Durante as quase quatro semanas dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos veremos os melhores atletas do mundo competirem em pé de igualdade, sem fraude em licitação, sem apadrinhagem, caixa 2, golpe ou estelionato. Espero que nos sirva de exemplo. Espero, mais ainda, que ao nos comover com as inúmeras histórias e conquistas dos nossos setecentos e tantos esportistas, possamos fazer, ao menos em parte, as pazes com o Brasil. “Que a tocha nos ilumine!”, diz o locutor, na tribuna de imprensa do meu córtex. “Que a tocha nos ilumine!”


23 de julho de 2016 | N° 18589
ARTIGOS - FLAVIA MORAES*

ASAS ADQUIRIDAS


Dédalo provocou a ira do rei Minos e terminou preso no Labirinto que ele mesmo havia construído a pedido do monarca.

Sabendo que seu cativeiro era intransponível e que Minos controlava terra e mar, com cera de abelhas e penas de pássaros Dédalo construiu um par de asas para logo agitá-las suspenso no ar. Ao dar asas a Ícaro seu filho, Dédalo recomendou que ele voasse nem tão alto de forma que o calor do sol pudesse derreter a cera que prendia as penas, nem tão baixo que o mar pudesse molhá-las.

No final da longa escadaria do número 1.412 da Presidente Roosevelt, me espera um par de asas. São muito significativas e foram planejadas há algum tempo, mas só agora parecem realmente fazer sentido.

O mestre tatuador é mestre também na arte de fazer amigos. Logo fico à vontade e sem piscar me pego falando coisas que ruborizariam até meu terapeuta. Então, entre centenas de sketches de tatuagens que habitam as paredes e o teto do pequeno estúdio, minhas fantasias e mitos vão ganhando vida nos traços do incrível Edu Tattoo.

Dentro de alguns dias, abandonarei mais uma zona de conforto pra seguir novos rumos e realizar um sonho há muito acalentado. Mas tanta ilusão, quando chega, traz junto uma certa nostalgia e uma reflexão recorrente: como encontrar o equilíbrio entre segurança e liberdade?

Com certeza, essa não é uma questão particular, e deve habitar pelo menos um dos corações daqueles que vivem sempre com dois… ou mais.

Ainda ontem, estava saindo de Porto Alegre pela primeira vez pra tentar a sorte em São Paulo, cidade que me reservava uma bem-aventurada carreira. E, sempre na vertiginosa velocidade que só a Pauliceia conhece, a mesma inquietação me assaltava uma e outra vez.

Como saber o momento certo de parar? Quanto custa o tempo que você perde pensando apenas em ganhar? Quanto é realmente necessário acumular? Quanta grana, quantos projetos, quantos prêmios e, ainda, quantas noites sem dormir e finais de semana sem parar?

São questões que podem ficar ainda mais difíceis de responder quando você realmente ama o que faz, quando trabalhar não é um fardo e você literalmente não vê o tempo passar. Mas, paradoxalmente, zonas de conforto são repletas de interrogações…

Interrogações sobre as experiências que você não viverá, sobre os milhões de portas que precisou fechar para dar apenas um passo à frente, sobre todas as coisas que ainda não fez e talvez nunca faça e sobre riscos que podem muito bem ser reais, ou não. Sobre as fantasias que ficarão para sempre adormecidas na sua cabeça, e tudo aquilo do que desistiu para estar onde está agora e também as perguntas, que erroneamente pensou não terem resposta.

É estranho o pouco do universo que conseguiremos realmente ver presos em um único corpo, em um único lugar e em uma única vida. É estranho que qualquer um de nós possa se sentir em casa em um mundo tão desconhecido.

Difícil não pensar no intransponível labirinto de Dédalo.

E então, mesmo sabendo o final da história, escolho ser Ícaro e voar. Nem que para isso tenha que aprender a desfrutar de alguma dor.

– Vamos lá Edu, mande tinta nessa pele!

 *Cineasta flavia.moraes@gruporbs.com.br

23 de julho de 2016 | N° 18589 
MARTA GLEICH

Nossa marca, nossa alma


Para você, que está neste momento lendo o jornal, o que é a Zero Hora?

Nos últimos meses, o pessoal aqui da ZH questionou de verdade: o que é a Zero Hora e o que ela quer ser? Os que trabalham com marketing chamam isso de “posicionamento”. Mas também pode-se dizer que é a alma.

Pense nas motos Harley Davidson: aventura, liberdade, rebeldia. É o cerne da marca. Pense nos celulares ou computadores da Apple: o que vem à cabeça? Design, inovação, tecnologia. Posicionamento é isso. É o que a marca representa, a expressão do seu propósito. Então, voltando para a ZH. Qual a nossa alma?

Nossa vida é entender os gaúchos. E estamos ao lado desse povo para construir um Estado melhor. Acreditamos que contribuímos para isso fazendo jornalismo profissional. Nosso posicionamento se resume numa frase linda e forte. Veja se você gosta tanto quanto eu gostei:

Zero Hora. Perto para entender. Junto para transformar.

Na última segunda-feira, foi mostrado na Redação e em todas as áreas da empresa o vídeo que retrata o propósito da marca: a essência do que nós somos e o nosso compromisso com a sociedade. Dias antes dessa apresentação, o Marcelo Leite, nosso diretor de Marketing e Produto, me chamou na sala dele para mostrar o vídeo. Assisti em silêncio e, de repente, muitas lágrimas brotaram sem que eu conseguisse segurar. 

O Leite teve de buscar uma porção de lenços de papel. Sabe quando você faz a vida inteira, todo dia, uma coisa, e alguém resume isso num filme de dois minutos e pega na veia? Você, que está lendo esta carta, imagine alguém sintetizar num curto filme o que você faz, por que acorda todo dia, qual o seu propósito, qual a sua marca, a sua razão de existir. Não tem como não gastar todos os lenços do Marcelo Leite!

Quer assistir ao vídeo de que estou falando? Acesse em zhora.co/pertojunto. Esse filme abre a primeira fase da campanha de posicionamento da marca Zero Hora. Depois, virão anúncios na TV, no jornal (o primeiro deles, nesta edição, nas páginas 32 e 33), no rádio e nas plataformas digitais. Nas redes sociais, nossos comunicadores já estão compartilhando o link.

Mas como isso vai impactar os leitores?

É a renovação do nosso compromisso com o público. Se trabalharmos direitinho, reposicionar a marca vai resultar num jornal que esteja mais a seu lado, que entenda melhor o que você quer e do que precisa, que vibre com suas emoções e que construa, junto, uma vida e um Rio Grande do Sul melhores. Com jornalismo forte, independente, plural, responsável e comprometido com a sociedade.

quarta-feira, 20 de julho de 2016



20 de julho de 2016 | N° 18586 
MARTHA MEDEIROS

Perguntas que me faço

- A não ser para quem está fugindo da polícia, qual a vantagem de um carro ir de 0 a 100 km/h em sete segundos?

- Alguém gosta de receber telefonemas de telemarketing aos sábados e domingos? (Perceba a condescendência nos outros dias da semana.)

- Os prazos de validade carimbados nos produtos são quase sempre muito pequenos ou muito borrados. Má-fé ou o quê? - Não seria um abuso os restaurantes cobrarem em média 100% a mais sobre o preço de custo de uma garrafa de vinho?

- Qual é a dificuldade de estacionar o carro entre as duas faixas que delimitam uma vaga? A pressa seria tanta, que justificaria largar o carro de qualquer jeito, ocupando duas?

- Alguém decide o voto pelos beijos que um candidato distribui em bebês e pela coragem em comer pastéis de procedência duvidosa?

- Não lembro ter visto um jogador de vôlei ou um nadador colocar o dedo na boca pedindo silêncio à torcida adversária depois de marcar um ponto ou quebrar um recorde. Por que alguns jogadores de futebol insistem em fazer o gesto presunçoso de “calar a torcida” depois de um gol?

- Quem mede os metros de distância obrigatórios que a Justiça determina entre namorados que saíram no tapa? - Se Deus fosse mulher, teria descansado no sétimo dia?

- “Os bons vão primeiro” pode ser um consolo para a morte de um jovem, mas isso significa que fazemos parte da turma dos “vasos ruins”?

- Qual o motivo de exigir que os passageiros façam o check-in no totem e só depois despachem a mala no balcão do aeroporto? Não era melhor antes, quando se fazia tudo de uma vez? Totem deveria atender apenas quem viaja com bagagem de mão.

- Só eu fico feito uma barata tonta quando os supermercados trocam os produtos de lugar? - Por que a finada atriz Nair Bello é a musa das palavras cruzadas?

- Melania Trump não teve vergonha de plagiar o discurso que Michelle Obama fez em 2008. Será que o plano é não ajudar o marido bufão a ser eleito? (Tomara que funcione.)

- Você é um doido varrido que simpatiza com o Estado Islâmico, mas tem três filhos. Que chave desliga no cérebro para conseguir passar com um caminhão por cima dos filhos dos outros?

- Penso que extremistas se envolvem em ações suicidas para garantir um grand finale à sua vida medíocre, mas se for verdade que eles acreditam que serão recompensados com 72 virgens durante a vida eterna, não estarão valorizando o savoir vivre que tanto condenam?

- Aliás, quem em sã consciência deseja a vida eterna?

sábado, 16 de julho de 2016


16 de julho de 2016 | N° 18583 
MARTHA MEDEIROS

Um meio louco e outro também


A peça A reunificação das duas Coreias (em cartaz no Rio e que virá para o Porto Alegre Em Cena) é daquelas que a gente sai sem entender direito o que aconteceu. Vai compreendendo aos poucos, durante o trajeto entre a saída do teatro e a chegada em casa, talvez ainda sem saber se gostou ou não, mas reconhecendo que, de alguma forma, foi atingido. A montagem reúne 18 esquetes independentes contando rápidas histórias sobre relacionamentos. Os sete atores são ótimos. A direção de João Fonseca é empolgante. O texto do francês Joël Pommerat é aparentemente simples, o subtexto é que é potente: as palavras, no amor, mais atrapalham que ajudam.

Logo no início, uma das várias personagens interpretadas por Louise Cardoso sentencia: o amor é ainda mais bonito quando é complicado.

Foi dada a largada para o que virá: uma sequência de cenas meio reais, meio absurdas. Um casal se separa porque tudo entre eles é perfeito, porém não há amor. E outro se separa porque nada dá certo entre eles, mesmo havendo amor. O lógico e o ilógico flertando descaradamente na nossa frente.

O desejo simultâneo de ficar e ir embora – quem nunca? Passar da adoração ao ódio em poucos minutos – quem nunca? E tem as autodefesas. Aquele que esbraveja, amparado em seu ceticismo, que o amor não existe, que não passa de uma reação neuroquímica, sofre o diabo por causa dele, claro.

O medo que sentimos de pessoas 100% verdadeiras. Por que elas não entram no jogo e fingem como todo mundo? Nada mais estranho e amedrontador do que alguém que garante estar no controle de suas emoções.

Lidar com coisas que parecem (cantadas, confissões, insinuações), mas não são. Ou que são (cantadas, confissões, insinuações), mas não parecem. De deixar qualquer um doido.

Não por acaso, o que mais se houve em meio aos embates cênicos da peça é: “Você está louca!”, “Você é que é louco!”. Queremos nossa porcentagem nos royalties. Esse melodrama é nosso.

Quem se recusa a amar está se recusando a viver o jogo mais arrebatador da vida. De fato, é tudo uma maluquice, pois dois universos tão distintos (você e sua herança familiar, o outro e a herança dele) têm disparidades que deflagram inúmeros curtos-circuitos, e mesmo assim a gente tenta, a gente insiste, a gente acredita que pode ser feliz. E consegue, mas não o tempo todo. “Todo” e “tudo” são abstrações que perseguimos com a inocência que nos resta.

É assim, fazer o quê? São sempre dois birutas, um do norte, outro do sul, unindo-se com a intenção de alcançar alguma coesão nessa batalha perdida (love is a losing game), mas delirantemente apaixonante.


16 de julho de 2016 | N° 18583 
CARPINEJAR

Guardadora
Não sou de fazer suspense nem sei contar piada.

Eu sou a própria piada, o que estraga qualquer contação de história. Sou mais engraçado quando fico sério. Nasci na época errada: um astro do cinema mudo no século 21.

Nunca seguraria um segredo biográfico até a morte de alguém, ou não seria capaz de não transar antes do casamento. Evito realizar promessas de propósito para não ser amaldiçoado. Não juro beijando os dedos.

Não poderia participar de nenhuma máfia porque seria morto na primeira semana. Eu me desperdiço rápido, com tendência letal à fofoca. Nem vivi ainda e já estou contando. Para mim, véspera já é notícia, quase acontecimento é experiência. Preciso cuidar para a minha ansiedade não atropelar a existência.

Mas há gente com o dom de se guardar para os grandes momentos. Com a vocação de reunir as forças para o apogeu da sensibilidade. Como a Luiza. A Luizinha de Nazaré, de 77 anos, que mora sozinha em Anta Gorda (RS), a 190 quilômetros de Porto Alegre.

Ela sofre de osteoporose. Às vezes, tem crises sérias a ponto de não ter força para se levantar. Fica acabada, triste, com ossos frouxos, como um quebra-cabeça que carece de algumas peças, e depende de ambulância para ser decifrada pelo seu doutor em Porto Alegre.

Os plantonistas do hospital local não tiram uma palavra de sua boca, uma descrição do que está acontecendo em seu corpo, um sintoma qualquer, não têm nem informações para preencher o prontuário. Entram em pânico com o silêncio irredutível de Luizinha.

Ela não fala. Só fala na presença de seu médico. Seu médico é seu advogado. Parece que a doença é um crime pessoal.

Entra calada e sai calada da emergência do hospital da cidade, só troca gemidos e resmungos com os enfermeiros.

Testemunhando a aflição infinda da paciente e desconhecendo o seu temperamento arisco, um dos socorristas inventou de oferecer um analgésico para aliviar a sua tormenta. Ela começou a gritar sem parar, como um alarme de carro.

Luizinha ficou profundamente ofendida com a oferta. No fim, explicou para o perplexo atendente:

– De modo nenhum, não quero tomar nada para me aliviar. Quero chegar ao médico com toda a minha dor.

quarta-feira, 13 de julho de 2016


13 de julho de 2016 | N° 18580 
MARTHA MEDEIROS

Não pode ser em vão


Uma das lembranças mais nítidas e profundas da minha infância está relacionada à sala de estar onde meu pai se instalava para ouvir música depois de chegar do trabalho. Ele era o DJ da família. Com a mulher e os filhos em volta, colocava para tocar o melhor da MPB e também Burt Bacharach, Ray Charles, Astor Piazzolla e Beatles. Se comparado a outros pais da época, um homem antenado e de bom gosto, mas o que mais me surpreendia era a paixão que ele tinha por uma maluca de voz rasgada que usava óculos redondos e umas mechas coloridas no cabelo. Foi ele que me apresentou Janis Joplin.

Nesta semana, meu pai completa 80 anos e ainda é alucinado por música, apesar de hoje estar mais para Schubert do que para o rock e o blues. Um dia chego lá – na música clássica. Ainda estou presa aos rebeldes que cantam com o nervo exposto, e ao assistir ao documentário Little girl blue, sobre Janis, voltou tudo: a infância, minha adolescência, minha formação musical e a lembrança de como me tornei quem sou.

O filme só é recomendável para quem é fã da cantora. Os primeiros 20 minutos são enfadonhos e não é uma grande realização cinematográfica – vale pelo espólio artístico de Janis. A história da menina fora dos padrões, que se achava feia e que era esnobada pelos rapazes, mas que acabou se encontrando na música e através dela escancarou toda a sua carência, toda a sua necessidade de ser amada, toda a angústia e o medo de que sua vida fosse vivida em vão.

Sabemos como esta história terminou: ela foi mais um talento que saiu de cena aos 27 anos por causa de uma vida embalada por muita bebida e droga, a exemplo de Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse.

Admiro os talentos de cara limpa (nem todos os meus heróis morreram de overdose, a maioria deles segue viva e sóbria), mas arrasto uma asa para aqueles que entregam a alma e dão saltos sem rede. Saí do cinema tentando lembrar quem são hoje os artistas vulcânicos, aqueles que realizam sua arte às ganhas, e, talvez por estar condicionada pelo filme, só me vieram à cabeça Cássia Eller, Cazuza, Renato Russo, Tim Maia, Raul Seixas. Os que já se foram.

Eu sei, os tempos são outros. Tanto aqui quanto lá fora, são inúmeros os artistas que superaram a fase das viagens lisérgicas e se mantiveram criativos e operantes (o que dizer de Keith Richards, que ainda enterrará a todos nós?), mas tenho um carinho quase maternal por aqueles que desceram muito fundo em busca de sei lá o quê. Os que não encontraram outra maneira de se conectar com suas emoções mais cruas, mais livres e incendiárias.

Janis Joplin, a exemplo de alguns de seus colegas doidões, não chegou nem perto dos 80 anos, mas, como eles, deixou um legado eterno.

terça-feira, 12 de julho de 2016



12 de julho de 2016 | N° 18579 
CARPINEJAR

Autoescola para condutores de guarda-chuva

Porto Alegre é maravilhosa, pena que foi construída embaixo de uma goteira. Mas o problema não é a chuva frequente, é a nossa falta de profissionalismo diante da chuva.

Deveria existir uma autoescola para quem dirige guarda-chuva, com o mínimo de 25 horas de aula prática. Deveria ser criada uma nova categoria na carteira de habilitação. Deveria existir um código de trânsito para se deslocar nas marquises, com preferência para os transeuntes de capa. Deveria existir uma tropa de azuizinhos fiscalizando as barbeiragens dos usuários, os esguichos de poças e o estacionamento em locais proibidos, em especial na saída aglomerada de lojas e de farmácias. A arrecadação de multas superaria a antecipação do IPTU.

As pessoas não sabem conduzir um guarda-chuva. As manobras são altamente perigosas. Conheço gente que nunca fez baliza para fechar um, nem sequer recua antes de recolher o seu objeto e acaba agredindo o rosto de vários pedestres desavisados.

Caminhar na chuva é um excelente psicotécnico. Pressupõe raro equilíbrio entre o dentro e o fora, o motorista necessita manter a cabeça ereta para apanhar o horizonte sem jamais deixar de reparar onde está pisando.

O guarda-chuva não é uma invenção filantrópica. Não poderia ser vendido indiscriminadamente. É uma bengala com ponta de lança. Uma vareta solta torna-se faca apontada da baioneta. Não é por menos que é arma de vilões como o Pinguim de Batman, não é à toa que foi proibido o seu ingresso em partidas de futebol.

Guarda-chuva requer manejos talentosos. Reivindica estudo e treino. Nas mãos erradas, há o sério risco de nocautear velhinhos, pisar em cachorros, subir em mendigos ou arrastar crianças.

Se não é brincadeira fora daqui, no Sul ainda é pior. As chuvas nos trópicos não são monótonas a exemplo da Europa. Não respeitam nem o estilo das estações. Mudam conforme o choque inesperado das frentes frias com as quentes.

Sair de casa significa enfrentar um inimigo qualificado. Não é possível segurar o cabo do mesmo jeito e com idêntica força.

Tem a chuva canivete, que exige uma leve inclinação de viseira. Tem a chuva ventania, em que a água parece vir de baixo, a única defesa é dançar frevo. Tem a garoa, invisível, na qual você dá carona para alguém, não vê a chuva vindo e a pessoa ao lado – coitada – fica toda molhada. Tem a tempestade, em que o guarda-chuva vira na esquina e sobe como um balão. 

Tem o dilúvio, que sindicaliza as bocas de lobo e mobiliza os esgotos e nos surpreende com uma correnteza de frente. Tem a chuva de pedra, em que o céu devolve todos os gelos que você deixou de repor nas formas da geladeira nos últimos 10 anos.

Durante o toró porto-alegrense, cuide ao atravessar a rua e cuide muito mais para não ser atropelado na calçada.

sábado, 9 de julho de 2016


09 de julho de 2016 | N° 18577 
MARTHA MEDEIROS

Tocar a felicidade com os dedos

Entendi que a felicidade não é um alvo concreto atingido, e sim a conexão profunda que fazemos com uma emoção subitamente despertada

Quase consigo visualizar a cena. O músico e poeta Serge Gainsbourg está em Londres, o ano é 1971. Numa clínica privada, sua mulher Jane Birkin está em trabalho de parto. Ele alterna batidas aflitas na porta do quarto com idas ao bar do outro lado da rua. Até que nasce Charlotte, que, por uma série de contingências e burocracias, é proibida de ser visitada pelo pai. Quatro ou cinco dias depois, ele recebe a permissão e, após vê-la, sai em caminhada pelas ruas. É madrugada. Chove. Ele anda a esmo por duas horas, em total estado de encantamento. Mais tarde, diria sobre o episódio: Nunca fiz um passeio mais feliz na minha vida. Naquela noite, toquei a felicidade com os dedos.

Pincei esse relato do ótimo livro de entrevistas Entre aspas 2, de Fernando Eichenberg. Fiquei alguns minutos pendurada nesta frase. Tocar a felicidade com os dedos.

Não costumamos ser muito delicados com a felicidade. Geralmente queremos conquistá-la, agarrá-la, retê-la e sorvê-la: verbos antropofágicos que induzem a uma dominação ansiosa e sem chance de fuga. Estamos sempre famintos dela e, quando a chance aparece, nhac. Garantimos nosso quinhão.

Você compra sua felicidade em butiques, agências de viagem, mesas de restaurantes, e depois a fotografa e posta no Instagram e no Face. Está capturada sua felicidade. Enquadrada. Sobrevivendo através da memória.

Mas não através da poesia. A felicidade não retribui a assédios grosseiros. Não gosta de muito barulho. Tem sensibilidade a holofotes. Quem gosta de festa é a alegria. A felicidade prefere ser encontrada – e tocada – com mais discrição e leveza.

Sentada numa pedra diante de um lago, eu estava só. O ano era 1986. Foi talvez minha primeira impressão de felicidade absoluta – tudo que eu havia vivido antes eram alegrias. Naquele exato momento que não tinha nenhuma importância, numa data que não era alusiva a nada, eu entendi que a felicidade não é um alvo concreto atingido, e sim a conexão profunda que fazemos com uma emoção subitamente despertada.

Você inaugura uma nova etapa de vida. Não teme mais as interrogações. Descobre-se capaz de amar num estado de pureza plena. Você se perdoa. Você se cura. Você se reconhece. Consegue ser grato por coisas mínimas. E por bênçãos extraordinárias. Você perde o medo da vida. Você entende o que está acontecendo. Você sente a potência de um sentimento especial sem precisar segurá-lo com as mãos, sem retê-lo com as palavras, sem sofrer pelo seu inevitável desaparecimento. O simples roçar de dedos no sublime garante a eternidade do instante.


09 de julho de 2016 | N° 18577 
CARPINEJAR

A casa no pátio

Nunca fiz nenhum piquenique, de preparar sanduíches, levar térmica de café e descansar debaixo das árvores, de estender uma longa toalha quadriculada e sentar à toa com amigos e familiares.

Não foi por falta de convite, acredito que quem gosta de piquenique são as abelhas e as formigas. Na melhor das hipóteses, sairei inchado de picada de mosquito. Minha pele é altamente alérgica. Sou urbano por uma questão de saúde.

Mas sempre fui devoto do pátio, com espaço para o trapézio das frutas e das aventuras nos muros e telhados. O grande dia da minha infância era o da faxina. Quando se esvaziava a casa inteira para dar conta da sujeira grossa, que não podia ser feita com a velha “feiticeira”.

Os pais carregavam os móveis para fora. Inventava que estava doente e ia sendo carregado junto. Contentamento de ser pequeno e confundir a mudança de hábitos com férias.

O sofá verde ganhava assento debaixo do abacateiro, finalmente lindo contrastando com a terra vermelha – eu deitava em suas almofadas por horas a fio, olhando os mínimos movimentos do tronco e descobrindo os ninhos dos pardais.

Eu também participava da surra dos tapetes nos varais. Eles apanhavam de vassoura por tudo o que esconderam ao longo do tempo. A poeira subia luminosa. Cena pungente e tocante. O pólen mágico dos sapatos acumulados caminhava para o céu.

As colchas, cobertas e travesseiros vinham tomar sol ao lado dos colchões, pertinho da horta. Eu deitava nos tecidos quentes. Entontecia de calor. Chegava a sonhar e perder a noção da realidade. Até que alguém chegava para estragar o prazer e me enxotar da súbita realeza.

Havia uma sensação de troca de endereço, de circo, de festa no meio da bagunça.

Os adultos estavam enlouquecidos limpando geladeira, segurando a mangueira, esfregando o rodo, aspirando os corredores, e eu contente com as cadeiras desobrigadas de suas funções, escalando montanhas imaginárias com os irmãos. Botava os casacos de meu pai, esquiava com os saltos da mãe, aproveitava as roupas lavadas para montar um teatro infinito de personagens. Não havia diversão igual – uma vez por mês tomava conta da residência.

Ao final, já de tardezinha, com o crepúsculo dourando as folhas, brincava de cama a céu aberto, testemunhando o vaivém das nuvens. Uma delícia ter um quarto sem paredes, ter o mundo suspenso, ter a liberdade de não precisar ser ninguém, ter a imortalidade do vento no rosto e absoluta ausência de pressa.

quarta-feira, 6 de julho de 2016


06 de julho de 2016 | N° 18574 
MARTHA MEDEIROS

Amor orgânico


Ontem à noite, participei de um encontro promovido pela The School of Life, no Rio, onde debati com o cineasta João Jardim sobre o amor nos dias atuais. Não posso dizer se nos saímos bem, pois ontem à noite esta coluna já havia sido enviada para o jornal, ou não estaria sendo publicada na edição de hoje, mas o assunto andou ocupando minha mente nas últimas semanas, e o que andei pensando compartilho aqui.

As coisas mudaram, como se sabe. O formato “feliz para sempre” não é mais um campeão de audiência, primeiro porque o “para sempre” tornou-se longevo demais para quem elegeu um grande amor já na segunda década de vida e também porque todo comprometimento com a eternidade cai na idealização, e idealizar é sofrer.

Óbvio que é possível ter uma relação amorosa que resista por décadas – muitos têm – mas duração não consta mais da lista de quesitos obrigatórios. E essa é uma das tantas libertações que estão devolvendo o amor à categoria dos prazeres da vida, e não das convenções.

Se antes existia apenas um único padrão de relacionamento (casamento + filhos (+ amante) + a morte que os separe), hoje cada pessoa cria o próprio padrão e está tudo certo. Já não existe amor errado, amor proibido, amor inadequado, amor frívolo, amor condenável. Ele voltou a ser um assunto íntimo e particular, e não uma satisfação à sociedade.

Um amor colorido artificialmente, com sabor industrializado, durando à base de conservantes: não. Um amor que é uma mentira a serviço da nossa imagem: não. Um amor que serve de esconderijo para nossas carências: não. Esse romantismo só existe como farsa e hoje queremos fugir de qualquer hipocrisia. 

Quanto mais percebemos a teatralidade das relações políticas, quanto mais somos abusados por impostos altos, pela burocracia e pelas limitações econômicas que impedem nossa realização pessoal, mais necessário se torna que ao menos no amor sejamos livres. Em algum setor da nossa vida, a verdade tem que ser plena.

Não somos obrigados a amar. O amor é uma sorte, não uma missão. É natural que ele aconteça, já que somos bilhões cruzando olhares diariamente, mas a qualidade e o arranjo das relações dependem de um desejo que se manifeste à vontade, e não sob a tutela de um código moral e social. Podemos ter vários ensaios de amor sem que nos sintamos diminuídos pelo fato de não termos vivido um arrasa-quarteirão com muitos anos em cartaz e sucesso de bilheteria. Nunca a plateia interessou tão pouco.

Devo estar sendo otimista, mas creio que finalmente o amor está retomando o lugar que o casamento havia lhe tomado.

sábado, 2 de julho de 2016



02 de julho de 2016 | N° 18571 
MARTHA MEDEIROS

Mulheres e palavras surradas


Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno

Estamos em plena revolução feminista parte 2. Depois de inúmeras conquistas resultantes do surgimento da pílula anticoncepcional e da nossa entrada no mercado de trabalho, pausamos, recarregamos as baterias e agora voltamos à luta, rebatizada de empoderamento e direcionada, principalmente, à violência contra a mulher.

Acho empoderamento uma palavrinha detestável: é por causa da atração pelo poder que o Brasil está metido em encrenca e vive no atraso. Poder é um verbete obsoleto no meu dicionário. Troco empoderamento por conscientização e autoestima – autoestima também não é das melhores palavras, tornou-se um clichê, mas é do que precisamos.

Por que as mulheres são agredidas? Porque se envolvem com homens brutos, ignorantes, machistas: resposta simples. A resposta complexa vai um pouco além. Violência não deixa de ser um contato. O homem que bate no seu rosto, que queima seu braço, que chuta sua barriga e que puxa seu cabelo está enxergando você, está interagindo – da maneira mais cruel, mas está. Eis o perigo: a violência cria a ilusão de vínculo.

Para algumas, a indiferença pode ser muito mais atroz.

Por que ela não cai fora no primeiro tapa? Mulheres seguras não levam adiante uma relação agressiva, suspendem o ultimate fighting assim que ele começa e partem para outra história que seja realmente de amor, e não de carência, de dominação, de submissão. O primeiro tapa tem que ser sempre o último. Mas não é o que acontece: ele gera o segundo. Que gera o terceiro. Que gera todos os outros até a situação ficar insustentável. Decorre um longo tempo até chegar ao ponto do “não aguento mais”. Por que se aguentou tanto antes?

Dependemos do olhar do outro. Queremos ser admiradas, amadas, desejadas. Mas isso não deve valer para o olhar perverso que nos vê como um objeto onde descarregar frustrações. O cara não se suporta e desconta em você – é justo isso? E você segura a onda porque acha que o empurrão dele também é uma espécie de toque. Ele, através da pancadaria, está se relacionando com seu corpo e reconhecendo sua existência. A ausência do olhar dele – e do ataque dele – a transformaria em nada.

É por isso que aquela palavrinha surrada (ela também) tem que ser reforçada: autoestima. Não precisamos temer a solidão. Estar consigo mesma é companhia suficiente. Uma mulher sem homem tem mais valor do que uma mulher com um homem babaca, covarde, pequeno. Nenhuma intimidação é romântica. Sofrimentos emocionais são inevitáveis, mas ter o corpo submetido à violência física não dá poema, não dá filme, não dá nenhuma canção bonita. Tem que dar cadeia, apenas isso.

A grande revolução feminista passa pela consciência de que a solidão não é humilhante, a renúncia à nossa integridade é que é.