sábado, 24 de setembro de 2022


24 DE SETEMBRO DE 2022
FRANCISCO MARSHALL

LONDON, LONDON

Em 27 de dezembro de 1968, no início da vigência do AI-5 (de 13/12/1968), Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pela ditadura militar, acusados de desrespeito aos símbolos nacionais - logo eles, dois dos melhores símbolos desta pátria. Tiveram seus cabelos raspados e só foram soltos em 19 de fevereiro de 1969, para viver confinados até sua partida para o exílio na Inglaterra, ao final de julho de 1969. Caetano e Gil estavam então com 26 e 27 anos e o tropicalismo, lançado em 1967, sacudia a cultura brasileira. 

Ao sair do quartel em que tratou de seu exílio, Gil ouviu dos soldados o brado gentil de "aquele abraço", que se tornaria título de um de seus melhores sucessos, lançado já no exílio; em Londres, novamente cabeludo, Caetano Veloso gravou em 1970 o LP com seu nome, lançado em 1971, com a linda canção London, London. Violados pela violência de falsos patriotas, esses artistas responderam com mais arte e muita brasilidade, enquanto sonhavam com sua volta ao Brasil que tanto amam, o que ocorreria em janeiro de 1972.

Na nova era, quando vencermos a recente onda de falso patriotismo e arquivarmos a asquerosa barbárie, devemos ao mundo pedidos de desculpas e mensagens que assegurem que o Brasil digno segue vivo. Seria lindo enviarmos a Londres, com sopro amoroso de uma pátria que sabe ser bela, Caetano, Gil e muitos artistas, incluindo o nobre bardo de nossa Londrina, Arrigo Barnabé, para limpar a barra da nação, após os insultos recentes e esses pesados anos de muita e justificada vergonha internacional. É com arte que podemos reagir e reencontrar o que há de valioso nesta terra e promover o que importa, com inteligência e beleza. Que partam muitas caravanas de arte brasileira, pelo país e pelo mundo!

Sempre sincero e inteligente, Caetano acaba de declarar que admira o candidato cearense filo-parisiense mas que votará mesmo é no pernambucano. Todos os brasileiros sensatos sabem que é hora de bradar salve a democracia!, impondo veemente derrota ao agressor da República já no primeiro turno, fazendo boa música nas urnas eletrônicas, a 2/10. A nação está esgotada e precisa dar um basta a tanta vileza, e começar a reconstrução do que ainda era pouco antes de virar ruína. 

Arte, ciência, cultura e educação serão os faróis dos novos tempos, em que precisamos também desarmar corações iludidos e raptados para a seita macabra do extremismo ignorante. Será preciso muito amor e sabedoria, mas nem sabemos direito como começar essa conversa, diante de interlocutores agressivos e tomados por transe pavoroso, como os que ora vimos em Londres, insultando o luto da nação amiga com grosserias dignas do líder mórbido e vil que os compele.

Terão que ser muitos recomeços simultaneamente. Revogar com perícia as centenas de erros que desmontaram instituições democráticas, retomar o caminho do desenvolvimento social e econômico, saciar a fome de milhões de famintos, reconquistar a graça legítima de sermos brasileiros e quem sabe até lavar a camisa e limpar as cores da nação, ora usurpadas e vilipendiadas. E será, como quer Caetano, um grande sim, bem brasileiro!

FRANCISCO MARSHALL

24 DE SETEMBRO DE 2022
DRAUZIO VARELLA

DEPRESSÃO E OS MÚSCULOS

Que a prática de exercícios está associada à sensação de bem-estar, todos reconhecem. Nem por isso nós nos sentimos motivados a incorporá-los à vida cotidiana, prática que exige esforço e disciplina.

Depois de caminhar, correr, nadar ou pedalar, entramos num estado de paz e tranquilidade mental, quase inacessível nos dias sedentários. Com os músculos exaustos, ficamos mais relaxados, otimistas e autoconfiantes.

Embora essas sensações sejam conhecidas por qualquer pessoa que se disponha a caminhar alguns quilômetros, o mecanismo pelo qual a atividade física exerce influência sobre o cérebro, a ponto de alterar o humor e o estado de espírito, é mal conhecido.

Um estudo recente publicado na revista Cell, por L. Agudelo e colaboradores do Instituto Karolinska, sugere que um metabólito do aminoácido triptofano (essencial para a produção de vitamina B3) esteja envolvido nesse mecanismo. Esse metabólito é a quinurenina.

A quinurenina e seus metabólitos (compostos resultantes de sua decomposição) participam de funções biológicas essenciais à sobrevivência, como a dilatação dos vasos sanguíneos durante os processos inflamatórios e a organização da resposta imunológica.

Sabemos, há algum tempo, que o aumento da produção de quinurenina pode precipitar sintomas depressivos. Seus metabólitos estão associados a deficiências cognitivas, encefalopatias, esclerose múltipla, aos tiques, ao metabolismo das gorduras, à demência pelo HIV e outros distúrbios psiquiátricos.

O cortisol e outros hormônios liberados durante o estresse e certos mediadores, que participam dos processos inflamatórios, ativam enzimas responsáveis pela síntese de quinurenina, aumentando sua produção, seus níveis na corrente sanguínea e a presença no cérebro.

Ao entrar no cérebro, a quinurenina é convertida em metabólitos que promovem estresse celular e interferem com o comportamento.

Quando o estresse é acompanhado por exercícios físicos, as sucessivas contrações da musculatura promovem uma cascata de reações bioquímicas que levam ao aumento da produção de determinadas enzimas (KATs), que se encarregam de transformar quinurenina em ácido quinurênico.

Ao contrário do composto que lhe deu origem, o ácido quinurênico é incapaz de penetrar a barreira que separa o sangue periférico do liquor, o líquido que banha o sistema nervoso central. Dessa forma, o cérebro fica menos exposto aos efeitos depressivos da quinurenina, portanto mais resistente ao estresse.

Por essas razões, a atividade física deve ser incorporada às estratégias de prevenção e tratamento dos distúrbios relacionados com o estresse, como é o caso das depressões.

O conhecimento desses mecanismos abre a possibilidade de desenvolver drogas que interfiram com os mediadores produzidos durante as contrações musculares, capazes de reduzir a quantidade de quinurenina na circulação sanguínea.

Colher os benefícios da atividade física tomando comprimidos, sem sair da poltrona, é o sonho de todo sedentário.

DRAUZIO VARELLA

24 DE SETEMBRO DE 2022
MONJA COEN

TEMPO DE ESCOLHER

Qual a sua questão? Qual seu partido? Qual seu ponto de vista? Será que você está partindo o ponto em muitos pontinhos ou está com a vista cansada? Vendo em duplicata? É preciso clareza, clarificar. Saber escolher para não se arrepender e se arrepiar.

Será que você sabe qual é a questão essencial, principal, talvez única de sua vida, hoje? Porque em outros momentos pode haver assuntos que agora não são nem pensados. Por exemplo: você terá meios de entrar numa nave espacial se for impossível viver na Terra?

Você sabe formular questões reais, verdadeiras, que importam, que tem a ver com suas entranhas nem tão estranhas? É preciso investigar em profundidade o mais íntimo de si. Quem é você? Ou melhor, pergunte-se: quem sou eu? O que sou eu? Por que e para que vivo? O que é vida? O que é morte? Há sentido ou sentidos para a vida? Será que há propósito especial, um destino certo e marcado que é preciso cumprir? Ou será que vamos criando causas e condições sem determinismo, mas com livre arbítrio?

Não deixe as perguntas esquecidas. Elas surgiram na infância, cresceram na adolescência e na idade adulta foram postas de lado. Foi preciso estudar, trabalhar, ter sucesso, ganhar posições sociais e financeiras, ser feliz.

O que é ser feliz? O que é felicidade? Você gosta do que faz?

Setembro Amarelo - mês de cuidado redobrado para não cair em depressão, para não ficar sendo assombrado pela vontade de morrer, de largar tudo, de sumir, de desaparecer. Essa vontade pode ocorrer, esse pensamento de matar ou de morrer pode surgir, mas não é seu corpo que precisa ser morto. Nem o de ninguém mais.

Preste atenção. As coisas não são como você gostaria que fosse. E daí? São como são. Se tirar o "eu acho, eu quero, é meu, minha", vai perceber que tudo gira, se transforma e pode até chegar a vir a ser como você gostaria que fosse. Deixar fluir - como as águas do rio -, mas você pode modificar o rumo da correnteza. Se for necessário e benéfico a todas as formas de vida.

O que precisa morrer são as ideias irreais, criadas e servas do mal, da divisão, da briga, do desrespeito, da falta de educação, que cria gente feia, cheia de discriminação.

Abra os olhos e agradeça. Não insulte nem procure faltas e erros - quer em você, quer nos outros. Seja a mudança que você quer ver. Agradeça poder sentir, decidir, votar e voltar a ser você.

Está chegando o dia de ir às urnas e apertar alguns botões. Um quase nada, uma brincadeira? Ou a transformação da vida para milhões? Decida, depois de bem pensar, o que pode ser bom para o maior número de seres - humanos e a natureza em sua totalidade.

Cada voto é um compromisso, um voto nosso no presente e no futuro, resultado de um passado que nos ensinou a pensar, consultar e escolher.

Há falsidades e há verdades. Há momentos de brigas, rompimentos e momentos de encontros e parcerias. Jogadores de futebol mudam de time, de camisa, enquanto os torcedores se batem por um símbolo. Cuidado! Não se iluda. Nenhuma briga, guerra, violência tem virtudes ou vencedores. Todos perdem.

Você insiste para que as crianças sejam vacinadas contra as doenças que vem matando a humanidade? Poliomielite, covid, pneumonia, sarampo, catapora, tuberculose, varíola e tudo mais que a ciência foi criando e dando a nós longevidade saudável.

Aqui e agora. Além do medo que nos apavora, da síndrome do pânico, que é síndrome e não nos permite ver com clareza o caminho. Mas passa, se a deixarmos passar.

Voto é secreto. Não conto em quem eu vou votar. Vou e me sinto importante. O time pode ganhar, pode perder, pode ter jogadores de times diferentes se juntando para o bem. Uma boa jogada sempre é admirada. Vamos assistir ao Sol no Guaíba. Banho de luz dourada. Não falar nem querer mal a ninguém. Sem lutar é possível compreender, agradecer e participar. Esperançar.

Coragem! Viva a vida. Mãos em prece

MONJA COEN

24 DE SETEMBRO DE 2022
VACINAÇÃO

QUE A GENTE NÃO PERCA MAIS NENHUMA CRIANÇA PARA A PÓLIO

SEM ACESSO À VACINA, SADI PIEROZAN FOI DIAGNOSTICADO COM PARALISIA INFANTIL NOS PRIMEIROS MESES DE VIDA

Na foto que ilustra esta reportagem, o escritor e analista aposentado Sadi Pierozan, 56 anos, abraça, sorridente, o personagem Zé Gotinha, símbolo da campanha contra a poliomielite no Brasil. Em 20 de agosto, Dia D de vacinação, Pierozan participou do evento na Redenção, em Porto Alegre, tentando sensibilizar as famílias para a importância da imunização das crianças em um cenário de queda nos índices que persiste há anos. Quer evitar que histórias de dor e sacrifício como a sua se repitam.

Natural de Vanini, no norte do RS, Pierozan teve paralisia infantil diagnosticada nos primeiros meses de vida - de repente, a perna esquerda ficou flácida e teve o desenvolvimento prejudicado. Ele é incapaz de enumerar todas as cirurgias a que foi submetido durante a infância, passada longe dos pais, na Capital, para que pudesse receber tratamento no Educandário São João Batista, em regime de internato.

O analista mora em Canoas, na Região Metropolitana, é casado com a dona de casa Sônia Maria Gomes da Silva Pierozan, 57 anos, e pai de Monique, 27, e Luana, 17. Coordena a Subcomissão da Pólio no Distrito 4670 da rede Rotary, que abrange cerca de 60 clubes em 33 municípios. Recentemente, esteve em São Paulo, palestrando sobre o tema.

Nesta conversa com ZH, ele relembra episódios marcantes de sua trajetória e faz um apelo emocionado pelo comparecimento às unidades de saúde. Diante da baixa adesão, o governo federal decidiu estender a campanha, direcionada à faixa etária entre um e quatro anos, até o final de setembro. Até o momento, o Rio Grande do Sul, por exemplo, atingiu somente 50% da meta, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde (SES).

- Vacinar é um ato de amor. Que a gente não perca mais nenhuma criança para a pólio. Depois de tantas décadas de vida, de tudo o que eu conquistei, já ficou para trás aquela vergonha de andar na rua, mas demorei para aceitar. Me emociono mais com a possibilidade de perdermos essa guerra - diz Pierozan, que tem problemas de mobilidade até hoje.

LARISSA ROSO

24 DE SETEMBRO DE 2022
J.J. CAMARGO

COMO FAZER O PACIENTE FELIZ SE QUEM CUIDA NÃO ESTÁ?

"Onde quer que a arte da medicina seja exercida, haverá também amor pela humanidade." (Hipócrates)

Os pacientes querem ser bem atendidos, de preferência por médicos sorridentes e amistosos. Raramente encontrei, mesmo em doentes amorosos, unzinho que se preocupasse, de fato, com o estado de espírito do médico, desde que, naturalmente isso não comprometa o cuidado de quem é realmente importante nesta relação, ou seja, ele.

Muito mais provável é que, se o doutor aparecer emburrado ou simplesmente triste (aos olhos de quem está do outro lado é a mesma coisa), algum resmungo seja emitido. O cuidado bilateral é tão incomum, que, para não ser injusto, sempre lembro da Maria de Lourdes, que mesmo estando muito doente, me vendo triste ofereceu socorro: "Meu doutor, se houver alguma coisa que eu possa ajudar, me diga, porque aqui no hospital ando meio sem nada pra fazer!".

O médico foi treinado para cuidar, mas como um mero ser humano fabricado em série, tem lá suas depressões, tristezas e carências, para as quais uma palavra, um gesto e, no extremo da bondade, um abraço faria toda a diferença. Com um mínimo de perspicácia, concluiríamos que proteger o humor de quem cuida é blindar de afeto a relação não amorosa mais densa que existe, a do paciente com o cuidador das suas dores.

A dimensão da frequente falta de reciprocidade afetiva pode ser avaliada num questionário promovido pela Universidade de Columbia (EUA) entre especialistas de áreas diversas. Muito preocupante a constatação de que, em todas as especialidades, menos da metade dos entrevistados se confessaram felizes com o que fazem.

Os mais contentes, os dermatologistas, ficaram em 43% de médicos felizes, os oncologistas, 36%, enquanto os cirurgiões , 34%, e os profissionais das emergências, 32%.

Muito provável que parte da gênese dessa turbulência afetiva esteja lá atrás, quando, numa fase da vida marcada pela ingenuidade, jovens ambiciosos tenham escolhido a medicina, movidos pela fantasia, cada vez mais decepcionante, do enriquecimento fácil.

O choque de realidade ao deparar com um mercado vil explica o mau humor e os altos índices de adição, alcoolismo, instabilidade amorosa, burnout e suicídio entre médicos jovens. A proliferação criminosa de muitas faculdades de medicina, algumas sem hospital-escola, nivelou e continuará nivelando por baixo o trabalho médico, transformando uma tarefa originalmente nobre num serviço tenso e aviltante.

E as ameaças não param de crescer e se renovar, incluindo a telemedicina e a inteligência artificial, onde se antecipa que os computadores, ricamente abastecidos, farão diagnósticos mais rápidos e mais precisos do que os médicos comuns, esses mortais sempre consumidos pelo sentimento massacrante da dúvida. Curiosamente, os robôs serão tão mais eficientes quanto melhor tenham sido alimentados. E por quem? Pelos médicos, que, se tudo funcionar como se antecipa, logo adiante, serão considerados dispensáveis.

Enquanto o futuro não se define, talvez tenhamos que dar razão ao grande Rubens Alves, que há 15 anos antecipou: "O médico se transformou numa unidade biopsicológica móvel, portadora de conhecimentos especializados e que vende serviços".

Mas claro que o discurso pessimista não é universal. Mesmo com todos os "avanços" consolidados, a relação médico/paciente ainda sobreviverá por resistência daqueles abnegados que, por gostarem de gente, estarem contaminados pelo prazer de ajudar e, felizmente, não saberem viver de outro jeito, se opõem aos algoritmos frios da medicina baseada em evidências, que não consegue repassar para o robô a trilha mágica dos sentimentos humanos. Um portal que só dá senha de acesso a quem seja capaz de chorar. Sem se esconder.

J.J. CAMARGO

24 DE SETEMBRO DE 2022
CARPINEJAR

A cor do invisível

Quando criança, meu sonho era ser invisível. Desaparecer para mexer nas golas das pessoas, para trocar os quadros de lugar, para criar tumulto aos outros com sinais extraordinários, para ouvir as conversas proibidas a meu respeito. Ninguém mais falaria mal de mim pelas costas, estaria ali como um vento ouvinte. Mas não queria morrer para atingir tal poder. Não teria graça não poder voltar e comemorar o feito.

O dia perfeito para a demonstração da invisibilidade era na quarta-feira, depois do almoço, porque meu pai sempre recebia o poeta Mario Quintana. Encomendava uma caixinha de quindins para homenagear o amigo. Quintana ficava na sala tomando cafezinho, fumando com seus suspiros tristes e se alegrando com os doces amarelos.

Contaria com uma testemunha de fora na hora de provar minha capacidade sobrenatural. Família não é muito confiável para comprovações científicas. Realizei, então, uma série de experimentos com pomadas, com o objetivo de sumir magicamente.

Eu me pelei no quarto e inicialmente me besuntei de Caladryl. Porém, como resultado, eu me tornei ainda mais exposto, um boto-cor-de-rosa. Qualquer um me enxergaria a distância. Inventei de colocar, em seguida, Hipoglós, e virei uma múmia.

Até que me lembrei de uma advertência materna: não mexer no armarinho do seu banheiro. Lá existia uma pomadinha francesa para pele. - É o olho da cara! Se a mãe me censurava, só podia ser boa e miraculosa. Se dizia que era o olho da cara, devia ter alguma ligação com a invisibilidade.

Busquei o produto e, sem compaixão nenhuma, apertei toda a bisnaga. Saltou a pasta transparente de modo espiralado num único jato. Não sobrou resíduo algum para contar a história. Espalhei pela minha pele, que começou a arder. A queimação, ora bolas, significava que estava alterando as minhas moléculas e me desintegrando.

Andei pelo corredor, completamente nu, para me exibir ao pai e ao Quintana e alcançar o veredito derradeiro. Dei uma volta, duas voltas de passarela ao redor da mesinha do centro e nada. Nem me olharam. Nem me viram. O olhar vazio deles me atravessava e não me encontrava.

Corri ao quarto para comemorar: - Sou invisível! Sou invisível! Jamais fiquei tão eufórico na vida. Comemorei o gol com soco no ar. Pena que a felicidade traz a ambição junto. Quis repetir a felicidade da transmudação, agora me submetendo ao teste mais difícil: o polichinelo.

Parei na frente dos dois e comecei a mexer as pernas e os braços freneticamente, igualzinho ao exercício de aquecimento nas aulas de educação física. Tudo balançava. Foi quando meu pai, sorrateiramente, puxou-me pelos cabelos (naquela época, eu tinha mullets) e me colocou de castigo. Fiquei mesmo invisível para o futebol com os amigos, para o videogame, para o armazém, para o sorvete e para o cinema durante dois meses, proibido de sair de casa.

Recordando o fato, já adulto, guardo a convicção de que funcionou na primeira vez e o efeito passou na segunda tentativa.

CARPINEJAR

24 DE SETEMBRO DE 2022
FLÁVIO TAVARES

PRIMAVERA DIFERENTE

Iniciou-se a primavera, mas nem se nota e é como se o inverno avançasse em confusa mistura. Parece até que a natureza imita a campanha eleitoral, na qual em vez de programas ou planos concretos, ouvimos dos candidatos só promessas vagas.

Ou então invencionices e mentiras se unem caçando voto. E isso que estamos a poucos dias da eleição.

Os meios de comunicação, em especial a TV, difundem números de "pesquisas" em que nunca mais de 3 mil pessoas (às vezes ouvidas por telefone) "interpretam" a vontade de milhões de eleitores. Não se opina sobre programas e planos dos candidatos. Assim, as "pesquisas" apenas induzem o eleitor a optar pelo "cavalo vencedor", como se eleição fosse aposta no hipódromo?

Isto talvez explique a apatia geral dos eleitores, que nem a profusão de bandeiras nas ruas consegue animar. A campanha política se despolitizou.

O presidente Bolsonaro usa a chamada "máquina do poder" para tentar se reeleger. Ao discursar na Assembleia Geral da ONU, exaltou a si próprio e falou de um Brasil inexistente. Inventou até que seu governo protege a Amazônia?

No amplo leque opositor, Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista à revista britânica The Economist, disse que "o PT está farto de pedir desculpas" pelos erros ao governar, o que é também invencionice. Jamais o PT fez autocrítica sobre as multimilionárias e comprovadas fraudes do Mensalão e do Petrolão. O que me assusta, porém, é a opinião de Lula da Silva sobre Hitler, relembrada dias atrás em editorial do jornal O Estado de S.Paulo: "Ele tinha aquilo que eu admiro num homem, o fogo de se propor a fazer alguma coisa e tentar fazer".

Será que Lula se referia ao fogo dos fornos crematórios dos campos de extermínio nazistas? Como antídoto à perigosa confusão do governo Bolsonaro, prega-se o "voto útil", que levaria a decidir sobre apenas dois candidatos a presidente. Ciro Gomes, uma das alternativas da terceira via, lembrou que "o único voto útil é votar contra a corrupção".

O Supremo Tribunal Federal acertou ao suspender parte dos decretos do presidente Bolsonaro que facilitam o acesso a armas e munições. O problema é que, durante a vigência dos decretos, triplicou o número de armas em poder de civis, num tétrico convite a matar.

FLÁVIO TAVARES

24 DE SETEMBRO DE 2022
OPINIÃO DA RBS

A RETA FINAL DO PRIMEIRO TURNO

O país está entrando na semana que antecede a votação do próximo domingo, 2 de outubro. Com a aproximação da data do primeiro turno, chega a hora de o eleitor, na reta final, aprofundar a reflexão sobre o voto que registrará para presidente da República, governador, senador e deputado federal e estadual. É o momento para consolidar a opinião, reconsiderá-la ou buscar as informações necessárias para um sufrágio consciente.

Será a escolha definitiva ao menos para os parlamentos, uma vez que, nas disputas relacionadas ao Executivo, se prevê um segundo turno caso um dos candidatos não alcance 50% mais 1 dos votos válidos. Está em jogo, portanto, a triagem dos legisladores que pelos próximos anos - quatro no caso dos deputados e oito no dos senadores - serão especialmente responsáveis pela elaboração de leis. É patente que a disputa pelos cargos de presidente e de governador costuma galvanizar mais as atenções. Mas o aperfeiçoamento da democracia exige o mesmo rigor na seleção dos parlamentares que estarão nas assembleias e no Congresso Nacional a partir do próximo ano. Para todos os cargos, é imprescindível conhecer o histórico, propostas e causas defendidas. Traçar paralelos com os concorrentes, da mesma forma, ajuda em uma escolha mais lúcida e com menor margem de erro, a partir da linha de pensamento e demandas do próprio eleitor.

Para as candidaturas, a melhor das expectativas é a de que privilegiem proposições nestes últimos dias antes do primeiro turno. A população deve ser convencida a partir de plataformas robustas e factíveis. Muito mais do que promessas mirabolantes, à sociedade e ao eleitor interessa saber, sem tergiversação, como os planos serão executados e de onde sairão os recursos. Na realidade orçamentária, é consabido, costumam não caber todas as juras de quem disputa o voto.

Uma campanha eleitoral também pressupõe que os candidatos sejam questionados duramente, inclusive por seus adversários. Expor contradições, cobrar posturas do passado e mostrar fragilidades de propostas fazem parte do jogo da democracia. São ações saudáveis e ajudam o eleitor. Os últimos debates servirão a este propósito. Há disputas em que as tendências de longo prazo se confirmam, mas existem também casos de reviravolta à medida que chega o dia da votação. Estratégias de última hora podem variar. Só se deseja que o bom combate seja travado à luz do dia e com os argumentos como únicas armas, sem ataques pessoais ou que façam uso do submundo apócrifo virtual.

A jovem democracia brasileira precisa ser protegida, em todas as suas dimensões. Assim, resta também esperar que as candidaturas tenham sensatez e meçam palavras para não incentivar a violência derivada de visões políticas diferentes. Eleição é um confronto só de ideias. O objetivo final de construir um país e Estados mais prósperos e com oportunidades para todos é comum a todas as vertentes. As divergências se situam no caminho a trilhar para alcançar esse propósito. Quem decide é o eleitor.


24 DE SETEMBRO DE 2022
ACERTO DE CONTAS

Polo de inovação toma forma

Toma forma a operação do polo de inovação Onovolab em Porto Alegre. O projeto está sendo construído no prédio do DNA do Aço, uma conhecida estrutura de nove andares na Avenida Severo Dullius. A expectativa dos responsáveis pelo negócio, inicialmente previsto para junho, é começar a operar em outubro.

O prédio é da família de Zeca Martins, que atua em segmentos de aço e plástico. Ele será o parceiro local do Onovolab, que tem Anderson Criativo como CEO. O projeto nasceu em São Carlos (SP) em 2018, e funciona para abrigar operações de pesquisa e desenvolvimento de empresas. Aqui no RS, já estão confirmadas a startup hygia saúde e o SebraeX, braço de inovação da instituição, que será uma parceira estratégica.

Foi dada a largada à RBS Ventures, novo negócio do Grupo RBS que começa com mais de 50 iniciativas em análise e deve encerrar 2022 com sete aceleradas. O primeiro negócio é com a plataforma de games Player 1 Gaming Group (P1GG), em sociedade com a Globo Ventures, além da exclusividade de publicidade na Arena do Grêmio e no Beira-Rio. Os sócios-fundadores conversaram com a coluna.

MAURICIO SIROTSKY NETO, membro da terceira geração da família Sirotsky e do Conselho de Representantes da RBS

Qual a diferença para uma venture capital?

É bem diferente. O grande ativo de uma venture é o recurso financeiro. Na media capital, se agrega valor. A RBS Ventures atuará com três territórios: media for equity, pela possibilidade de oferecer mídia no negócio; o que chamamos de mundo RBS e suas sinergias comerciais, de recursos humanos e de capacidade de comunicação; e, aí sim, com recurso financeiro.

Como está vinculada à RBS?

É da RBS com a TKPar (uma holding de participações, criada para investimento na RBS). É do grupo, mas com equipe própria, operacional do nosso jeito, com independência e o dinamismo dessa atividade. A reorganização societária da RBS trouxe o recurso, e é um movimento recente das empresas de comunicação. Tem a Globo Ventures. Permite outras iniciativas que agregam ao negócio principal da RBS.

E a seleção dos negócios?

Teremos algumas etapas, começando pela prospecção do negócio, ativa ou passiva. Podemos buscar o que achamos interessante ou podem nos procurar. Então, se avalia se faz sentido ir adiante e em qual território, se, por exemplo, usa a força comercial. E faremos um acompanhamento desses negócios, que podem ser eventos, campeonatos, envolver conteúdo. No caso de estádios de futebol, podemos criar uma proposta para um patrocinador do Sala de Redação com uma ação comercial nos jogos, nos espaços onde temos exclusividade. Vamos avaliar, tem um leque muito grande.

Como membro da terceira geração da família Sirotsky, por que está na RBS Ventures?

É uma realização pessoal e profissional estar envolvido neste momento com a empresa da minha família, fundada por meu avô. Sinto orgulho, felicidade e desafio. Minha carreira profissional foi para o lado empreendedor. Comecei no Kzuka, mas saí quando a RBS comprou. Tinha 20 anos, fui trainee da PwC e tive a Totosinho por sete anos que chegou a cem funcionários e quadruplicou a receita. Fiz MBA nos Estados Unidos, voltei para a e.Bricks (braço de novos negócios) para desenvolver negócios e migrei para a Maromar Investimentos (family office de Nelson Sirotsky), com a missão de transformar em uma holding de investimento e de negócios por quatro anos. Foi natural me envolver na RBS Ventures.

FERNANDO TORNAIM, vice-presidente do Conselho de Representantes da RBS

De onde surgiu a ideia?

Queríamos criar uma categoria própria. A RBS Ventures tem um posicionamento diferente: investiremos, além de recursos, mídia. Daremos visibilidade e faremos a marca ser mais conhecida. Com esta proposta de valor, podemos também coinvestir, ter uma participação complementar à das ventures de fundos - o que também amplia nossa área de atuação.

Como o mercado deve entender o funcionamento?

Criamos uma metodologia própria, que passa por um funil com premissas fundamentais para análise. Uma delas é avaliar se o negócio é mais orientado para o B2C (voltado ao consumidor). Outras são identificar se há regionalidade, o Rio Grande do Sul precisa ser um território importante para a empresa - e se a midia gera diferenciação, além de análises financeiras de retorno e o tamanho do interesse para o negócio principal da RBS.

Por que agora?

O Rio Grande do Sul vive um momento bom de empreendedorismo. Qualquer iniciativa que esteja dentro de um ambiente mais adequado vai ter mais chance de sucesso. Entendemos que o ecossistema está se criando, mas a RBS Ventures é uma peça que faltava. Será complementar ao movimento, com recursos em alguns casos, mas foco em alavancar com visibilidade. Vai apoiar o empreendedorismo e novos negócios de uma maneira única. Há poucos dias, fizemos um pitch day (eventos para apresentação de startups) com cinco empresas. Selecionamos três para olhar mais a fundo. A Globo Ventures, que é uma inspiração, já tem mais de 30 empresas investidas.

Como esperam que os gaúchos vejam a RBS Ventures?

Como um movimento empreendedor com credibilidade, um parceiro que tem um tipo de entrega único. A mídia é decisiva para o crescimento do negócio. Fazemos parte da reestruturação societária da RBS. O negócio principal da empresa dá relevância à RBS Ventures. Sempre tive laços com a RBS, envolvimento com o Rio Grande do Sul, relação com a Globo como empreendedor. Lidero essa iniciativa ao lado do Mauricio, que tem toda uma formação na área de investimentos.

GIANE GUERRA

24 DE SETEMBRO DE 2022
+ ECONOMIA

A fábrica que não vende e tem museu

A coluna abre uma exceção para um caso que não é exatamente um negócio, até por atuar sem fins lucrativos, mas que já faz parte do patrimônio imaterial do Estado, para encerrar a Semana Farroupilha. A Fábrica de Gaiteiros é um projeto do músico Renato Borghetti criado em 2011 para ensinar crianças a tocar acordeon e difundir a música tradicional.

No início, um susto: o instrumento não era produzido no Brasil há mais de 30 anos, e importar seria financeiramente inviável. A saída foi ter fabricação própria, para então "produzir" também os gaiteiros.

- É talvez a única fábrica do mundo em que o produto final não é vendido. O objetivo mesmo é ensinar a criançada a tocar e ajudar a renovar essa cultura. A gente produz os instrumentos aqui, e depois distribui para as escolas parceiras e organiza as aulas - explica Newton Grande, coordenador-geral da Fábrica de Gaiteiros.

Grande foi convidado por Borghetti a trabalhar no projeto em 2014, mesmo ano em que a fábrica conseguiu se instalar em sua sede atual, um prédio histórico restaurado em Barra do Ribeiro. Abriga a produção, com vitrines que permitem aos visitantes observar o processo, salas de aula e uma biblioteca.

Há parcerias com 17 escolas, 14 no Rio Grande do Sul e três em Santa Catarina, somando 440 alunos. Em outubro, começará a atuar também em duas cidades uruguaias, Tacuarembó e Treinta y Tres, após acordo com o Ministério da Cultura do Uruguai.

O que pouca gente sabe é que a fábrica pode ser visitada. E além de observar a produção, que já soma 190 acordeons, existe um museu da história do instrumento - que começa com um relojoeiro alemão em 1820 - e sua inserção no Rio Grande do Sul. Entre as peças, há um acordeon produzido pela fábrica a partir de um projeto do ano de 1495 do italiano Leonardo da Vinci, outro todo transparente, onde é possível ver as mais de 1,9 mil peças do instrumento.

Para viabilizar a Fábrica de Gaiteiros, no início da operação o instituto fechou parceria com a CMPC Celulose, com sede em Guaíba. Nos últimos anos, o projeto recebe financiamento pela Lei Rouanet, que é a lei de incentivo à cultura no Brasil.

- Como não temos atuação comercial, o viés do projeto é totalmente social, educacional e cultural - destaca Newton Grande.

Serviço: a visita é totalmente gratuita. A Fábrica de Gaiteiros em Barra do Ribeiro fica aberta de quarta-feira a domingo, das 10h às 13h e das 14h às 17h. Não há, no local, venda de qualquer produto, nem de instrumentos produzidos.

MARTA SFREDO

24 DE SETEMBRO DE 2022
ELEIÇÕES 2022

Shoppings da Capital limitam a política

Frequentadores dos shoppings Praia de Belas e Iguatemi, em Porto Alegre, foram surpreendidos nos últimos dias com uma série de restrições.

Avisos fixados nas entradas informam a proibição de manifestações políticas ou religiosas, distribuição de panfleto e circulação de pessoas portando bandeira nos estabelecimentos. "O ambiente está sendo filmado", alerta o comunicado.

Segundo a gestora dos empreendimentos, as regras estão previstas no código de conduta dos shoppings.

"Os Shoppings Iguatemi Porto Alegre e Praia de Belas informam que é prioridade e consta no seu Código de Conduta zelar pela segurança e bem-estar de todos os seus visitantes, lojistas e colaboradores. O empreendimento reitera que é um espaço privado de uso público, que não é planejado para receber qualquer tipo de manifestação", diz nota oficial enviada pelas empresas.

Pela legislação eleitoral, shopping são considerados bens de uso comum, ou seja, têm acesso universal. Nessa categoria, também estão estádios de futebol, igrejas, teatros e similares. Pelas regras, é proibido fazer campanha nesses locais.

Por outro lado, não há nenhum dispositivo na lei que impeça um cidadão de circular por estes ambientes trajando uma camiseta, adesivo ou bandeira de um candidato, desde que em silêncio.

MP

A reportagem indagou à gestora dos shoppings se a circulação de pessoas nessas condições seria impedida, mas não houve resposta. De acordo com o Ministério Público, se alguém tiver o acesso negado por vestir camiseta com mensagem eleitoral ou por estar portando adesivo ou bandeira, pode recorrer à Justiça.

Todavia, a questão guarda nuances. Segundo o promotor Rodrigo Zílio, embora não haja regra eleitoral que proíba uma pessoa de entrar com uma camiseta ou um adesivo de um candidato em algum estabelecimento comercial, os shoppings têm direito de impor condições para a circulação de pessoas.

- Fazer propaganda eleitoral em shopping é proibido. Mas não há regra que impeça expressão de preferência política nesses locais, desde que silenciosa, sem pedir votos. Também não é incomum alguns locais adotarem normas próprias de acesso ou circulação, proibindo, por exemplo, a entrada de homens sem camisa ou mulheres de biquíni. 

Uma decisão dessas pode afastar alguns clientes, em compensação pode agradar tantos outros. Então, é razoável a proibição, sobretudo nesse contexto atual de tensão política, com risco de brigas ou desavenças. O cidadão que se sentir tolhido pode procurar o MP ou recorrer à Justiça comum - explica Zílio, que por seis anos coordenou o Ministério Público Eleitoral no Rio Grande do Sul e atualmente é membro auxiliar da Procuradoria Geral Eleitoral, em Brasília.

FÁBIO SCHAFFNER

24 DE SETEMBRO DE 2022
CHAMOU ATENÇÃO

Hope ganha alta e novo lar

Dez dias depois de ser sepultada viva, socorrida às pressas e submetida à uma série de tratamentos, a vira-latas Hope finalmente encontrou um lar. A cachorrinha deixou, no início da tarde desta sexta-feira, o Hospital Veterinário da Ulbra, em Canoas, nos braços do mesmo policial que a encontrou enterrada no terreno do antigo tutor, preso em flagrante por realizar tal maldade.

- Estamos muito ansiosos. Já compramos caminha, sachê de comida, um monte de coisa - afirma o soldado Lucas Camara Goldani, fiel depositário enquanto corre o processo na Justiça.

O brigadiano poderá ficar com a tutela temporária, mas já disse pretender adotá-la assim que encerrado o caso no judiciário. Na sexta, ele foi buscar Hope junto da esposa, Ana Gabriela Alves. Em casa, a cadelinha terá a companhia de outra mascote resgatada, formando "uma dupla de terroristas", brinca o policial.

No último dia 13, Goldani e o sargento Rodibeldo Ohlweiler foram acionados para averiguar uma ocorrência no bairro Guajuviras. A suspeita era de tráfico de drogas, pois um homem estava fechando um buraco com "algo" escondido. Depois de questionar a família, a dupla do 15º BPM cavou o solo e encontrou o bichinho sepultado, respirando com dificuldade.

O antigo tutor ficou quatro dias na cadeia. Obteve dispensa da fiança e ganhou liberdade sem pagar nada. A delegada Tatiana Bastos, da 4ª Delegacia de Polícia de Canoas, prevê finalizar o inquérito entre a próxima semana e o início de outubro, com indiciamento por crueldade contra animais, na forma qualificada.

TIAGO BOFF

Bancada do estudante

Não estou entre aqueles que acham a educação uma panaceia para todos os males do universo. Como repórter, nos anos 90, conheci Cuba e União Soviética, dois países com analfabetismo perto de zero e altíssimo nível educacional - e também dois dos países mais corruptos e ineficientes onde já pisei, fruto de uma espécie de autodefesa da população contra o monstrengo estatal e sua burocracia que a tudo devorava e travava.

Educação, por si só, portanto, não é capaz de produzir milagres. Mas não existe nação com razoável grau de desenvolvimento em que a educação não esteja na base do progresso social, cultural e econômico. Em todos os potentados atuais, a educação de qualidade não foi encarada como um privilégio de poucos. Ela é parte da vida cotidiana, tão mandatória quanto alimentação e habitação.

Em países de alto grau de desenvolvimento, não há hesitação. A barra da educação sobe constantemente, em um movimento que tende a escavar ainda mais o fosso em relação aos países onde jogar parado é a regra. No Brasil, parece um estorvo subir a régua de estudantes, professores, diretores, governantes. Muitos dirigentes se contentam em oferecer prédios, professores, merenda e aulas aos alunos, como se esse fosse o objetivo final, quando deveria ser o patamar mínimo para que, gradualmente, o país possa sonhar um dia em percorrer caminhos já transitados por nações mais avançadas.

Tão triste quanto o comodismo na qualidade da educação pública é a perda de prestígio da profissão de professor. Há por aqui um abismo tão ou mais profundo do que a questão salarial. Na Índia e em regiões da África, professores ganham misérias mas são venerados pelas populações, e a escolinha, frequentada com enorme sacrifício, é o centro da comunidade. Por mais humildes que sejam, as famílias incensam professores e a educação porque sabem que é por intermédio dela, e apenas dela, que seus filhos e o vilarejo terão um futuro melhor.

Agora, com as eleições, temos mais uma oportunidade para começar a mudar essa situação. O Congresso abriga as bancadas do boi e da Bíblia, mas não uma bancada da educação, que se esmera pela causa dos estudantes com a mesma avidez da bancada da bala. O eleitorado nacional está mais distraído em distribuir memes de adversários e discutir as urnas, mas no Rio Grande do Sul, uma iniciativa recente, apartidária e independente, o Pacto pela Educação, esmera-se em chamar atenção para que toda a sociedade coloque a educação no topo de suas prioridades. O Rio Grande do Sul já foi pioneiro em muitas frentes. Quem sabe por aqui os próximos eleitos de todas as latitudes e longitudes também não inauguram uma nova era ao eleger a educação como o tema número 1 para o futuro de todos os gaúchos?

MARCELO RECH

sábado, 17 de setembro de 2022


17 DE SETEMBRO DE 2022
MARTHA MEDEIROS

Em defesa da família

Virou promessa de palanque conservador: "em defesa da família!". De todas, eu espero, mesmo que insistam em falar de família no singular, como se só existisse uma. A Jussara, por exemplo, cria dois filhos sozinha. O mais velho dá uma olhada no menorzinho quando ela precisa ficar no trabalho até mais tarde. Ela é empregada doméstica. Que bom que o governo se preocupa com ela.

O Rodrigo se casou com o Lucio e eles adotaram duas crianças. Mas o Lucio morreu de covid antes que as vacinas começassem a ser distribuídas. Hoje o Rodrigo cria os bebês com a ajuda da irmã, mas não é fácil. Ainda bem que o governo está em defesa dele, combatendo o preconceito.

A Tatiana fez 40 anos e não se casou, mas queria muito ser mãe. Fez uma inseminação e veio a Bia, que hoje tem quatro anos e é a melhor filha que se poderia desejar, as duas se divertem, se completam e Tatiana está se saindo uma perfeita mãe solo. Imagino o orgulho que o governo sente dela.

Quando a bela e submissa Nadine estava grávida de seis meses, Guto, que era o provedor da casa, morreu. Nadine deu à luz uma menina linda e doentinha. Os medicamentos foram ficando cada vez mais caros, os parentes sumiram e ela passou a aceitar a ajuda de um senhor, em troca de pequenos favores. O governo estará aqui para o que você precisar, Nadine.

Os gêmeos Carla e Claudio tinham 14 anos quando os pais se separaram. A mãe voltou para o Interior, enquanto o pai foi procurar trabalho no norte do país. Cada um levou um filho. Ainda bem que o WhatsApp ameniza a distância dos irmãos e que os políticos zelam por todos.

O filho da Gisela não teve uma infância fácil. O pai não aceitava que ele fosse mais sensível do que os outros garotos do bairro. Quando soube que ele se identificava como menina e iria trocar de nome, deu uma surra no coitado, mas não adiantou nada. Hoje a Gisela tem uma filha em vez de filho, e o ogro se mandou. Fico tranquila em saber que o governo se sensibiliza e ajuda a conscientizar as famílias sobre as pessoas trans.

Helena e Ricardo têm um filho gay e uma filha especial, ambos adotados. Sonia e Vivi moram juntas e não pretendem ter filhos. Juarez e Monica também não, mas estão pensando em ter mais um cão - já têm dois. Julio mora com os pais até hoje, mesmo tendo 47 anos. Renato, Rosa e Milton se amam e se mudaram para um sítio. Regina e Valter nunca oficializaram a união. Sergio mora em São Paulo e Virginia no Rio, desde que se casaram, há 12 anos. Marina foi trabalhar na Espanha e deixou os dois filhos com Marcos, mas visita-os sempre que pode. Que alívio que o governo está em defesa de todas essas famílias. Agora só falta citá-las no plural.

MARTHA MEDEIROS

17 DE SETEMBRO DE 2022
CLAUDIA TAJES

Dignidade é para quem tem

O colunista semanal é aquele que, quase como regra, deve encontrar um tema atemporal, que resista à passagem dos dias e dos acontecimentos para não chegar à data de sua publicação com uma coluna demodê. O diabo é que alguns casos ficam na cabeça e, quando a gente vê, já estão na ponta dos dedos, virando texto.

Isso embora tudo de mais interessante e inteligente já tenha sido dito sobre o assunto.

Sim, me refiro à senhora das marmitas. A que pararia de receber comida por votar em um candidato diferente daquele do rotundo empresário que, até então, fazia a - digamos - caridade. História que deve acontecer seguido com as pessoas mais humildes, essa da troca de voto por alguma coisa, trabalho, um canto, remédio, comida. Direitos que deveriam ser de todos, independentemente de qualquer condição.

De tudo o que li e ouvi sobre esse triste caso, o que mais me tocou foi dito por Reinaldo Azevedo, jornalista que não se identifica com a esquerda e, muito menos, com a barbárie. Pausa para dizer que, junto com Pantanal, o programa do Reinaldo, que acompanho no YouTube, é meu segundo vício. Bem, tenho outros, mas esses dois são diários.

Reinaldo citou a filósofa alemã de origem judia Hannah Arendt, cuja foto está na estante lotada de livros que fica às costas dele, no escritório onde o programa é gravado. Estante mesmo, não o tapume fake que serve de cenário para alguns.

É de Arendt o conceito de "banalidade do mal" que, muito superficialmente, designa a multidão que apenas segue a onda, sem fazer grandes julgamentos morais. Mais ou menos o que a sábia filosofia popular brasileira conceituou como "gado".

Essa falta de julgamento moral significa que, na vida real, o mal não é propriedade de supervilões ou de psicopatas do crime, como se vê na ficção. O sujeito que é um bom pai, um marido carinhoso, um filho respeitoso, um tio engraçado, pode ser mau na forma como trata quem não faz parte de suas relações mais próximas. O porteiro do prédio, o garçom, a moça da limpeza, a senhora que precisa de uma marmita.

Talvez o empresário que fez aquela presepada seja um sujeito bonachão, até bom em suas relações mais próximas. Talvez seja um ser humano lamentável apenas com quem não conhece. O que faz dele um ser humano lamentável em todos os aspectos, na minha modesta opinião.

Ah: embora empresário, o sujeito embolsou o auxílio emergencial até novembro do ano passado. E não demorou a gravar um novo vídeo se dizendo arrependido por ter gravado o primeiro vídeo - não por seu ato deplorável.

Sobre a mulher, que mora com três filhos e os cachorros que resgata em uma peça que ergueu com as próprias mãos, que lição de dignidade deu ao bem-alimentado ser que a humilhou. Disse que não pensa em processá-lo, o sujeito já está pagando com a exposição e as consequências de sua atitude.

E pensar que foi ele mesmo quem postou o malfadado vídeo que virou sua vida de cabeça para baixo. Como diz Hannah Arendt, há quem apenas faça, sem grandes preocupações com o que é certo ou errado, com o que é ou não moral.

A falta de empatia e compaixão de uns e outros está aí para comprovar.

CLAUDIA TAJES

17 DE SETEMBRO DE 2022
RELACIONAMENTO

Do desejo à vingança CONVERSAR É FUNDAMENTAL

Terapeutas explicam por que o "sexo de reconciliação" é considerado tão excitante

Então, não custa ressaltar: só porque vocês transaram não significa que o conflito foi resolvido, alertam as psicólogas. - Achar que está tudo bem é uma falsa ilusão de entendimento. O diálogo é imprescindível para o bom funcionamento de um relacionamento. Nesse caso, o sexo veio a serviço de desviar atenção, terminando com a discussão. É só uma transferência temporária, porque vai voltar. Tudo que não resolvemos, volta - diz a psicóloga e terapeuta sexual Laura Meyer.

Por isso, é claro, não é recomendado que se provoque uma briga para conseguir esse tipo de excitação.

- Em casais com relacionamentos disfuncionais, se esse tipo de solução se repete com frequência, pode gerar culpa, insatisfação, mágoas, ressentimentos. Com isso, a relação vai se desgastando até chegar ao ponto de terminar - acrescenta Laura.

Na literatura, em letras de músicas e no cinema não raro é enfatizada a ideia de que amor e raiva andam lado a lado. A psicóloga especialista em terapia sexual Jamile Peixoto Pereira questiona se, na vida real, esta combinação se sustenta, principalmente, após alguns anos de convivência.

- Pode ser que, em determinadas situações, possa apimentar a relação, mas não pode se tornar um hábito. É preciso entender o que aquela necessidade de reconciliar para transar está querendo sinalizar, o que está por trás. Pode ser uma pista de que a relação precisa ampliar o repertório, ajustar a comunicação e aprender a curtir o sexo como um processo, uma construção erótica, uma química que precisa de constantes investimento, dedicação e atenção - conclui.

Famoso por ser intenso e vibrante, o sexo de reconciliação (aquele que põe fim ou ao menos dá uma trégua a um conflito) costuma excitar quem busca emoção na relação a dois. Mas, afinal, por que a intimidade após uma briga traz tantas sensações contraditórias? E, com o passar do tempo, este hábito pode ser prejudicial?

Para a psicóloga e terapeuta sexual Laura Meyer, este tipo de relação traz à tona as lembranças do início do relacionamento.

- Gera muito prazer pelo alívio em restabelecer a relação, reforçando o vínculo do casal, pois é o medo de perder a pessoa que desencadeia esse processo. Muitas vezes, serve para interromper a briga ou porque a sensação de raiva provoca excitação sexual - avalia.

Neste contexto, é comum o sexo acontecer em um "misto de amor e ódio", explica a terapeuta, e aí pode ser mais violento.

- Podemos pensar em vingança, uma atitude sádica da parte de quem está com raiva e masoquista do outro, que aceita. É um exemplo do que pode acontecer. Nem todo sexo de reconciliação tem o mesmo motivo. A origem não é a mesma para todos - ressalta.

Também há situções em que ele marca a volta do casal depois de um período de separação.

- Nesse caso, costuma ser mais intenso, porque eles estavam com saudade um do outro, ficaram muito tempo sem transar. Procuram então compensar, dando o seu melhor - afirma Laura.

O sexo deve ser consequência de uma conexão íntima, um resultado do equilíbrio entre expressão de desejos, construção de erotismo, sensações de prazer e diálogo, que permita comunicar ao outro fantasias, vontades e satisfações, defende a psicóloga especialista em terapia sexual Jamile Peixoto Pereira. Por isso, a prática de transar após uma briga não pode ser um hábito.

- O sexo de reconciliação entra como uma resposta a algum nível de conflito, em que se aposta que uma certa "química" sexual intensa poderia dar conta de solucionar. Como prática em si, pode até excitar alguns casais e, momentaneamente, aumentar a energia sexual. A questão é a manutenção desta prática como um processo de habituação, em que para a excitação seja fundamental um conflito. Assim, sempre se fará necessária a criação de uma discussão, uma briga ou um rompimento para que o tesão possa ascender e o sexo acontecer - alerta a especialista. 

*PRODUÇÃO: LUÍSA TESSUTO

17 DE SETEMBRO DE 2022
LEANDRO KARNAL

Mudei o nome. Poderia parecer ofensivo. O homem nos esperava no aeroporto. Era o motorista designado para um grande evento no Sul do País. Idade? Não erraria muito quem lhe atribuísse algo na casa dos 75 anos. Formal ao extremo, indicativo de uma data de nascimento mais próxima do Estado Novo.

A idade, com frequência, costuma vir acompanhada de um uso generoso de "senhor" e "com licença". Eventualmente, como no caso do nosso motorista, um declínio acentuado da capacidade auditiva. Desafio maior: o uso de recursos modernos de localização de um endereço.

O escritor Umberto Eco, com sentido um pouco diferente, trouxe a metáfora de duas tribos: os "apocalípticos" e os "integrados". A tecnologia deixa pessoas de mais idade confusas. Seriam os "apocalípticos" aqueles que não se adaptam aos aplicativos e que sentem com inquietação um universo no qual ir à padaria implica um programa para localizar endereços (e um cartão de aproximação para o pagamento)?

Nosso motorista era um não integrado. Lembro-me de outro senhor, há alguns anos, que fazia rascunhos do e-mail, à caneta, e depois passava para o computador.

Até hoje há quem não domine a nova etiqueta que obriga a mandar uma mensagem prévia para perguntar se pode ligar. Os mais velhos ligam à queima-roupa, causando sustos nas pessoas mais jovens. Um celular tocar sem algo anterior no WhatsApp é crime de lesa-pátria para os que possuem mais colágeno. Aliás, nas mãos de um adolescente, o aparelho celular faz tudo, menos ligar.

Volto ao seu Antenor (que a cara leitora e o dileto leitor já sabem ser nome fictício). Ele colocou o endereço no aplicativo e aceitou o primeiro trajeto. Acontece que a rua celebra um nome famoso da história e repete-se em diversas cidades. São sutilezas da modernidade.

Com sorte, chegaremos à idade do seu Antenor. Os aparelhos já são um desafio para quase todos nós. Então, com certo ar de "vendetta" histórica, seremos, a cada ano, mais próximos do seu Antenor. A tecnologia é uma máquina de exclusão etária, exige um afeto e dedicação que parecem diminuir à proporção do fim do colágeno. Nós, mais velhos, vamos perdendo o desejo de mudar de aparelhos e de procedimentos.

Seu Antenor é o futuro de todos. Tenho de pensar nisso para ter mais esperança com as pessoas que lutam com o Waze... São apenas a vanguarda do que nos aguarda, com alguma sorte.

LEANDRO KARNAL