sábado, 30 de março de 2024


29/03/2024 - 09h00min
martha Medeiros

Passou da hora de acabar com a misoginia e com o falso heroísmo do macho sem coração

Não adianta revolucionar estereótipos historicamente ligados à mulher se os homens continuam habitando as cavernas

Enquanto dois ex-ídolos do futebol eram condenados à prisão por crimes sexuais (fora do estádio também tem juiz e o cartão vermelho é vitalício), me caía em mãos um livro que debate esta questão inadiável: que espécie de “macho” ainda estamos entregando para a sociedade.

Logo conto que livro é este. Antes, o assunto.

Padrões de raça e gênero estão sendo redefinidos. Mulheres negras ocupam posições de destaque, modelos cheinhas desfilam nas passarelas, capas de revista estampam damas grisalhas. A desconstrução do protótipo “loira, magra e jovem” está encaminhada e conquistas começam a ser percebidas. Hoje, quando nasce uma menina na família, já se sabe que ela poderá ser artilheira da seleção, uma cientista da Nasa, presidente do país, especialista em churrasco, ser mãe ou não ser mãe. O que ela quiser, do jeito que quiser. Seu universo expandiu.

Por outro lado, nasce um menino e os pais ficam como? Perplexos. O mundo encolheu para os homens, privilégios estão se perdendo. O que funcionava antes (violência, prepotência) não funciona mais. Os novos homens terão que externar seus sentimentos, conviver de igual para igual com suas parceiras, assumir sua parte nos cuidados com a casa e com os filhos. É um desafio colossal, que põe por terra o que eles tinham como diretriz indiscutível: ser homem é não ser como uma mulher.

Essa insanidade precisa ter fim. “Não quero abraço de macho”, disse um molequinho de três anos a um amiguinho de dois. É chocante. A cena foi testemunhada por Marina Speranza, autora do livro Educar Meninos Não é Frescura.

Marina é brasileira, vive em Barcelona e é mestre em Gênero e Políticas de Igualdade pela Universidade de Valência. Atenta aos descompassos pedagógicos, escreveu um livro leve, rico em referências e com reflexões necessárias para ajudar a sociedade a virar a chave. Os meninos e adolescentes merecem amparo, não podem ser jogados neste novo mundo com uma educação obsoleta e ainda tão agressiva. Tem garoto de 10 anos com gastrite! Por medo de dizer o que sente, medo de desapontar os pais, medo de ser rechaçado pelos outros garotos se não for valentão.

Editoras, olho na Marina. Ela fez nascer esse livro com recursos próprios, tal era a gana de colocar o tema em pauta. Estamos atrasados. Passou da hora de acabar com a misoginia e com o falso heroísmo do macho sem coração. Só assim reduziremos os índices de feminicídio, estupros e outras selvagerias. Não adianta revolucionar estereótipos historicamente ligados à mulher se os homens continuam habitando as cavernas.



29/03/2024 - 11h00min
Letícia Paludo

Melhor juntas: mulheres aderem a grupos exclusivos de viagens para explorar destinos e formar laços de amizade

O público feminino tem encontrado liberdade e segurança a partir de roteiros ao lado de novas parceiras de estrada

Para quem quer viajar, mas não tem companhia e nem está a fim de se lançar em uma aventura solo, existem as excursões, é claro. Mas algumas viajantes e empreendedoras gaúchas entenderam que esse momento de lazer pode ser ainda mais especial se for feito em um grupo composto exclusivamente por mulheres. Nessa dinâmica, relatam que o que tende a acontecer é a liberdade para se soltar, falar besteira, desabafar e, de quebra, fazer conexões e amigas com quem possam viajar no futuro.

— É uma atmosfera de local seguro. Não tem aquela coisa de “Será que eu posso fazer essa piada?”, “Será que vão me interpretar mal?”. Entra justamente naquele lugar de “Isso aqui é uma irmandade, uma comunidade, posso ser eu mesma e está tudo bem”— afirma a empresária Letticia Gerhardt, 29 anos, criadora da agência de viagens Viaja Guria. 

Moradora de Novo Hamburgo, Letticia costumava ser modelo plus size e criadora de conteúdo digital sobre autoestima. Há cerca de nove meses, organizou de forma despretensiosa um bate e volta para Bento Gonçalves, junto de amigas e seguidoras, e a ideia deu tão certo que acabou originando uma agência que oferece roteiros só para o público feminino. Já estiveram no Chile, na Argentina, fizeram um tour cervejeiro em Estância Velha e Igrejinha, um rafting em Três Coroas, acabaram de voltar de Recife e estão no Uruguai neste final de semana. 

— Inicialmente pensei “Vou fazer essa viagem agora, daqui a três meses faço outro bate e volta e assim vai indo”. Só que a demanda começou a ser tão grande que antes de sair o primeiro roteiro, já tínhamos solicitação para o segundo, que lotou — recorda Letticia. 

Os números mostram que a ideia está encontrando eco nas redes sociais: um dos primeiros vídeos publicados no Instagram teve mais de 600 mil visualizações e trouxe, de uma tacada só, cerca de 20 mil seguidoras para o perfil do Viaja Guria – no dia 24 de março, a página ultrapassou a marca de 100 mil seguidoras. O diferencial, segundo Letticia, é que a agência incentiva a formação de uma comunidade de mulheres que se apoiam e interagem antes, durante e depois do passeio. Ao fim da viagem, elas são convidadas para participar do grupo de mensagens Gurias Viajantes para trocarem ideias e marcarem rolês. 

Até agora, a maioria das interessadas no Viaja Guria nasceu na década de 1990, com idades entre 25 e 34 anos, mas a lista também já recebeu passageiras com mais de 80 anos e costuma ter várias representantes entre 40 e 60 anos. Os motivos que as levam a procurar companhia feminina para viajar são variados, conforme descreve Letticia: 

— Vai desde “Estou me divorciando” a “Preciso me reencontrar na vida”, questões de saúde mental, estar saindo de uma depressão, ansiedade social, entre outros. Há mulheres mais novas querendo ser mais independentes dos pais. Também tem o fato de não ter muitas amigas que compartilham da vontade de viajar, ficar só naquela coisa de “Vou ver e te aviso”, mas nunca avisa.  

Acolhimento  

No domingo (24), a reportagem de Donna acompanhou um bate e volta para a serra gaúcha na ideia de ouvir de perto os motivos que colocaram aquelas mulheres juntas e sentir o que acontece de melhor numa viagem em conjunto. De cara já dá para perceber que elas ficam à vontade para mostrar seu jeito. As que são mais tímidas são acolhidas tão bem quanto as que já entram no ônibus em altos decibéis.   

No dia anterior, um grupo no WhatsApp foi criado para que fossem se conhecendo, o que talvez ajude a aproximar as passageiras desde o início do passeio. O ônibus parte às 8h da Capital, faz alguns embarques na Região Metropolitana e segue para Carlos Barbosa, onde a primeira parada é na Fetina de Formaio, uma loja de produtos coloniais. No local, as passageiras degustam iguarias como o salame de javali, queijo de azeitonas e tomate seco. 

A segunda parada, em Garibaldi, no parque da Fenachamp, é reservada para almoço e para um dos momentos mais emocionantes e acolhedores do passeio, o da integração. Numa roda, elas explicam quem são e por que decidiram viajar na companhia uma da outra, e muitos dos relatos emocionam quem ouve e se identifica: há quem tenha vivido um burnout no trabalho e entendido que é preciso reservar tempo para desopilar, viajar, trazer novidades para a vida. Também há mulheres fartas daquela promessa entre amigos “Claro, vamos marcar sim” que nunca se concretiza.    

Para boa parte das viajantes, o passeio coroa uma jornada de independência para ir e vir sem depender da família, dos amigos, do namorado, ou, ainda, celebra a libertação de um relacionamento abusivo.  

A técnica em Enfermagem Tais da Silva, 47 anos, viaja com o grupo desde o primeiro roteiro lançado, na metade de 2023. Para ela, tem sido uma oportunidade para começar um novo círculo de amizades depois do fim de um casamento de 24 anos:  

— Comecei a viajar para mudar meu rumo e minhas amizades. Estou na quinta viagem e tenho outras marcadas. É um investimento em mim e na minha felicidade. Viramos amigas, as gurias já foram na minha casa, comeram churrasco, tomaram banho de piscina, cuidamos uma da outra. É importante quando você consegue fortalecer a mulher que está contigo, fazer com que ela se conheça, perceba o quanto ela é importante. Aqui a gente não está sozinha nunca, é diferente de solidão, é solitude.  

No caso da administradora Danielle Carrão, 41 anos, a maioria de suas amigas não é parceira para saídas – muitas são casadas, têm filhos e não podem contar com os companheiros para ficar com as crianças enquanto elas viajam, explica. No ano passado, Danielle descobriu o Viaja Guria e a companhia que estava faltando, e de lá para cá já viajou para Buenos Aires, Três Coroas e, agora, a serra gaúcha.    

— Como meu marido fica com a minha filha, tenho esse suporte, consigo fazer os passeios. Vi neste grupo de mulheres a possibilidade de ter os meus momentos, aproveitar atividades sozinha, conhecer outras pessoas e experiências. Tem um acolhimento, a gente pode ficar à vontade, não precisa se preocupar com o que vai falar, o que vai fazer — detalha Danielle. 

Fica evidente que o passeio oportuniza aquelas interações ricas entre gerações: desde adolescentes acompanhadas pela mãe até octogenárias. A mais veterana se apresenta como Vó Nita e seu bom humor faz com que, de fato, se torne avó de todo o grupo ao longo do dia. Natural de São José do Norte, a aposentada foi ao passeio por iniciativa da neta.  

— Sou uma costureira aposentada de 88 anos e gosto de sair um pouco. Estou adorando a turma, espero fazer algumas amigas — projeta Enilta Costa da Costa, com a voz bem alta para ser ouvida em meio ao ruído da queda d’água de 56 metros do Salto Ventoso, em Farroupilha. 

Vó Nita ainda faz a alegria geral da mulherada durante a degustação de vinhos e espumantes da Vitivinícola Cave Antiga, a última parada do roteiro, também em Farroupilha. Depois de algumas taças, Enilta se levanta e fica num pé só – o clássico “fazer o quatro” – mostrando que ainda tem equilíbrio sob aplausos e risadas. 

O gesto é um exemplo do astral que toma conta das mulheres ao longo do passeio: não há espaço para ficar se perguntando se vai “pegar bem” fazer tal brincadeira, contar uma besteira, pedir mais uma taça de espumante, rir alto, posar para fotos.  

— Não é só a viagem, é também a comunidade. Aqui é sem cobrança, julgamento, olhar tóxico. A gente se abre muito mais fácil porque ninguém vai ficar cuidando como está a sua roupa, o que você fez, se já casou, se é solteira, quem você é. É só se juntar, se divertir e se apoiar — afirma a engenheira química Janaína Junges, 42 anos, que se juntou ao grupo em fevereiro, no rafting de Três Coroas. 

De 2005 até 2021, a proprietária da agência de Sapiranga Tri Viagens, Fernanda Fülber, fez incontáveis saídas com grupos mistos de até 30 pessoas. As coisas começaram a mudar quando se deu conta de que seu público era 90% feminino e que os poucos casais heterossexuais que iam nas viagens acabavam ficando destacados do grande grupo, não vivendo a mesma experiência de conexão que os demais passageiros.  

— E quando juntava todo mundo, as mulheres que não estavam acompanhadas ficavam com um pé atrás, se resguardavam. Fui percebendo que elas se divertiam muito mais quando estavam só entre amigas, aproveitam melhor os destinos. Não é que não gostassem da presença dos homens, não tem nada a ver com isso, mas elas ficavam mais acuadas. Em 2021, resolvi segmentar só para pequenos grupos de mulheres, pois é o que dava mais certo – conta a empresária de 43 anos.  

Assim nasceu o Mulheres no Mundo, que se propõe a fazer principalmente destinos internacionais com grupos de no máximo 15 integrantes. Quando atende o telefone para conversar com Donna, Fernanda acaba de aterrissar de uma viagem de oito dias no Chile, com 10 mulheres. Elas conheceram o deserto do Atacama, passando por Santiago do Chile, Calama e San Pedro de Atacama.  

— Quando o grupo é pequeno, o entrosamento é maravilhoso. Você volta da viagem sabendo o nome e a história de cada uma, formam-se grupos muito unidos de amizade. Nesta última ida ao Atacama, ao cadastrar as informações das passageiras vi que duas moravam na mesma rua, mas não se conheciam. De propósito coloquei as duas no mesmo quarto e se deram muito bem. Na volta, disseram “Nossa, além de tudo agora vou ter uma vizinha para tomar um chimarrão” – relata a empresária.  

Em pouco mais de três anos de existência, o Mulheres no Mundo já fez roteiros em lugares como Peru, Mendoza na Argentina, Bélgica e Holanda, Punta Cana, República Dominicana, Egito e Dubai. Viajar em grupo também é uma solução para se preocupar menos e se sentir mais segura em países estrangeiros onde as mulheres são mais oprimidas, os quais tendem a ser mais perigosos para as turistas. 

— Alguns lugares que, apesar da cultura muçulmana ser um pouco mais rígida, estão acostumados com turistas dá para ir sozinha. Mas o bom de fazer em grupo é que você já sai do Brasil com tudo montado, os passeios agendados, com companheiras de viagem e suporte, então é só se preocupar em se divertir. Nossos roteiros são todos privados, então se chegamos ao Peru, por exemplo, vamos ter um carro com um motorista e guia só para nós — diz Fernanda. 

Também não quer dizer que corra tudo às mil maravilhas só porque não há presença masculina. Um dos maiores desafios em grupo e especialmente nas viagens mais longas, explica a empresária, é justamente manter o bom humor e aceitar que uma viajante é mais acelerada, outra é mais tranquila, e que essas individualidades podem conviver. Já aquele ditado infame que diz que “muita mulher junto não dá certo”, na opinião de Fernanda, não poderia ser mais falso:  

— A conexão entre as mulheres é um negócio que realmente me deixa de queixo caído, é a coisa mais bonita de se ver. Muitas vezes me surpreendo, penso “Fulana não vai se dar bem com sicrana” e quando me dou por conta estão lá juntas. O mais mágico é a conexão, a ajuda e a proteção entre elas, ao estilo “Vai naquela loja ali porque o cara dá um desconto. Te levo ali” Ou então “Oh, vamos esperar um pouquinho porque fulana foi ao banheiro”. É amizade. Se torna um grupo de amigas. 

De viagem marcada para Bélgica e Holanda no próximo 13 de abril, com 10 passageiras, Fernanda deixa um recado para quem tem vontade de dar seus pulinhos pelo mundo, mas ainda não fez por receio ou falta de parceria.  

— Para mim a questão é muito simples, ou você viaja ou não viaja. Só que não viajando, você fica presa no seu mundo, sempre pensando “Como teria sido se eu tivesse embarcado nessa?”. Então minha dica é se dê uma chance de conhecer o mundo e fazer novas amizades — recomenda a empresária.


30 DE MARÇO DE 2024 
CARPINEJAR

Poncho no botijão de gás

Eu sei qual foi o momento em que a família deixou de jejuar na Quaresma, deixou de não comer carne na Sexta-Feira Santa, deixou de se importar com a simplicidade da Páscoa, de pintar ovinhos em casa, com recheio de amendoim.

Eu sei quando ela cedeu aos encantos de ovos gigantes com brinquedos dentro, aceitando as encomendas dos filhos por determinada marca de chocolate, sem mistério, sem nenhuma pegadinha de coelho pelos corredores, a fim de despertar a fé das crianças.

Eu sei quando abandonou o tradicional almoço no lar e procurou a rapidez do restaurante a quilo.

Quando se desinteressou por completo da conversa olhando nos olhos. Quando começou a comprar comida congelada e economizar nos talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria ao entardecer. Quando fez questão de não mais conhecer os vizinhos. Quando parou de cumprimentar as pessoas na rua.

Quando as saídas aos shoppings tornaram-se mais frequentes do que as idas às praças. Quando abriu mão de lavar o próprio carro. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente, a ponto de só restar a noite para estar junto. Quando a vassoura sumiu do seu posto atrás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.

Quando cultivar uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai desmontou a sua oficina de marcenaria na garagem. Quando a tabuleta de "bem-vindo" acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da soleira.

Quando o espanador e o cortador de grama foram aposentados. Quando substituímos as raízes do jardim por algumas samambaias aéreas. Eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que paramos de vestir o botijão de gás.

Aquele ato mudou a nossa mentalidade. Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência, pela ordem doméstica. Mostrava-se uma atenção com a rotina. Um capricho com as gavetas, e despensas, e fundos, e cantos, e quinas.

Tudo era forrado de palha e gentileza como uma cesta de Páscoa. Morávamos protegidos pelo celofane da educação. Não permitíamos a nudez do gás no coração de azulejos da cozinha.

Correspondia a um ultraje, a uma falta de compromisso, a uma ausência de asseio. Até ele precisava ter modos. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, o veículo na garagem.

Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se cogitava trocar nada. Com as sobras das rendas das cortinas, costurávamos uma proteção para o botijão. Gostava de pensar que ele usava poncho como nós.

Vestir o botijão revelava o quanto nos preocupávamos com o desnecessário, o quanto dividíamos o sofá e a existência para assistir a um filme, o quanto desfrutávamos de tempo para amar.

CARPINEJAR

30 DE MARÇO DE 2024
LEANDRO KARNAL

Penso muito, sempre. Cada experiência positiva ou negativa produz uma pequena ou grande conclusão em mim. A vida é didática, pois erros (em particular os meus) vão moldando minha consciência. Não sei se é assim com você, querida leitora e estimado leitor. Quando vejo uma pessoa sábia, experiente e com fluxo de bons conselhos, sempre imagino: aprendeu errando. Quando dou um conselho sobre um caminho complexo a um motorista (e ele me questiona como tenho certeza da direção), respondo com a verdade: Já entrei errado, porém aprendi.

Aqui escrevo quatro conclusões que nasceram dos meus erros. Vamos lá! A primeira delas: não espere reciprocidade das suas ações. Se telefonar para alguém no aniversário da pessoa ou der um presente especial, faça porque você deseja. Se receber pessoas na sua casa, jamais aguarde um convite do mesmo tipo. Não busque ou cobre reciprocidade, pois isso causa muita dor e ressentimento. Se uma pessoa presenteada e lembrada em um aniversário responder com completo silêncio no seu, aceite como parte da vida. Se for importante para você, decida não ligar no ano seguinte. Porém, ouça a advertência nascida dos meus erros: fazer, esperando gesto similar, leva à mágoa certa. Faça o que desejar, dentro da lei e da ética, mas deixe a mesma liberdade para a outra pessoa.

Se você tem mais de 15 anos de vida, já acumulou desafetos e até inimigos. Não é possível existir sem despertar raivas nos outros Estas podem ser justas ou injustas, serão negativas em algumas pessoas. Aqui o segundo conselho de outono é duplo: aceite que alguns não gostarão de você. Tudo bem! Desdobramento deste: quem o odeia tem um motivo concreto ou abstrato e, talvez, a crítica seja verdadeira. Nossos inimigos possuem a clareza do menino que, sem afeto às convenções sociais, denuncia que o rei está nu. Quem nos ama açucara muito o olhar sobre nós. Seus adversários podem ter intuições muito ricas. Sei que é estranho, mas tente ver o motivo pelo qual você é considerado uma pessoa desagradável por X ou Y.

Terceira questão na qual errei muito - uma decisão importante e positiva deve ser comemorada. Vai parar de fumar? Começará a beber mais água? Reduzirá o consumo de álcool? Fará caminhadas? Vai dispor-se a leituras metódicas e diárias? Parabéns! A decisão foi boa; o primeiro dia de implementá-la será muito auspicioso. O entusiasmo se esgota logo. A única mudança efetiva vem da repetição, que nasce da disciplina. Não farei quando "tiver vontade" ou quando estiver "no clima". Realizarei sempre, mesmo quando a decisão desbotar-se.

Disciplina é a chave de tudo. A decisão é um espasmo de vida; a disciplina é a vida nova em si. Se você sente que não poderá manter a boa decisão, é melhor nem começar, porque o fracasso vai atacar sua autoestima. Apesar disso (claro!), você pode tudo que for importante e plausível. Assinale o primeiro dia, comemore o centésimo, passe a acreditar de verdade a partir do milésimo em que repetir o hábito decidido.

O último conselho é o mais subjetivo. Quase todos os adultos que conheço calçam entre 35 e 45, na numeração brasileira. Há exceções para baixo e para cima. Fiquemos com a média. No momento da sua vida adulta em que você atingir a numeração do seu sapato, 40 por exemplo, terá uma boa mostra de quase 50% da jornada cumprida. Vivemos, no Brasil, em média, 77 anos (as mulheres, um pouco mais). Assim, simbolicamente, a idade de 37, 38 ou 40 é um bom marco. 

Hora de avaliar: sem mudanças drásticas de rumo, o que você consegue com a idade do seu sapato (primeira metade da vida, com mais energia) será aproximadamente seu limite. Para conseguir mais, caso seja o seu desejo, precisará de ações distintas. Pode ser um novo curso superior, uma nova língua, um novo negócio ou um novo círculo de amigos. Se não mudar (e não é necessário que o faça), você irá repetir o limite atingido com a idade do sapato. Lembre-se: a maturidade causa sempre certo declínio de energia.

Acho que preciso ser mais claro. Comendo do jeito que come e fazendo a quantidade de atividade física que você faz até chegar à idade do seu sapato, você atingiu um corpo específico. Se não mudar, seu físico ficará assim e vai decair, já que o metabolismo diminui. Para produzir uma mudança real, você precisará quebrar uma tradição sua à mesa, complementada com exercícios. Isso vale para dinheiro e conhecimento: o que você sabe ou tem não dará um salto expressivo se mantiver as atuais práticas. Em resumo, sem mudança estrutural, seus sapatos indicam um limite.

Não esperar reciprocidade liberta a gente de muita mágoa. Ouvir ideias dos nossos desafetos é um exercício duro de autoconhecimento. A disciplina é a única coisa que realmente muda a vida. Por fim, a idade do seu sapato é um termômetro, nunca um destino ou uma barreira. Tenha sempre esperança e desconfie de conselhos...

LEANDRO KARNAL

30 DE MARÇO DE 2024
J.J. CAMARGO

QUEM SE IMPORTA COM A SUA DOR?

"A dor é temporária, mas resistir a ela dura para sempre." (Lance Armstrong)

No passado, era impossível a divulgação instantânea de tudo o que acontecia com alguém que adoeceu. Órgãos e queixas eram consideradas propriedades do sofredor, apto ou não a resolvê-los sozinho. A emissão de cartas abertas aos veículos de divulgação, contando de suas aflições, soaria muito estranho, porque afinal as dores eram resultantes do drama de uma pessoa só.

Os de temperamento mais recatados até recomendavam que não devíamos compartilhar nossos problemas com os que não tinham como ajudar, porque isso muitas vezes pareceria matéria de fofoca para pessoas emocionalmente descomprometidas. Um velho tio, tão inteligente quando debochado, defendia que um comportamento mais introspectivo na adversidade era o melhor jeito de evitar tristeza antecipada dos amigos ou alegria exagerada dos desafetos.

Em décadas passadas, uma importante preocupação de ordem emocional era evitar julgamentos cruéis diante de diagnósticos de certas enfermidades reveladoras de determinados comportamentos sexuais, como aids, ou doenças preconceituosamente consideradas incuráveis, como o câncer.

Na virada do século, ao lado da festejada qualificação técnica da medicina com crescente potencial curativo diante de doenças antes tidas como fatais, surgiu por força da racionalidade a medicina preventiva, na medida em que se tomou conhecimento do quanto uma simples informação contida na divulgação podia contribuir para a redução de determinadas doenças. Campanhas para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a doutrinação antitabagismo são exemplos exitosos desse processo.

Claro que as redes sociais não podiam ficar ao largo dessa nova realidade, e imiscuíram-se de tal forma no cotidiano da sociedade que acabaram por despertar comportamentos insuspeitados, que passaram rapidamente de curiosa novidade à intransferível obrigação. A ponto de pessoas famosas se sentirem pressionadas a contribuir para a desmistificação de determinadas doenças ou comportamentos, divulgando o passo a passo de sua experiência sofrida. O que inegavelmente trouxe benefícios para a população geral, tão carente de informação.

No entanto, alguns exageros, carentes de bom senso, se tornaram evidentes: muitos fãs colocam seus ídolos como propriedade privada, e no imaginário da sua fantasia exigem compartilhamento, em tempo real, de tudo o que acontece com eles.

Kate Middleton, a princesa de Gales, vivendo a experiência devastadora de descobrir-se com câncer aos 42 anos de idade, e mãe de três filhos pequenos, ignorou a cartilha. Comportou-se como uma pessoa dolorosamente normal, e certamente mergulhada em perplexidade e sofrimento tomou para si um período de reclusão, para uma clara e justa introspecção de quem se sentiu ameaçada, e numa idade em que morrer não faz o menor sentido entre os nobres, igualzinho aos plebeus. No vídeo, que gravou três meses depois da confirmação do câncer, transparece tanta coragem, dignidade, maturidade e resiliência, que abstraindo-se o encanto pessoal que derreteria a coroa de qualquer príncipe ainda lhe sobram atributos para mantê-la no ponto mais alto do pódio da nobreza.

A mim, comoveu-me especialmente a revelação do quanto sofreu para encontrar um jeito de contar aos filhotes o que estava acontecendo. Pois essa criatura sofreu pesadas críticas, mormente por ter-se mantido em longo silêncio. Certamente remoendo umas tais dores que, desprovidas de critérios de escolha, saem por aí, a doer, sem poupar ninguém.

Entre os algozes mais agressivos, certamente estarão sempre os insensíveis, esses que diante de qualquer minúsculo problema pessoal inundam as redes com detalhes que não impactam ninguém, exceto àqueles que entenderão as queixas rasas como protesto pela insignificância indesejada.

J.J. CAMARGO

30 DE MARÇO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

O DIA DA MENTIRA

O golpe militar de 1964 completa 60 anos dia 1º de abril, mas é impossível esquecer suas nefastas consequências - das prisões em massa à tortura como método de interrogatório ou o controle da imprensa.

Em Brasília, como jornalista, acompanhei os passos do golpe que nos levou a 21 anos de ditadura. Guardo detalhes da sessão de menos de 10 minutos em que o senador-presidente do Congresso, (sem qualquer debate) declarou "acéfala" a Presidência da República, após ler uma carta em que o presidente João Goulart informava que instalaria o governo federal em Porto Alegre "devido aos acontecimentos militares".

Aquela madrugada de 1º de abril buscava dar um tom "legal" ao movimento golpista deflagrado em Minas Gerais em 31 de março. Os golpistas protestavam contra as "reformas de base" (em especial contra as reformas agrária e financeira) tentadas pelo governo. Antes, em São Paulo, a marcha com Deus pela família e a liberdade reuniu milhares de pessoas em desfile contra o governo. A pregação do padre irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a "marcha", já mostrava o oculto dedo estrangeiro.

Anos após o golpe, a historiadora Phillys Parker descobriu nos arquivos da CIA e do State Department a Operação Brother Sam sobre a participação militar americana no Brasil. Em 1964, plena Guerra Fria, a paranoia do anticomunismo dominava os EUA.

Não repetirei a documentação que compõem meu livro 1964 - o Golpe, mas lembro um detalhe que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk rumo a Santos, com o porta-aviões Forrestal à frente, para intervir no Brasil. Em 2 de abril, recebeu ordem de voltar, pois João Goulart desistira de qualquer resistência.

Tempos antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon logrou trocar o adido militar no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que fora o oficial de enlace dos EUA com o Exército do Brasil na guerra na Itália. Lá, Walters se fez íntimo do então major Castelo Branco, seu colega de posto no lado brasileiro. Castelo foi o primeiro ditador.

O dia da mentira virou pesadelo de 21 anos.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

30 DE MARÇO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

VOLTA AO DIÁLOGO

É sensata a decisão do governador Eduardo Leite de adiar por 30 dias o início da vigência dos decretos que cortam incentivos fiscais de 63 produtos da economia gaúcha para que volte a ser debatida a proposta de elevação da alíquota de ICMS, agora nos moldes sugeridos por um grupo de empresários. A nova alternativa é semelhante ao chamado Plano A do governo do Estado, apresentado em dezembro do ano passado e retirado do exame da Assembleia Legislativa devido à forte rejeição de setores econômicos e políticos.

Ainda que persistam divergências entre as partes, inclusive entre as próprias federações empresariais, a retomada do debate possibilita uma solução negociada para a intrincada questão. Afasta-se, assim, ao menos temporariamente, o risco de elevação abrupta no preço dos produtos da cesta básica do Estado que, segundo a pesquisa mensal do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é uma das mais caras do país.

A reabertura das negociações também alivia o clima de intransigência que começava a se estabelecer a partir da decisão do governo de impor sua vontade - ou suas necessidades - por decretos, tendo como contraponto o inconformismo das lideranças empresariais e de outros setores da sociedade, manifestado em mobilizações públicas, entrevistas e campanhas publicitárias focadas no desgaste político da atual administração.

Resta esperar, agora, que o período de trégua seja caracterizado pelo diálogo qualificado que faltou no início do atual debate, quando o governo gaúcho - pressionado pela urgência de elevar a receita estadual e pela iminência de prejuízos decorrentes da reforma tributária federal - impôs uma escolha cruel aos setores empresariais beneficiários dos incentivos: ou o aumento de 2,5 pontos percentuais do ICMS ou o corte abrupto dos benefícios.

Agora, pelo menos, já se vislumbra uma terceira via mais palatável para todos, que tanto pode ser a elevação da alíquota geral do tributo dos atuais 17% para 19%, como sugerem os proponentes do adiamento, quanto outro acordo a ser construído com diálogo e civilidade. O que fica claro a partir desta pausa para a renegociação é o reconhecimento mútuo de que ambas as partes precisam fazer concessões para que se chegue ao fim do impasse. Não há e nem haverá soluções mágicas. 

O governo do Estado precisa desse aumento da arrecadação para financiar serviços e investimentos indispensáveis à população - e também para se nivelar a outras unidades federativas que atualizaram suas alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) para receber retorno compatível do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), criado pela reforma tributária federal. Já os setores produtivos dependem dos atuais incentivos e de uma carga tributária suportável para continuar operando sem quebras e demissões. 

Mas acima desses interesses legítimos deve estar o bem-estar da população, representada pelo contribuinte que sustenta a máquina pública com o pagamento de impostos e pelo consumidor que movimenta a economia ao adquirir bens e serviços.

OPINIÃO DA RBS

30 DE MARÇO DE 2024
CÂNIONS

Movimentação econômica poderia gerar impacto de R$ 44 bilhões por ano ao PIB

O processo de concessão de parques naturais deflagrado no país nos últimos anos tem, entre seus objetivos, a exploração de um potencial bilionário. As parcerias com a iniciativa privada, que envolvem áreas municipais, estaduais e federais, como o Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul, sustentam-se em estimativas de que a movimentação econômica gerada pelos visitantes, combinando pagamento de ingressos, hospedagem e alimentação, poderia gerar um impacto de R$ 44 bilhões ao ano no Produto Interno Bruto (PIB). Isso representa cerca de quatro vezes mais do que se contabilizou em 2019, de acordo com um estudo do Instituto Semeia.

As concessões, segundo análise do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), poderiam também quadruplicar a quantidade de visitantes anuais, chegando a 56 milhões de pessoas, e favorecer a criação de um milhão de postos de trabalho diretos e indiretos, levando-se em conta todos os 499 parques municipais, estaduais e da União contabilizados pelo Cadastro Nacional de Unidades de Conservação.

Comissão

Por isso, cinco anos atrás, o Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) criaram uma comissão para "planejar, coordenar e supervisionar processos de concessão de serviços, áreas ou instalações de unidades de conservação federais para a exploração de turismo", segundo nota do ministério divulgada ainda na gestão anterior. A intenção era viabilizar a gestão privada em cerca de duas dezenas de áreas, escolhidas com base em critérios como o número anual de visitantes e a carência de infraestrutura.

Recentemente, o governo Lula retirou 11 áreas de conservação de um plano de desestatização, mas as manteve em um programa de parcerias de investimentos, que permite apenas a concessão da prestação de serviço, sem privatização. Outras oito unidades foram removidas de ambas as iniciativas, colocando um freio na estratégia desenhada pelo governo anterior - que buscava repetir o resultado obtido no parque das Cataratas do Iguaçu, no Paraná, concedido no final dos anos 1990 e considerado um caso de sucesso nesse tipo de parceria.

O biólogo, ambientalista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Brack sustenta que os programas de concessão precisam seguir critérios rígidos para não acabarem desvirtuados pela busca por receita financeira.

- É fundamental que se respeitem e fortaleçam os planos de manejo dos parques, que determinam os limites de uso de cada local, e se mantenha um bom nível de diálogo com cada comunidade - afirma Brack.



30 DE MARÇO DE 2024
+ ECONOMIA

Evento circula R$ 60 milhões na Serra

No calendário das principais conferências de inovação do Brasil, a Gramado Summit chega à sétima edição, entre os dias 10 e 12 de abril. Conforme estimativa baseada em levantamento do Convention & Visitors Bureau Região das Hortênsias, o impacto econômico na cidade alcança R$ 60 milhões. O valor resulta do cálculo de gasto diário de R$ 800 (hospedagem, alimentação e transporte local) por cinco dias - os três do Summit, mais o fim de semana -, para as 15 mil pessoas esperadas neste ano. Prevê 400 palestrantes em 10 trilhas de conteúdo e 500 empresas na feira de negócios.

Participam grandes e pequenas empresas de diversas cidades do Brasil e, também, iniciativas da região, que acabam fechando parcerias e contratos de diversos valores. Conforme a organização do evento, 70% do público é de fora do Rio Grande do Sul.

- O impacto da Gramado Summit vai além do evento. Geramos um reflexo econômico significativo durante três dias, mas seguimos impactando durante o resto do ano - observa o CEO do evento, Marcus Rossi.

No ano passado, recebeu 10 mil visitantes, 500 empresas expositoras na feira de negócios e cerca de 350 palestrantes.

RS evoluiu, precisa consolidar inovação

O South Summit 2024 trouxe novas conexões e investimentos ao ecossistema gaúcho de inovação. No entanto, para Kadígia Faccin, responsável pela elaboração da pesquisa Mapeando a Governança: Percepções sobre a Maturidade do Ecossistema Gaúcho de Startups, ainda é preciso maior coordenação e colaboração entre agentes do setor para que o Rio Grande do Sul assuma maior protagonismo nesse mercado.

O estudo, realizado em parceria com a Fundação Dom Cabral, indica que as startups gaúchas apresentam média de maturidade de 8,75. O ecossistema de inovação é considerado moderadamente maduro. Segundo Faccin, os índices são positivos e mostram o potencial empreendedor do Estado, especialmente em relação a capital humano e infraestrutura. Além de ser o berço de mais de mil startups, o Rio Grande do Sul é sede de 11 dos 43 parques tecnológicos e científicos do Brasil e de 29 das 363 incubadoras espalhadas pelo país, aponta a pesquisa.

- Os números são bons, têm evoluído. O Rio Grande do Sul se coloca, em alguns rankings, como o Estado mais inovador do Brasil. Mas em termos de governança, de estrutura de inovação, essa percepção não está chegando para todo mundo, o que pode fazer o Estado perder a oportunidade de continuar nesse crescimento - afirma Faccin.

Segundo a pesquisadora, infraestrutura de qualidade de vida para atrair talentos e investidores e mapeamento de objetivos e resultados de forma colaborativa são os principais desafios para o desenvolvimento sustentável do mercado de inovação no Rio Grande do Sul.

- Em governança, é difícil alinhar interesses, criar indicadores e mensurá-los. É necessário um plano de desenvolvimento territorial que coloque a inovação no centro do processo. Seria um grande ganho para o Estado - diz Faccin.

De acordo com o estudo, o índice de governança do Rio Grande do Sul é de 6,13. Faccin aponta que a solução para melhorar essa avaliação deve ser conjunta.

- A inovação é o motor que move o mundo. Enfrentar os grandes desafios da sociedade depende disso. Quanto mais perto do fomento à inovação estivermos, mais fácil será o processo de desenvolvimento do Rio Grande do Sul - recomenda a pesquisadora.

MARTA SFREDO

30 DE MARÇO DE 2024
POLÍTICA +

Leite tenta voo direto POA-Roma

Um dos compromissos do governador Eduardo Leite e de seus secretários em Roma será uma reunião com a diretoria da ItaAirways (antiga Alitalia).

Leite quer garantir um voo direto entre Porto Alegre e Roma, duas vezes por semana. Levará como exemplo o bem-sucedido caso da TAP, que tem voo direto entre a capital gaúcha e Lisboa.

Em Hamburgo, na Alemanha, o governador terá reunião com a empresa Nordex para discutir investimentos em energia limpa, especialmente eólica e produção de hidrogênio verde. Diretores do Sindienergia vão participar desse encontro.

Ainda na Alemanha, Leite fará visita a uma das unidades da Stihl, empresa consolidada no Rio Grande do Sul e que recentemente fez um investimento milionário.

Há fotos que falam mais do que as palavras, sobretudo na política. A imagem do encontro do prefeito Sebastião Melo com o presidente do PL de Porto Alegre, Luciano Zucco, e com os vereadores Comandante Nádia, Jesse Sangali e Fernanda Barth, mais o vereador Alexandre Bobabra diz tudo: o apoio do PL está garantido.

A preocupação criada com a saída do vice-prefeito Ricardo Gomes e a entrada de Nádia no partido, interpretada como sinal de que poderia ser candidata a prefeita, se dissipou na primeira conversa entre Melo e Zucco.

A reunião com a bancada ocorreu na quarta-feira à noite, no antigo gabinete de Melo, no prédio histórico da prefeitura. Dele participaram também o chefe de gabinete, André Coronel, e o secretário Cezar Schirmer, estrategista da campanha. Ficou combinado que ninguém daria entrevista, mas a coluna confirmou com mais de uma fonte que o acordo foi selado e o PL terá a vaga de vice. O resto é espuma.

ROSANE DE OLIVEIRA


30 DE MARÇO DE 2024
MARCELO RECH

É o fim do talento?

Por décadas, a cada inovação tecnológica que afetava o campo da comunicação, da cultura ou das artes, eu me mantinha firme. Eram transformações bem-vindas porque facilitariam a produção e a disseminação do conhecimento e fariam sobressair o talento criativo como um atributo que diferenciaria cada vez mais seres humanos e máquinas.

Admito que, pela primeira vez, minha fé está abalada. Quando fui apresentado ao ChatGPT, ainda nos idos de 2022, encantei-me com o potencial da disrupção que se materializava na tela à frente. Mas desconfiei se toda aquela capacidade de redação de textos e de produção de ilustrações não seria uma pá de cal no talento criativo como um fator diferenciador.

Com o avançar da febre da inteligência artificial, a coisa foi ficando mais clara. A máquina não cria do zero. O que os LLMs (sigla para a terrível expressão large language models) fazem é ingerir conhecimento alheio e regurgitá-lo em uma forma nova, muitas vezes sem qualquer traço reconhecível dos conteúdos originais. Embora a OpenAI mantenha sigilo, estima-se que um terço dos conteúdos do ChatGPT tenha sido extraído dos vastos arquivos de veículos jornalísticos, outro terço venha de meios acadêmicos e instituições científicas, e o terço restante, de governos, empresas e demais organizações.

Ou seja, entraram na casa de todo mundo sem pedir licença, levaram os móveis, os tapetes, os quadros e até as plantas. A desfaçatez está produzindo uma batelada de ações milionárias contra os LLMs. O problema central é que nenhuma atividade que use talento criativo, a menos que (Deus nos livre!) seja dependente do Estado, sobrevive se não houver respeito a direitos autorais. 

Estávamos assim quando surgiu na semana passada o Suno, um serviço capaz de produzir uma música em segundos seguindo duas ou três instruções. Você pode tirar do nada uma canção romântica para sua namorada, escrevendo a letra ou deixando isso para o Suno, e até fabricar sua própria playlist, que será única. A coisa é assustadoramente eficaz. A máquina parece mesmo compor música com qualidade razoável.

O que resta a nós, humanos? Elevar a barra do talento e desenvolver um estilo próprio, singular, porque ao menos isso a traquitana ainda não consegue replicar. Fiz um teste com o ChatGPT esta semana. Orientei-o a copiar o estilo do David Coimbra na redação de um texto sobre derrotas por pênaltis (sem provocações). "Ah, o futebol. Esse esporte que nos faz vibrar, chorar, e às vezes, nos deixa sem palavras", começou, em uma obviedade de dar dó. Pode parar, Chat. Você vai ter de se esforçar muito ainda para conseguir plagiar o David. Sorte, por enquanto, dos criadores e dos talentosos.

MARCELO RECH

sábado, 23 de março de 2024



22/03/2024 - 13h44min
Fabrício Carpinejar

Porto Alegre é uma cidade linda para quem chega, mas é mais bela ainda para quem volta

Quem retorna de longe, como eu, descobre o quanto estar perto do seu sotaque acalma o coração. Voltar de avião para a Capital é se emocionar com a constelação de luzes, as joias fosforescentes brilhando no cais, no rio, no pescoço das ruas.

Existe um livro muito delicado e tocante, A Máquina, de Adriana Falcão. A personagem principal é uma cidade, Nordestina, “longe que só a gota”, em que as pessoas partem e jamais voltam.

Como não havia retorno da migração, ninguém viu como era a cidade de trás para diante. É como se você não pudesse observar o avesso, as costas das casas, o pórtico do outro lado. Eu fiquei preso nesse raciocínio lírico. Porto Alegre é uma cidade linda para quem chega, mas é mais bela ainda para quem volta.

Porto Alegre cresce de importância e de volume pela distância. Quem morou em outro local, ao retornar, dificilmente vai conseguir fazer as malas de novo. É tomado por uma geografia emocional, inexplicável, ligando as pontas da sua existência.Voltar de avião para a capital gaúcha é se deslumbrar com o próprio nascimento, é se emocionar com a constelação de luzes, as joias fosforescentes brilhando no cais, no rio, no pescoço das ruas.

Eu diria, inclusive, que é um segundo nascimento, em que você opta por ficar para sempre, escolhe onde envelhecer e morrer. Aquele losango de suas margens cria um apego definitivo. Olhar de cima o seu berço natal gera um arrepio, como se você finalmente amadurecesse e entendesse o seu propósito. Sela as pazes com as suas origens, com os seus pais, com os seus obstáculos de formação.

Tem que tirar os sapatos, talvez para sentir melhor o contato com o solo, talvez porque suas raízes de repente cresceram. Você se lembra mais das pessoas que o fizeram feliz do que das pessoas que o magoaram. Percebe o que deixou e entende o quanto sente falta, o quanto guarda histórias marcantes em seus viadutos, pontes, escadarias, bares, restaurantes.

A retornança é a última peça do seu quebra-cabeça pessoal.

Se você, num momento da vida, quis ir a um ponto em que ninguém o conhecesse, agora precisa de um conforto onde todos o conhecem, onde não é obrigado a provar mais nada. Cansa ser anônimo em terra forasteira, por mais sucesso que alcance, por mais prosperidade que atinja. Cansa ter que se adaptar. 

Cansa ter que ceder. Cansa ter que explicar as piadas. Cansa ter que se igualar a uma cultura diversa, sufocar seus traços, amainar sua identidade, neutralizar seus gestos, baixar a voz. Residir fora é sempre mentir um pouco a respeito de si.

Não há sentido em partir se não possui um lar de referência para saber o tanto que andou no mundo. A estrada de ida não é a mesma da vinda. A percepção é oposta. Você apenas pertence a um lugar quando já o perdeu uma vez.

Quem volta de longe, como eu, descobre o quanto estar perto do seu sotaque acalma o coração.


23 DE MARÇO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Um minuto de amor eterno

Acordo cansada. Me deito cansada. Entre os extremos do dia, evito que meus pensamentos sejam infectados pela fadiga. De manhã, ergo pesos de quatro quilos, 15 repetições, agacho, levanto, só mais 300 abdominais. Em seguida, percorro os corredores do supermercado contando os passos no aplicativo do celular e cruzo pela gôndola dos dietéticos sem me dar conta de que esqueci de pegar o chocolate 80% cacau - me obrigo a voltar e adiciono mais cem passos.

Trabalho sentada, benção e castigo. Custo a me concentrar, ainda não consigo deixar o celular fora de alcance, duas horas se passaram e renderam meio parágrafo.

Trânsito. Saio da garagem, escolho a playlist do dia - jazz, MPB, pop? - e a música me salva de gritar em meio ao congestionamento. Desolador cenário urbano: todos enlatados, a caminho de um encontro urgente que daqui a dois dias ninguém lembrará para que serviu.

Onde quer que eu esteja, o WhatsApp está comigo. A família inteira, os amigos, os desconhecidos, as relações profissionais, minha melhor confidente e o gerente do banco têm o mesmo acesso direto a mim: o sinal avisa de cinco em cinco minutos que alguém está querendo me contatar e a gente se ilude que é importante.

Preocupações. Não posso parar. Não devo. Tenho que vencer o dia, mesmo sabendo que é ele que vence sempre - ao anoitecer, fecho os olhos e mergulho num sono entrecortado. Durante a madrugada, em algum momento, desperto, talvez pela culpa de ter freado.

White people problem. A polícia não me interceptará para averiguações. Não terei que pedir fiado no armazém. Não pegarei um ônibus lotado. Os privilégios se amontoam. Há uma pilha de livros para serem lidos, viagens a trabalho, uma filha morando no Exterior que acabei de visitar. 

Escrevo. Publico. Uma realidade bem mais excitante do que aquela que, na adolescência, eu projetava como razoável. Minha vida é extraordinária. E esgotante. Rara para alguns e comum a todo ser humano que não aguenta mais. Na hora de decidir se é você que está pirando ou é o mundo, que opção você crava?

Sagrada e maldita tecnologia que veio para facilitar, mas cobra em troca a nossa alma. Eu só quero calma, tempo, fluidez. Menos responsabilidades, mais oceano, árvores, céu. Menos opiniões, mais olhares cálidos, risadas soltas, alegria descompromissada, aquela sem motivo.

Quero me sentir livre da obrigação de existir para os outros, de me vestir para os sites, de parecer mais inteligente do que sou. Quero a expansão do nada, nenhuma sabedoria para vender. Sentir a eternidade deste momento, sem espiar o relógio digital instalado no meio da avenida. Sei bem que horas são. Estou a um minuto de um reencontro amoroso comigo, sem chance de me atrasar.

MARTHA MEDEIROS

23 DE MARÇO DE 2024
CLAUDIA TAJES

Aniversariante caliente

E olha ela de aniversário outra vez, a Porto Alegre de quem a gente reclama, reclama e reclama. Mas atenção, só tem direito de reclamar quem nasceu aqui ou, vá lá, já mora por essas bandas pela vida inteira.

Porto Alegre, que faz 252 anos no dia 26, tem seus problemas, ah, se tem, mas é nossa. Não venha botar defeito se você é um paulista em visita, um carioca em trânsito, um mineiro perdido. Embora os mineiros sejam bem mais generosos em suas críticas, ao menos na minha experiência pessoal.

Porto Alegre sabe ser provinciana, quando quer. Não faltaram vereadoras gritando contra o livro de Jeferson Tenório, O Avesso da Pele, proibido por uma diretora de escola de Santa Cruz que ficou nacionalmente conhecida ao censurar a obra vencedora do prêmio Jabuti. Triste fama, dona diretora. Pior que o reacionarismo contagia, depois disso O Avesso da Pele também foi proibido em escolas do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. Porto Alegre, que sempre foi uma cidade da cultura e dos livros, podia ter passado sem essa.

Porto Alegre sabe fazer prédios gigantescos, todos iguais com suas peles de vidro, brotarem do nada onde antes havia uma área verde ou uma casa antiga. Direito de quem vende, que fique bem entendido. Por sorte o porto-alegrense raiz é, antes de tudo, um chato que cai lutando. Não fosse isso e periga nem o Jardim Botânico existir mais. Porto Alegre também sabe ser a cidade de uma farmácia a cada esquina, mas isso não é só ela. As farmácias vão dominar o Brasil, e olha que os remédios estão pela hora da morte. Haja comprador.

Porto Alegre sabe ser quente, grudenta, gosmenta e mais todos os adjetivos que dão uma pálida ideia do que acontece com seus habitantes, derretidos vivos e transformados em uma massa pegajosa que encharca as roupas e os cérebros. Bem verdade que a sensação térmica no Rio de Janeiro passou dos 60 graus, esses dias. Consola quando se abre a porta e o calor atinge a gente como um soco do Popó no Kleber Bambam?

Mas Porto Alegre também sabe ser generosa. Em busca de teatros para filmar um curta, conseguimos no amor - e bota amor nisso - a colaboração do Theatro São Pedro e do Teatro Renascença. Aí que eu digo, Porto Alegre é uma cidade que valoriza a cultura, o que não tem nada a ver com manifestações a favor da censura e do obscurantismo. É uma cidade que se orgulha de seus artistas, que está recuperando as manifestações populares, que ama as livrarias de rua - espero também que compre nas livrarias de rua, que há 70 anos faz a Feira do Livro mais charmosa do país, que tem Gre-Nal, Luis Fernando Verissimo, a Casa de Cultura Mario Quintana e o Capitólio, editoras que nunca se entregaram, lugares que resistiram e tanta gente bacana que precisaria de um jornal inteiro para citar.

Isto tudo posto, feliz aniversário, Porto Alegre. Não é porque a gente reclama, que não te ama. (Da série: poesia numa hora dessas.)

CLAUDIA TAJES

23 DE MARÇO DE 2024
SARA BODOWSKY

MOSAICO EMPRE-ENDEDOR CAMINHADA NA PRAÇA DA ALFÂNDEGA

E a Cidade Baixa vai fervilhar mesmo no fíndi. No sábado, no Artsy (Rua Lima e Silva, 594), tem a Feira Mosaico, reunindo expositores das áreas de design autoral em roupas, acessórios e itens para a casa ou para a vida.

A Feira Mosaico, que já existe há pelo menos cinco anos, propõe ser uma plataforma de divulgação de pequenos empreendedores. Durante o evento vai rolar música ao vivo e espaço kids. A alimentação fica por conta das operações do local. É das 14h às 22h.

Na quarta, dia 27, a Badejo Experiências Culturais promove o walking tour noturno Memórias da Praça da Alfândega. A caminhada será conduzida pela jornalista e guia de turismo Maria Lúcia Badejo, autora do livro Pelas Ruas de Porto Alegre: Um Guia Para Conhecer o Centro Histórico Caminhando, publicado em 2023. O percurso, um dos 13 roteiros do livro, vai recordar as diferentes fases do mais antigo centro comercial de Porto Alegre.

Sítio histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Praça da Alfândega reúne em seu entorno prédios que são referências arquitetônicas e históricas. Também estão no roteiro o Largo dos Medeiros, o Clube do Comércio e os antigos cinemas Imperial e Guarani.

O walking tour começa às 18h30min em frente ao Margs e tem duração de cerca de duas horas. As inscrições podem ser feitas no site badejo.com.br no valor de R$ 30.

MODA EM DOBRO BAZAR CRIATIVO NA ZONA SUL

Tem Brick de Desapegos em dobro neste fíndi, com dois eventos especiais que reúnem outros projetos de moda circular.

No sábado, das 11h às 19h, rola uma parceria com a Casa de Desapegos e o Brechó de Troca no Espaço Nave (Felipe Camarão, 681). O Espaço Nave oferece, além da Casa de Desapegos, também gastronomia, cerveja e música.

Já no domingo, na Cidade Baixa, na Rua Joaquim Nabuco - entre a José do Patrocínio e a Lima e Silva - estarão reunidos mais de cem expositores, oferecendo desapegos, brechós e marcas autorais de todo o Estado. A parceria com a feira Tô Na Rua traz também expositores de design, arte e decoração.

O evento todo vai das 11h às 21h (a feira termina às 19h). Rola ainda show com a dupla Mano Taz, a partir das 17h, com muita música brasileira e às 18h tem roda de samba com Igorzinho Peres e banda.

Mais informações e atualizações sobre o evento, veja o perfil @brickdedesapegos_.

Um dos meus lugares preferidos da cidade, a Zona Sul, recebe o Bazar Criativo neste sábado, das 9h às 18h, dentro da Floricultura Winge (Rua Dr. Mário Totta, 963).

A Winge é um espaço de sonho, uma verdadeira chácara com diversos tipos de flores e plantas à venda. O evento vai reunir artesãos e artistas locais. Serão diversos expositores com técnicas variadas como macramê, costura, acessórios e itens de decoração. A entrada é livre.

SARA BODOWSKY


23 DE MARÇO DE 2024
CARTA DA EDITORA

DONNA BEAUTY POMPÉIA Um novo palco para Vera Bublitz

Há 60 anos, bailarinos que vivem em Porto Alegre têm seus sonhos unidos por pliés em seus pés e afagos nos braços de uma mulher que virou sinônimo de dança. Vera Bublitz, ou Tia Vera para alunas e alunos de sua escola, não apenas completou oito décadas de vida em fevereiro. Quer mais é celebrar 2024 inteiro - logo ela, que por tantos anos pulou a data para priorizar os compromissos profissionais. 

Assim como outras trajetórias pioneiras que buscamos nas páginas de Donna, Vera precisou entender o seu tempo para domá-lo e escrever uma história para si, o que transbordaria para futuros profissionais da dança ou simplesmente praticantes apaixonados pela poesia do corpo em movimento. São processos e dilemas comuns a muitas mulheres. Ela queria ser bailarina (leia-se ter uma carreira). 

Queria ter uma família. Criou uma numerosa, cuidando com carinho de filhos de muitos pais. Em determinado momento da entrevista, brincou que precisaria parar e pensar como olhar para dentro, tão acostumada que está em falar sobre dança, competições, empreendedorismo. Queridos leitores, sobe ao nosso palco desta semana Vera Bublitz, a mulher por trás da marca. Luzes e aplausos para ela.

CARTA DA EDITORA

sábado, 16 de março de 2024


16 DE MARÇO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

Em defesa da literatura

Tirem as crianças da sala, vou reproduzir um trecho do livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. "O Tio Zé Carlos era da Polícia Civil e fazia questão que todos soubessem disso, pois, sempre que chegava, ele tirava a arma da cintura e a colocava em cima da estante e dizia: crianças, não mexam nisso, entenderam? (...) Sua avó tinha grande orgulho. Era sem dúvida o filho preferido. Zé Carlos se gabava de ter matado um vagabundo, como ele mesmo dizia, que tentou assaltá-lo certa vez. Mesmo que a investigação do caso tivesse apontado indícios de que não houve assalto e que seu tio estava, na verdade, envolvido com tráfico de armas e drogas,..."

Nenhuma escola chiou. Ninguém achou essa passagem inadequada para estudantes do Ensino Médio, mesmo contendo arrogância, mentira, incitação à violência.

E ninguém tem que chiar mesmo. Literatura não é manual de etiqueta. Não é passatempo para donzelas. O livro é a ponte entre a inocência e a vida. Uma forma de abrir a janela de casa para enxergar o mundo e ter as emoções despertadas. E elas são vastas, vão da alegria ao medo. A formação de um ser humano mentalmente saudável começa na família, recebendo amor e bons exemplos, e continua no acesso ao que existe lá fora, no estímulo à imaginação e ao conhecimento. 

Adolescentes manejam celulares cujo conteúdo passa longe da catequese. Adolescentes escutam boa e péssima música, com letras vulgares e machistas. Adolescentes convivem com outros adolescentes agressivos e desajustados. É uma sorte quando têm a chance de se familiarizar com o terror, as injustiças, as diferenças e a excitação através de uma narrativa literária.

Eu devia ter uns 14 anos quando li O Cortiço, de Aluísio Azevedo, que foi indicado pela escola em que eu estudava. Havia sexo no livro. Nos de Jorge Amado, sobra sexo. Assim como na literatura de todos os grandes autores. A descrição de um simples beijo pode ser mais perturbadora do que a descrição explícita de um coito. Depende de quem são os personagens, do contexto da história, da época em que ela ocorre. O leitor ativo tem senso crítico: assimila a inteireza da obra, em vez de apegar-se apenas ao recorte de uma cena.

O bom professor é aquele que também lê com frequência e expandiu sua consciência, eliminando preconceitos. Tanto quanto os pais de seus alunos, ele sabe que a vida é bela até certa idade, depois a gente descobre que existe violência, corrupção, fanatismo, desigualdade, racismo, prostituição, drogas e tudo mais que acinzenta a versão cor-de-rosa da infância. O sexo entra nesta lista em forma de abuso, pedofilia, estupro. Tudo matéria da literatura, na qual um adolescente pode e deve ser iniciado, sem que isso o conduza a ter uma ficha criminal.

Nenhum problema com histórias de amor, poemas idílicos, romances de aventura, textos contendo nenhum palavrão. Salve, salve. Só não sejamos hipócritas.

MARTHA MEDEIROS

16 DE MARÇO DE 2024
CLAUDIA TAJES

Carta para você

Agora que lancei um livro de cartas em parceria com a psicanalista Diana Corso (Da Sempre Tua, pela editora Arquipélago, mil perdões pela propaganda pouco subliminar), fico com vontade de escrever cartas para Deus e o mundo.

É tanto tempo mandando mensagens no WhatsApp, poucas linhas para não chatear o interlocutor - isso quando não são áudios -, que escrever cartas acaba sendo uma terapia.

Fico imaginando cartas para a operadora de internet. Para a de energia, ah, a de energia. Para quem fatia o queijo com um dedo de espessura - e dedo grosso. Para o prestador que diz que vai terminar o serviço e nunca mais. Ninguém sabe, ninguém viu.

Por exemplo, o que jurou terminar a montagem dos móveis há mais de meio ano e tomou um destino ignorado.

Estimado F., como tem passado nesses meses todos? Eu e minha família sempre lembramos de você. Não sei se ainda recorda, mas faltou instalar as portas e as prateleiras do armário do nosso quarto. Cada vez que a gente olha para aquele bololô de roupas, pensa: ah, o F. Minha esposa às vezes cogita ligar para a sua, perguntar se a casa de vocês está com tudo em cima. A nossa não está, você bem sabe, e a minha mulher fica muito emotiva com isso. Ela só não ligou ainda porque tem medo de exacerbar a emoção. O meu mais velho, o Ziquinho, está dormindo em cima das tábuas da cama que você não montou. Por sorte a coluna dele ainda é um aço - talvez não tanto quanto já foi, depois desses últimos tempos. 

Queria ver com você se podemos combinar a montagem desses dois móveis, mais a da mesa da sala, do paneleiro e das cadeiras da cozinha. Também queria pedir para você trazer de volta a persiana do quarto da pequena, que você levou para pintar e nunca mais. Desde então a minha filha de quatro anos acorda com o nascer do sol, e você pode imaginar quem ela tira da cama para brincar nessa hora. Eu tenho um grande amigo, delegado de polícia, que quer muito conhecer você. Se você não aparecer, de repente a gente pinta de surpresa aí. Pode esperar. Sempre aguardando por notícias tuas, J.

Outro que mereceria uma cartinha é aquele motorista que quase te atropelou na faixa de segurança.

Caro Senhor, tudo bem com o seu dia? Impressão minha ou nessa terça-feira, nem oito da manhã, o senhor já está acometido de uma profunda irritação com a humanidade? Entendo que o senhor gostaria que todos nós, pedestres, sumíssemos do meio da rua no momento em que o seu possante alguma-coisa-hatch prata surge no horizonte, mas né? O senhor não vai curar esse seu ressentimento por tudo o que não deu certo na sua vida passando por cima dos outros. 

Quanto às palavras que o senhor dirigiu à minha pessoa, agradeço por me fazer valorizar o quão polido é meu filho pré-adolescente de 13 anos, que eu julgava desbocado, mas que é um príncipe perto do que sai da sua boca de lobo. Fico achando que algo muito intenso deve estar a perturbá-lo para que o senhor esteja tão nervoso. Ou seria algo muito, muito pequeno? Sem mais para o momento, só a vontade de que o senhor nunca mais cruze o meu caminho e o desejo sincero de que ninguém mais passe por esse desprazer, um forte abraço. PS: Não saia de casa sem o seu Rivotril amanhã.

É um divertimento parnasiano esse de imaginar cartas para quem nos incomoda ou, melhor ainda, para quem merece o nosso amor. Sem falar que a carta não chega com barulho de WhatsApp, o que é uma grande vantagem. Sem mais para o momento, um beijo e até a semana que vem.

CLAUDIA TAJES