domingo, 31 de agosto de 2014

IVAN MARTINS
27/08/2014 10h27 - Atualizado em 27/08/2014 10h48

Desilusão

Às vezes é preciso uma bofetada que – pleft! – nos devolva de volta à vida

Desilusão é uma experiência terrível. Num momento qualquer, você está cheio de esperança. No outro, seu mundo veio abaixo. Como uma repentina bofetada, a desilusão machuca, desnorteia e humilha. É o evento dramático que, na vida amorosa, separa a realidade do sonho, os homens dos meninos e os tolos dos sábios. A desilusão é nosso diploma. Quem não passou por ela é um inocente. Ainda não sabe de nada.

Você, apaixonado, sugere à namorada que talvez seja hora de fazer planos e morar juntos. Ela responde, cheia de dedos, que talvez não esteja assim tão envolvida com você. Pleft!

Encantada com o sujeito, você pergunta, toda bonitinha, se o que rola entre vocês é um namoro – e ele diz, sem hesitar, que também sai com outra garota e não quer compromisso. Pleft!

Depois de cinco anos de casamento, as coisas esfriaram ao ponto de congelamento. Você tem esperança e propõe uma segunda lua de mel – então seu marido conta que tem saído com uma colega, que está apaixonado e vinha se preparando para contar que pretende morar com ela. Pleft!

Com essas histórias, quero dizer, ao contrário das lamúrias frequentes, que desilusão é bom. Quem nos desilude nos abre os olhos e nos descortina o mundo verdadeiro. Por isso, nos presta um grande serviço.

O iludido acredita, essencialmente, que o outro sente por ele o mesmo que ele sente pelo outro. Vive a fantasia de ser amado ou, pelo menos, tem esperança de um dia ser correspondido. É um sonhador que pode passar anos caminhando no interior do seu sonho, vendo apenas o que deseja ver. A desilusão é o despertar. Deveria ser saudada como libertação, mas costuma ser recebida com ressentimento. A pena de si mesmo é maior que a gratidão.

Na verdade, o inimigo é quem nos ilude. Faz mal aquele que, por fraqueza ou piedade – muitas vezes por vaidade – alimenta nossos sentimentos infundados. Quem nos olha nos olhos e diz a verdade merece nosso respeito. Demonstra respeito por nós, ainda que nos magoe.

A verdade, é importante que se diga, nem sempre é nítida. Quando se trata de afeto, somos criaturas confusas, habitadas por dúvidas e contradições. Por isso, mais importante que aquilo ouvimos é o que vemos. Mais importante que sentimentos, são ações. Se o sujeito parece ter por você o maior carinho, mas é sua amiga que ele chama para sair, parece que é da amiga que ele gosta – embora talvez nem saiba. As decisões dele contam tudo que você precisa saber, desde que você as conheça. Quem diz o que sente, mas esconde o que faz, ilude.
Eis uma boa máxima: não me diga o que você sente, me conte o que você faz.

Da minha parte, tendo vivido ilusões e desilusões, prefiro as últimas. Elas me salvaram de vexames profundos, me tiraram de enganos demorados, me abriram portas que eu desconhecia e me puseram no caminho certo. Tem sido assim com todos que eu conheço. Os mais tristes, os mais dignos de piedade, são os que se agarram a ilusões que todos em volta reconhecem, menos eles. A esses faz falta uma desilusão. Uma boa bofetada – pleft! – que os devolva de volta à vida.

Ivan Martins
Quanto você pagaria por um abraço de conchinha com George Clooney ou Scarlett Johansson?

Uma ex-personal trainer do Oregon cobra 60 dólares por hora


Renata Honorato - Divulgação/Cuddle Up To Me

Samantha Hess e um cliente durante uma sessão de abraço de conchinha em Portland, nos Estados Unidos (Divulgação/Cuddle Up To Me/VEJA)

Abraçar alguém é, à primeira vista, um ato de generosidade. Nos Estados Unidos, porém, há gente que faz disso um negócio. É o caso do site Cuddle Up To Me, de Samantha Hess, uma ex-personal trainer de 30 anos. Depois de sofrer com o fim de um namoro e assistir a um vídeo de um comediante vendendo abraços em uma praça, ela decidiu transformar calor humano em dinheiro. Deu certo. Ao oferecer "pacotes" de uma hora de abraço de conchinha (cuddle, em inglês, aliás) por 60 dólares, ela fatura mais de 7.000 dólares por mês — isso inclui abraços, treinamento para futuros "profissionais" e a venda de exemplares de seu livro. "É como manter um contato próximo com uma pessoa sem estar saindo com ela", diz.

Samantha afirma que a venda de abraço não tem conotação sexual. "Se alguém procura sexo ao contratar o Cuddle Up To Me, certamente ficará desapontado." Para evitar problemas, ela disponibiliza em seu site as "políticas de uso", normas que devem ser seguidas antes de fechar o negócio. Isso inclui regras de higiene. Samantha sempre pede aos seus clientes que escovem os dentes, tomem banho, lavem o cabelo, usem perfumes leves e, é claro, vistam roupas limpas antes de encontrá-la ou recebê-la em casa.

Os potenciais clientes também passam por uma entrevista prévia, por e-mail, e por uma pequena investigação, pela qual Samantha tenta afastar criminosos, por exemplo. Em seguida, ela marca uma conversa pessoalmente em algum lugar público. Se ambos se sentirem confortáveis, é marcado horário e local do grande dia. O abraço de conchinha pode acontecer na casa do cliente ou em um parque, por exemplo. Por ora, Samantha atende a clientela de Portland, cidade de Oregon, mas é possível fechar acordos especiais em outros Estados americanos.

Talvez Samantha não tivesse clientes entre brasileiros, pródigos na distribuição de beijos e abraços. Entre os americanos, contudo, os abraços são garantia de o que cliente é amado e aceito, aposta a "abraçadora". É comum, por exemplo, que deficientes físicos ou pessoas muito tímidas procurem seus serviços. "Eu gosto de chamar o meu serviço de massagem para a mente. Meu objetivo é fazer com que meus clientes se sintam parte da minha família e renovados após uma sessão", diz. Em tese, a terapia de Samantha não é reconhecida pela comunidade médica.

Outro americano, Steve Maher, de Los Angeles, oferece serviço similar: com ele, o abraço é premium. Ele é dono do site The Ecstatic Embrace, que cobra 120 dólares por uma sessão de 90 minutos. Do outro lado do planeta, no Japão, existem os chamados kyabakuras, estabelecimentos em que os clientes tomam drinks enquanto são mimados por garotas bonitas — relações sexuais são proibidas. Algumas histórias já chegaram ao cinema, com sexo. Em As Sessões, do diretor Ben Lewin, a personagem Cheryl Cohen Greene é uma "sexual surrogate", alguém que faz sexo com seus pacientes sem envolvimento romântico. O filme é inspirado em uma história real.

Na entrevista a seguir, Samantha Hess fala ao site de VEJA sobre o negócio do abraço de conchinha:

Vender abraços é uma atividade inusitada. Como descobriu esse nicho e decidiu transformar o abraço em negócio? Isso faz parte da minha personalidade. É uma maneira de manter contato físico com alguém mesmo sem me envolver emocionalmente com essa pessoa. Olhei ao meu redor, percebi que tinha muitos amigos, mas ainda assim sentia falta de alguma coisa. Um dia, vi um vídeo de um comediante que oferecia abraços por dois dólares em uma feira. Foi aí que pensei: "Eu posso fazer isso!" 

E as pessoas encaram com naturalidade a sua profissão? Algumas pessoas ficam curiosas sobre o meu trabalho, mas a maioria delas encara a ideia como um serviço real e disponível a todos. Entre meus clientes estão jovens, velhos, talentosos, altos, magros, baixos. Eles são operários, prestadores de serviços, CEOs, desempregados, homens e mulheres, gente de todo o tipo. Os mais jovens têm aproximadamente 20 anos e os mais velhos, 70 anos.

O que eles buscam ao contratá-la? Todos têm a necessidade de se sentir amados e aceitos. Eu ofereço um serviço totalmente voltado ao cliente, então eles não têm que se preocupar comigo. É diferente de um relacionamento, porque às vezes as pessoas não estão preparadas para sair com alguém. Os clientes só precisam aproveitar o momento (risos).

Quantas pessoas já contrataram seus serviços desde junho de 2013, quando você começou a trabalhar com isso? Já atendi centenas de pessoas.

Você ganha dinheiro suficiente para levar a vida somente abraçando pessoas? Essa é a minha única atividade e é com esse trabalho que levo a vida. Em abril, lancei um livro, Touch: The Power of Human Connection (Toque: o poder da conexão humana), que também rende alguma receita.

Divulgação/VEJALivro 'Touch: The Power of Human Connection'
Sobre o que fala o livro? Decidi escrever o livro porque recebo milhares de e-mails todas as semanas, especialmente quando apareço nas publicações aqui nos Estados Unidos.

Muitas pessoas queriam saber mais sobre a minha história e por que decidi trabalhar com isso. Meu livro aborda um pouco da psicologia por trás do toque, casos de pessoas que contrataram meus serviços, além de 19 dicas de posições que tornam o abraço mais confortável.

Algum cliente já achou que você fosse uma garota de programa? Há algumas regras de segurança que devem ser seguidas. Antes de fechar um contrato, a pessoa entra em contato comigo e trocamos alguns e-mails. No meu site há regras que qualquer pessoa pode baixar e ler. Depois, agendamos um encontro em um lugar público para que eu possa entender por que a pessoa deseja contratar meus serviços. A ideia é identificar qualquer sinal de alerta.

Se a pessoa estiver em busca de serviços sexuais, ela certamente não ficará contente com a minha proposta. Se tudo der certo, o contrato é assinado e então eu peço uma cópia de um documento de identificação. Todas as informações, além do local do encontro para a sessão, são encaminhadas para uma terceira pessoa. Trata-se de uma forma de zelar pela minha segurança. 

Você toma algum cuidado adicional? Fiz aulas de defesa pessoal. Também carrego comigo uma arma não letal.

Você mora em Portland. Existem planos de oferecer seus serviços em outras cidades? Abrimos uma loja física em Portland para que as pessoas conheçam o serviço. Nesse espaço oferecemos um programa de treinamento de 40 horas para interessados em aprender as técnicas do abraço. A ideia é criar centros de treinamento em diferentes países e abrir "lojas" em todo o mundo.


O que é ensinado nesse curso? Você é a professora? Eu sou a professora. Ensinamos técnicas de como tocar outra pessoa e quais as melhores posições para o abraço. Também temos aulas de marketing, desenvolvimento web e todo e qualquer assunto relacionado ao negócio.

sábado, 30 de agosto de 2014


31 de agosto de 2014 | N° 17908
MARTHA MEDEIROS

Histórias de amor

Você vive um amor ou uma história de amor?

Tem diferença, sim. Um amor é a realização plena de um sentimento recíproco. Passa por alguns ajustes, negociações, mas desliza. Pode perder velocidade aqui, ganhar ali, mas não é interrompido pelas dúvidas, não permite a entrada de terceiros, tem a consistência das coisas íntegras, duráveis. O amor, amor mesmo, é uma sorte que se honra, uma escolha em que se aposta diariamente, o amor é algo que nasce e frutifica.

Já uma história de amor é, como diz o termo, uma invenção. Algo para ser contado ao analista, desabafado para os amigos, uma narrativa chorosa e trágica, um acontecimento beirando o folclórico, um material bruto pedindo para ser transformado em obra de arte. Toda história de amor está impregnada de obstáculos que lhe conferem um status de ficção.

Amor proibido pela família, rejeitado pela sociedade, condenado por preconceitos, amor que exige fugir de casa, pegar em armas, trocar de identidade: virou história de amor. Perde-se um tempo enorme roteirizando o dia seguinte. Se fosse amor, simplesmente amor, o dia seguinte amanheceria pronto.

Amor que coleciona mais brigas que beijos, mais discussões que declarações, mais rendições que entrega: virou história de amor. Pode subir aos palcos, transformar-se em filme, faturar na bilheteria: tem enredo. Mas não tem continuidade. Sai de cartaz rapidinho.

Amor que sobrevive à distância, que se mantém através de cartas e telefonemas (permita-me a nostalgia, sobreviver pelo whattsapp não combina com literatura), o amor sem parceria, sem corpo presente, o amor que não se pratica, que não se lubrifica, que enferruja por falta de uso: virou história de amor. Sofrido como pedem os poemas, glorificado pela vitimização, até o dia em que a ausência do outro deixa de ser um ingrediente pitoresco e você descobre que cansou de dormir sozinha.

Amor que exige insistência, persistência, paciência: virou história de amor. Se fosse amor, nada além de amor, navegaria em águas mais tranquilas, não exigiria tanto de seus protagonistas, o entendimento seria instantâneo, sem exagero de empenho, desgaste, sofrimento. Aff. Histórias de amor são fantásticas na primeira parte, tiram o ar, movimentam a vida, mas da segunda parte em diante viram teimosia dos autores, que relutam em colocar o ponto final na saga que eles próprios criaram.

Amor ou história de amor, o que se prefere?


Aventureiros, notívagos, hereges, rabugentos, sedutores, inquietos, fetichistas, insaciáveis, pecadores, estrangeiros, narcisistas, intrépidos, dramáticos, agradecemos cada verso e cada noite mal dormida que vocês deixaram de lembrança, mas um dia a gente cresce e a fantasia cede lugar à sensatez: um amor está de bom tamanho.

31 de agosto de 2014 | N° 17908
FABRÍCIO CARPINEJAR

O enigma da bolsa das mulheres

Homem carregando bolsa de mulher é cavalheirismo ou o cúmulo da submissão?

Eu fico sempre baratinado.

Costumo carregar a bolsa de minha esposa no shopping quando leva minha carteira e algum livro. Eu me vejo culpado pelo peso extra.

Mesmo quando não sou beneficiado diretamente, bate uma compaixão em vê-la se esforçar com os ombros. Ela trocará de braço a cada dois quilômetros na esteira das lojas. Toda bolsa de mulher é uma mala sem rodinhas.

Mas tampouco entendo por que ela não faz uma limpeza pontual para aliviar o chumbo.

Não tem sentido dispor de um secador de cabelos, por exemplo, naquele passeio. Ou tem? Ou ela acredita que será disparado um alarme de incêndio acionando as mangueiras do teto em nossa cabeça? Será que ela pensa nisso (é de dar medo se prevê a vida com tanto engenho e longevidade)?

Não custaria nada, antes de sair, eliminar o que não é essencial. E não é que ela esqueceu o que havia dentro da bolsa, mulher somente faz faxina na bolsa quando adquire uma bolsa nova.

Enquanto usa, acumula o mundo em suas profundezas de couro. É sua impressora 3D, imprime objetos na hora.

Não acho correto o trabalho masculino, pois ela poderia ter sido mais econômica. Deveria aprender a lição arcando com as consequências.

Até porque o homem que aceita transportar a bolsa da mulher não será valorizado por nenhuma estranha no caminho.

É muita submissão. Ele se apagará para ser um caddie – carregador de tacos de golfe. Ninguém repara no caddie, apenas no golfista. O caddie desaparece nas corcovas do gramado.

Além da invisibilidade imediata para a concorrência, não nos vestimos para combinar com a bolsa dela. De repente, estaremos de azul marinho com uma bolsa marrom. É o fim da harmonia. Então, teríamos que mergulhar de vez na vassalagem e perguntar para a mulher qual bolsa pretende colocar para definirmos nosso figurino.

– Amor, tenho que me vestir, já escolheu a bolsa?

E também não é justo carregar algo em que não poderemos mexer. Jamais deixará que a gente pegue coisa alguma de dentro do seu conteúdo. Somos menores de idade diante de qualquer bolsa feminina.

Vejo que não permite a ação de nossa curiosidade para evitar o estresse dos interrogatórios. Questionaremos o motivo de ela estar com metade das tralhas. A conversa não desembocaria em nenhum acordo. O que é dispensável para o homem é fundamental para a mulher.

Entro em parafuso se é correto ou não fazer esta gentileza. Seremos favorecidos, por outro lado, com o acervo surpreendente. A bolsa é um pequeno ambulatório, é um toalete ambulante, é uma oficina de costura.

Sem papel higiênico no banheiro, onde encontrará um rolo salvador? Na bolsa dela! Na primeira pontada de uma enxaqueca, onde encontrará o medicamento redentor? Na bolsa dela!


Descosturou a camisa, onde achará linha e agulha? Na bolsa dela! Somando os prós e os contras, o problema existencial resultará num empate. Como voto de minerva, sugiro não carregar a bolsa, porém realizar um curso de massagem para aliviar as dores nas costas de sua esposa.

31 de agosto de 2014 | N° 17908
ANTONIO PRATA

Dupla personalidade

Eu descobri, doutor, eu entendi finalmente por que que os meus namoros não dão certo, o problema... O problema é que eu e o meu pinto não temos a mesma formação. Não, muito pelo contrário, são duas visões de mundo radicalmente diferentes. Eu sou professor universitário, sou fã do Truffaut, eu voto no PSOL, já o meu pinto... Ele gosta de umas mulheres de argolão dourado, salto alto e muito perfume. Umas mulheres que eu não consigo aguentar por três meses e que me acham um mala, também. Eu sou de esquerda, doutor, mas o meu pinto é de direita.

É como se, tipo, todo dia, durante a infância e a adolescência, antes de eu pegar a perua e ir pra Waldorf, a escola antroposófica que eu estudei, meu pinto tivesse sido desatarraxado de mim, tivesse entrado em outra perua escolar, tipo uma peruazinha de controle remoto, só pra pintos, e ido estudar no Dante, no Bandeirantes ou, sei lá, no Santo Américo. Só pode ser, doutor. Senão, como é que explica?

Pra você ver como a gente é diferente: um dia, se eu tiver uma filha, eu quero que ela chame Luiza, em homenagem ao Tom. Mas as mulheres que o meu pinto escolhe são todas Waleskas ou Jéssicas ou Tábathas, dessas com agá no segundo T. É no segundo T, o agá de Tábatha? Ou é no primeiro? Não sei. O meu pinto sabe, com certeza, mas adianta perguntar pra ele? Ele não me ouve.

Quantas vezes eu já não apresentei mulheres pra ele, mulheres bacanas, eu disse, amigão, essa é pra casar, pra ter uma filha chamada Luiza, pra comprar o pacote completo da Mostra e ir até na animação muda do Uzbequistão, domingo de manhã, mas ele se finge de morto, nem tchuns. Aí eu vou no shopping trocar um presente que eu ganhei de aniversário, chega a vendedora de unha vermelha, rabão de cavalo loiro, diz, “bom dia, eu sou a Kátia, posso tá te ajudando?” e pronto, ele parece um cachorrinho quando os donos voltam de viagem.


Eu tava pensando: e se a gente tentasse uma terapia de grupo, eu e ele? Ou melhor, uma terapia familiar. É, porque às vezes eu acho que esse negócio de ele querer me contradizer em tudo é uma fase de negação, tipo um complexo de Édipo, se a gente pensar que eu sou o pai do meu pinto e que, tipo, ele precisa me matar pra achar a individualidade dele. Será que é isso? Não, não pode ser fase: eu tô com trinta e cinco e ele é assim desde a adolescência, não vai mudar.

Quem eu tô querendo enganar, doutor? O erro foi meu, claro. Fui eu que eduquei o meu pinto e eu sei o que ele leu na juventude. Leu Playboy e Sexy e Penthouse. E como eram as mulheres na Playboy, na Sexy e na Penthouse? Tinham cara de quem quer ter uma filha chamada Luiza em homenagem ao Tom e ir na Mostra ver animação muda do Uzbequistão? Não, eram todas loiras platinadas, com unha vermelha e rabão de cavalo, tinham cara é de quem quer ir pra Vegas andar de conversível vermelho. Vegas, doutor! Conversível! Eu voto no PSOL!

Todo dia eu vou pra faculdade pela ciclovia e todo dia o meu pinto quase me faz cair da bicicleta, porque ele tira a minha atenção do caminho e me obriga a olhar as mulheres dentro dos SUVs, na rua. Aquelas mulheres pequenininhas dentro daqueles carrões enormes, tem alguma coisa ali... Ele pira.


É grave, doutor?

sábado, 23 de agosto de 2014


24 de agosto de 2014 | N° 17901
MARTHA MEDEIROS

Feliz aniversário

Ela sabe que é um pensamento improdutivo, mas mesmo assim se preocupa com a passagem do tempo, parece uma menina assustada diante do acúmulo de números que sua idade vem ganhando. Não entende onde foram parar seus 16 anos, seus 21, seus 29, seus 35, seus 42.

Ora, onde eles podem estar? Todos ainda dentro dela.

Ao assoprar as velas, a sensação é de que o passado também se apaga e um presente totalmente novo é inaugurado. Sendo virgem da nova idade, é como se estivesse nascendo naquele específico dia com pequenas rugas e manchas surgidas subitamente, e não trazidas do antes. Como se estivesse vindo ao mundo na manhã do festejado dia com os quilos, as dores e os limites de um adulto recém-nascido e com uma expectativa de vida mais curta, sem registro algum do tempo transcorrido até ali, aquele tempo que sumiu.

Sumiu nada.

Você tem seus 16 anos para sempre. Seus 21. Seus 25 e todos os outros números que contabilizou a cada aniversário: você tem oito anos, você tem 19, você tem 37. Você só ainda não tem o que virá, mas os anos que viveu ainda estão sendo vividos, são eles que, somados, lhe transformaram no que é hoje. Sua idade atual não é uma estreia, você não nasceu com esses anos todos que sua carteira de identidade diz que você tem. Só o dia do seu nascimento foi uma estreia. Desde então, você nunca mais saiu de cena. Ainda estão em curso seus primeiros minutos de vida.

Você ainda sente o nervosismo das primeiras vezes, as mesmas dúvidas diante das escolhas, o afeto por pessoas que foram importantes lá atrás, a adrenalina dos riscos corridos. Nada disso evaporou. O ontem segue agindo sobre você, segue interferindo na sua trajetória. É a mesma viagem, a mesma navegação. O meio de transporte é seu corpo, e ele ainda não atracou.

Mas e todo aquele peso extra que você um dia jogou ao mar? Não muda nada. A viajante que durante o percurso vem se desfazendo de algumas coisas continua sendo você. Aquele instante aos 19 anos ou aos 26 em que você cruzou o olhar com alguém que modificaria seu futuro continua acontecendo, o ponteiro continua se mexendo, o tempo não parou. Desiludem-se os amantes apaixonados que, quando se instalam num amor maduro, não encontram mais a mágica anterior que fazia o tempo parar, mas não se deve ser tão fatalista, você não tem 18 anos, ou 37, ou 53. Você tem 18, 37 e 53. No que tange o tempo vivido, não há “ou”. São várias idades contidas numa frequência cardíaca ininterrupta.


Você chegou a uma idade gloriosa, a idade de entender que não existem perdas, só ganhos. Não existe envelhecimento, e sim desenvolvimento constante. O tempo não passa, ele está sempre conosco. O novo não ficou para trás, ao contrário, o novo está adiante: na vida que ainda está por vir.

24 de agosto de 2014 | N° 17901
FABRÍCIO CARPINEJAR

O dia seguinte hoje

Ao fazer festa em casa, do que mais gosto é a bagunça.

Não da festa em si, mas daquilo que precisarei arrumar no dia seguinte.

Sou vidrado pela ideia de reconstrução de um ambiente em algumas horas.

Tudo repentinamente fora do lugar, sujo, imundo, e há o desafio de reencontrar a ordem natural das coisas.

É uma recriação do mundo num final de semana.

O corredor beira o estado de sítio, o banheiro sofreu com o desespero dos boêmios, as estantes dos livros estão cheias de bandejinhas de salgados.

Nem espero o dia seguinte.

Nada mais íntimo dentro de um casamento do que o silêncio das 6h. Todos já foram embora, felizes com a balbúrdia, e nós dois decidimos ajeitar o lar enfrentando o cansaço.

O previsível era deitar com a roupa do corpo e desmaiar, desprezando os escombros e a vida virada pelo avesso.

Mas não, eu e minha mulher adoramos o pós-festa, quando estamos sozinhos.

Reina uma sensação de paz, de sobrevivência.

A faxina é partilhar a memória do encontro. Melhor do que roda de violão.

A faxina é fixar as lembranças antes que sejam corrompidas pela enxaqueca do meio-dia.

Ela segura o lixo de 100 litros e eu vou buscando as garrafas de cerveja espalhadas pelos cantos.

Vamos conversando sobre as cenas mais engraçadas da festa, o comportamento dos amigos, as coreografias das músicas ridículas.

Cada um repassa o que viu e o que conversou. Como anfitriões, tínhamos o trabalho de nos revezar por diferentes turmas e atender a todos, não deixar ninguém excluído e isolado. Naquele momento, completamos o quebra-cabeça da noite.

– Você falou com a Vanessa? E como ela está com o marido?

– Sim, pareciam alegres. Já passou a tormenta.

De nosso papo frugal, seguimos com o rodo e a vassoura, um encarando o outro com ternura.

De vez em quando, reclamo da dor nos braços. De vez em quando, ela reclama da dor nos pés. São exclamações naturais do sacrifício que não se estendem por muito tempo.

Ela massageia rapidamente meus ombros e diz que providenciará uma massagem mais tarde. Eu tiro seus sapatos, apertos seus dedos e juro que depois pego um creme para aliviar o estresse.

A admiração é feita de pequenas pausas e promessas.

E seguimos nosso baile mudo, nossa coreografia de espuma e detergente.

Lamentamos uma mancha que não sairá no sofá ou algumas cicatrizes novas nas paredes. Não choramos por algo que tenha sido quebrado. Entendemos que a amizade é para ser usada.

Recolhemos o exército de copos e cálices, os pratos sujos, e não nos intimidamos com a quantidade de louça que ocupa a mesa inteira da cozinha.

Dividimos as tarefas: primeiro os copos, depois os pratos, em seguida os talheres. Assim não sofremos com a dimensão assustadora do compromisso.

E continuamos nossa troca de impressões ouvindo os pássaros assobiando ao longe. Não temos certeza se são os rumores das aves ou se é a claridade cantando lentamente na janela.

Ela pergunta se estou com fome. Paramos um pouco nossa arrumação para esquentar salgados e comer sentados no chão da cozinha, na posição de índios ao redor da fogueira.

Corre entre nós uma cumplicidade apaixonada, como se só nossos olhos dançassem.

O amor não é apenas uma festa, como alguns imaginam. O amor é também dividir o trabalho de limpar a casa.


Acordamos com o apartamento brilhando e nos beijamos de olhos fechados, ainda sonhando.
RUTH DE AQUINO
15/08/2014 21h38 - Atualizado em 17/08/2014 11h49

Quem tem medo de Marina?

Viúva política de Eduardo Campos, a coerência dela assusta a quase todos. Não é normal no Brasil
 
Os olhos de Marina Silva falaram muito na semana passada. Sombrios, avermelhados, estavam ora cabisbaixos, ora elevados ao céu em conversa particular com seus santos. Nenhuma maquiagem. Acima dos olhos, as sobrancelhas espessas, sem depilação. Abaixo dos olhos, as olheiras escuras, sem disfarce.

O coque, a echarpe preta, a austeridade, sem choro ou afobações. Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima, nascida no Acre em fevereiro de 1958, filha de seringueiros migrantes cearenses, contaminada por mercúrio aos 6 anos, analfabeta até os 16, aluna do Mobral, ex-empregada doméstica, formada em história, sobrevivente de malárias, hepatites e uma leishmaniose, continua a mesma. É evangélica, sempre se despede com um “vá com Deus”, mas não busca abertamente o voto dos crentes. Essa coerência assusta a quase todos. Não é normal no Brasil.

Marina é a viúva política de Eduardo Campos, queiram ou não. Talvez nunca um candidato tenha citado tanto seu vice. Ela passou dez meses ao lado de Campos, calada em público mesmo quando divergia. Era curioso o contraste físico e de personalidades. Campos esfuziante, forte, com o sorriso aberto e o brilho dos olhos azuis. Marina morena, magra, séria, sóbria e discreta. Agora, terá de falar – e muito. O que manteve Marina silenciosa nos dias após a tragédia foi um misto de luto, elegância e prudência.

Há raposas em todos os partidos – no PT, no PSDB e também no PSB – em busca dos destroços e holofotes. Querem decifrar a caixa-preta dos eleitores órfãos e herdar os votos da terceira via. A família de Campos, em meio a lágrimas e ao sofrimento, foi a primeira a legitimar Marina como herdeira natural do slogan da “coragem” para mudar o país. “Não vamos desistir do Brasil”, disse Campos. A ex-senadora Marina é a herdeira do “voto-comoção”. Todos os obituá­rios de Campos a fortalecem, porque compartilhavam valores e a dissidência do petismo.

“Se tenho um exemplo a dar com minha trajetória, é o da coragem, que não é a da força bruta, mas de saber manejar sonhos e catalisar energia”, disse Marina. A declaração poderia ter sido feita na semana passada. Foi há mais de dez anos, quando era ministra do Meio Ambiente de Lula.

Essa falta de medo está tatuada na pele de Marina. Em 1988, quando assumiu a CUT e a política do Acre depois de Chico Mendes ser assassinado, afirmou que não sofria amea­ças: “Um corpo frágil não assusta ninguém”.

Quando José Dirceu, já ex-ministro, escreveu que o mandato de Marina pertencia ao PT, ela reagiu dizendo que já havia enfrentado madeireiros, fazendeiros, cangaceiros: “Com certeza, o Zé não fez isso para me intimidar; não faz parte do caráter dele”.

Há cinco anos, em agosto de 2009, depois de engolir muito sapo, Marina trocou o PT pelo PV para se candidatar à Presidência. Era pelo verde, pelo social e por muito mais que saía de perto de Lula e da mãe do PAC, Dilma Rousseff. Colheu quase 20 milhões de votos, deixou o PV após a eleição de 2010 e tentou, no ano passado, abrir um novo partido, Rede Sustentabilidade. Nome péssimo para o marketing político – mas, de novo, coerente. Não é uma sigla vazia.

Sem o limite mínimo de assinaturas válidas, Marina ignorou os companheiros xiitas e pendurou sua Rede no PSB de Eduardo Campos em outubro de 2013. Foi uma jogada de xadrez do tipo “vocês terão de me engolir”. Ela não podia imaginar o que o tabuleiro político lhe reservava ainda nesta eleição. Na fumaça da tragédia, em suas orações diárias, a Marina fundamentalista precisa pedir três coisas: sabedoria, sabedoria, sabedoria.

Uma vez, Marina escreveu um artigo para a imprensa chamado “O improvável e o imprevisível”. Um título quase premonitório. Foi seis anos atrás, ela ainda estava no PT. Citava várias vezes a filósofa alemã Hannah Arendt para criticar a arrogância dos partidos, que se consideram donos da energia política da sociedade. Eis um trecho, editado:

“O sentido da política é a liberdade. Os cidadãos e cidadãs estão criando uma política livre, viva, na academia, nos movimentos culturais, no consumo consciente, na internet, nas empresas, nas ONGs, nas igrejas. O grande desafio da democracia é criar espaços múltiplos de participação política, nos quais os partidos sejam parceiros e não guias. Os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível. É o que a sociedade brasileira está fazendo. E os partidos ainda não se tocaram”.

Marina escreveu isso em 2008. Seu pescoço projeta veias caudalosas. Sua voz é arranhada. Rugas estão intactas. Não parece se curvar facilmente a nenhum “media training”. Por que será mesmo que tem tanta gente com medo dela?



23 de agosto de 2014 | N° 17900
PALAVRA DE MÉDICO | J. J. Camargo

O ESQUECIMENTO QUE NOS PROTEGE

Foi uma surpresa desagradável, como é a maioria das surpresas. De braços abertos oferecidos, ela bloqueava a saída dos espectadores na porta do teatro, e com uma declaração desconcertante: “Obrigada, doutor, por eu estar aqui, vivíssima, graças ao teu talento de cirurgião. Nunca vou esquecer a tua confiança quando me disseste: se não curares deste tumor, eu rasgarei meu diploma!”.

A previsível reação dos circundantes incluía olhares divididos entre os ingênuos, plenos de admiração por tanta competência, e os mais perspicazes, extravasando repúdio pelo modelo de presunção e arrogância.

Eu lembrava perfeitamente dela, da complexidade do seu caso e do esforço que fizera à época para manter o otimismo e a esperança, apesar da possibilidade real de recidiva da doença, nunca omitida.

Mas de onde ela retirou essa frase exemplar de soberba desmedida? Logo eu, que sempre debochei de um antigo mestre que encerrava as discussões de casos clínicos complexos justo com aquela ameaça, tantas vezes repetida, que ironizávamos dizendo que ele devia ter uma máquina de fotocópia em casa (aos mais jovens, essa era uma engenhoca que copiava documentos e que antecedeu o xerox que, enfim, também foi substituído pelo..., bom, não interessa, ela copiava!).

A propósito, é comum que as experiências médicas sejam tão glamorizadas pelos pacientes que as contam e recontam tantas vezes que, depois de um tempo, não têm nada a ver com o que de fato aconteceu, restando apenas a lembrança do agradável.

O nosso maravilhoso Ivan Izquierdo ensinou no seu imperdível A Arte de Esquecer que é necessário que apaguemos da consciência determinadas lembranças para a preservação do nosso bem-estar.

Sabe-se que a memória é uma intrigante faculdade mental que permite registrar, armazenar e manipular as informações colhidas por meio de vivências, que são captadas por nossos órgãos dos sentidos.

O mais fantástico do sistema é que ele, na sua forma ideal, nos protege tanto com o armazenamento de memórias boas quanto com o esquecimento das indesejáveis.

Porque, de fato, é saudável esquecer ou pelo menos manter longe na memória, numa espécie de arquivo morto, aquelas lembranças constrangedoras, como experiências de medo, humilhação e covardia.

Para tocar a vida e ir adiante, o cérebro possui um mecanismo de proteção: ele pode inibir determinadas memórias ou deixá-las praticamente inacessíveis, por meio de um fenômeno que os psicanalistas chamam de repressão. E isso ocorre o tempo todo, mesmo sem nossa vontade ou consciência. Memórias perturbadoras podem emergir a qualquer momento sob a formas de sintomas variados em pessoas que não sabem explicar por que fizeram o que fizeram, nem tampouco o que sentiram ao fazer.

Mas quando essas memórias desagradáveis são acessadas e processadas, elas se transformam em autoconhecimento e aprendizado, esta que é a deliciosa e desafiadora tarefa dos terapeutas do psiquismo.

O convívio diário com pacientes oncológicos é um inesgotável exercício de negação e de esperança e, conscientes ou não, temos de admitir que essa estratégia flexível e generosa pode ser um pré-requisito para a nossa sobrevivência.

Quando Iracema voltou ao consultório um tempo depois, não resisti lhe perguntar: “Tens certeza que fiz aquela promessa ridícula de rasgar o diploma?”.

Ela pensou um tempo e concluiu: “Agora que perguntaste, fiquei em dúvida. Mas se não disseste, devias ter dito. Eu teria sofrido menos!”.


Como questionar a sabedoria da maravilhosa blindagem cerebral?

23 de agosto de 2014 | N° 17900
 NÍLSON SOUZA

A TEORIA DE TUDO

Essa onda de despejar baldes de gelo na própria cabeça começou com um propósito meritório, a arrecadação de fundos para a pesquisa que busca a cura para a ELA, a esclerose lateral amiotrófica – uma doença degenerativa que provoca atrofia muscular, mas deixa a capacidade intelectual e cognitiva do paciente praticamente intacta. O mais famoso portador dessa enfermidade é o físico britânico Stephen Hawking, autor de Uma Breve História do Tempo.

Ele já superou todos os prognósticos médicos e, apesar das limitações motoras, continua ativo com mais de 70 anos. Sua vida é o tema de um longa-metragem programado para janeiro de 2015, que se chamará exatamente A Teoria de Tudo – uma história de superação humana e de teses sobre o princípio e o fim do Universo.

O cinema já mostrou algo parecido no filme O Meu Pé Esquerdo, que deu o Oscar para Daniel Day-Lewis pela impressionante interpretação do escritor e artista plástico irlandês Christy Brown. Com restrições físicas resultantes de uma paralisia cerebral de nascença, ele conseguia movimentar apenas o pé esquerdo, o que não o impediu de superar obstáculos, preconceitos e problemas familiares, tornando-se o mais produtivo dos 13 irmãos. É, também, uma história espetacular, que impõe reflexão e conscientização sobre pessoas com deficiência.

Em tempos de exibicionismo explícito e de selfie em velório, personagens como Hawking e Brown sempre nos ajudam a retornar à vida real, que tem como protagonistas outras pessoas além dessa gente famosa, bonita e saudável que se diverte com os banhos de gelo. Os doentes célebres representam uma população invisível de indivíduos que passam a vida dependendo de ajuda para sobreviver, muitas vezes sem recursos para um tratamento que ao menos lhes alivie os sofrimentos.

Para compensar essa injustiça biológica, existem anjos no mundo. Não, não me refiro a criaturas com asas e auréolas, criadas pela imaginação humana. Falo de pessoas de carne e osso, de pais e mães que dedicam suas vidas aos filhos especiais, dos atendentes de asilos e hospitais, dos cientistas que buscam incessantemente remédios para a cura de doenças, de uma multidão de anônimos que trabalha para atenuar a dor alheia.

Acredito firmemente que algum tipo de felicidade suprema deve estar reservado a essas almas puras.


Esta é a minha contribuição para a teoria de tudo.

23 de agosto de 2014 | N° 17900
PAULO SANT’ANA

Sobreviveu à tortura

Volto hoje, como prometi anteontem, a reproduzir o relato da colunista de O Globo Miriam Leitão ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, sobre os horrores que sofreu durante a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964.

Meu propósito é somente o de que nunca mais se reproduza uma ditadura no Brasil.

Continua Miriam: “Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento.

Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com as outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.

Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 quilos de peso, saí três meses depois pesando 39 quilos. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que o médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.

– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.

Mas isso foi ao sair. Lá dentro, achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.

Um dia, achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero viver’”.

“Numa noite, numa sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.

Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: ‘Terrorista, terrorista!’.”

“Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (três anos) e Isabel (um). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.


Minha vingança foi sobreviver.”

quarta-feira, 20 de agosto de 2014


20 de agosto de 2014 | N° 17896
MARTHA MEDEIROS

Mau tempo

Quando leio notícias como a do acidente que vitimou Eduardo Campos, me dá um mal-estar não só por ser mais um aviso sobre a precariedade da vida, mas por reconhecer que, quando não se morre de doença, se morre de chuva, de vento, de tempestade. É outro tipo de morte por causa natural.

As quedas de aeronaves são bem representativas. Dificilmente caem por desgaste mecânico. Ou são abatidas pelas mãos do homem (ataque terrorista e falhas humanas) ou são abatidas pela falta de visibilidade, pela instabilidade provocada por pressões atmosféricas, por arremetidas que são sempre manobras súbitas, e por isso o frio na barriga. Os problemas técnicos na aeronave do candidato à Presidência surgiram posteriormente à arremetida – se as condições meteorológicas fossem boas, tudo indica que teria aterrissado com tranquilidade.

Acidentes de carro acontecem mais em dias de pista molhada do que seca. Engavetamentos em estradas acontecem quase sempre por causa de nevoeiros, temporais e nevascas.

Pessoas perdem tudo o que têm em enchentes e deslizamentos de terra, barcos naufragam no mar revolto, ondas gigantes invadem praias, casas são destelhadas por tufões, suicídios acontecem mais no inverno do que no verão. A tragédia, decididamente, não é solar.

A vida muda – e até termina – por uma questão que está fora do nosso controle, o clima. Há paliativos, ok. Pode-se prever e minimizar os riscos, mas não se pode evitá-los, então somos ceifados por uma potência destrutiva que não vem da maldade do homem e sim do humor da natureza e que atinge a todos: crianças, velhos, pobres, ricos, pessoas de qualquer lugar, de qualquer idade, numa loteria democrática, mas sempre injusta.

Quando vejo moradores varrendo a lama de suas moradias no dia seguinte ao de um estrago devastador, me parece uma provocação: o céu límpido retorna ao local do crime com a maior cara de pau. O sol no dia seguinte ao de um tsunami é um convidado atrasado, alguém que não conseguiu chegar a tempo de impedir uma desolação. É bem-vindo porque traz a possibilidade de reconstrução, porém a reconciliação é provisória. Pessoas que perdem seus filhos, maridos e esposas para os desatinos climáticos são confrontadas com a total falta de lógica da existência.

Como diz uma amiga minha, “a morte é definitiva demais para o meu gosto”. De fato. E mais definitiva nos parece quando acontece de uma hora para outra, pelo capricho de nuvens pesadas, garoas insistentes, rajadas desestabilizadoras, umidades traiçoeiras, por um anoitecer prematuro, por relâmpagos, pelo cenário típico dos pesadelos, que, ironicamente, tem lá sua poesia e sua beleza, como em toda tragédia – desde que a gente sobreviva a ela, claro.


Ninguém deveria morrer de mau tempo, mas a natureza não negocia.