sábado, 30 de janeiro de 2010



31 de janeiro de 2010 | N° 16232
MARTHA MEDEIROS


É impossível ser feliz sozinho?

Pense nos melhores momentos da sua vida: você estava sozinho ou acompanhado?

A limentar muita expectativa é o caminho mais curto para a frustração. Mais uma vez a máxima se confirmou: fui assistir a Amor sem Escalas, o badalado filme do mesmo diretor do excelente Juno, e não fiquei impactada como se prenunciava. Achei bom, apenas.

Tem alguns diálogos espertos e uma inversão de papéis inusual (no que se refere a relações entre homens e mulheres), mas, apesar do frescor que Jaison Reitman imprime a seus filmes, desta vez ele por pouco não escorregou pro sentimentalismo barato. Dentro do mesmo tema – é possível ser feliz sozinho? – prefiro Estrela Solitária, de Wim Wenders, que tratou sobre o isolamento do ser humano com muito mais poesia e beleza.

Ainda assim, uma frase me marcou. “Pense nos melhores momentos da sua vida: você estava sozinho ou acompanhado?”.

Pode não ser comum, mas há pessoas que não têm nenhuma vocação para constituir família, e nem por isso merecem a cadeira elétrica. Eles simplesmente preferem estar em movimento, não ter amarras, e essa liberdade cobra um preço que, se costuma ser alto para a maioria, para outros pode ser uma dívida fácil de quitar.

Eu bem que gosto de ficar sozinha. Já tive ótimos momentos comigo mesma dentro de um trem, em frente ao mar, lendo um livro. Mas reconheço que os momentos sublimes, aqueles eleitos como inesquecíveis, aconteceram quando eu estava “avec”. Reconhecer isso não faz eu desprezar a solidão, mas me impede de adotá-la como estilo de vida permanente.

Sozinha eu posso ser mais livre, mas não sou desafiada. Compartilhar a vida com alguém exige participação: a gente é impelido a se manifestar, a traduzir em gestos e palavras o que estamos sentindo, e isso engrandece o momento, cria vínculo, avaliza o que está sendo vivido, confere magia ao instante, credibiliza aquilo que está nos deixando emocionado.

Não precisa ser um momento repartido apenas com seu grande amor: pode ser também com os pais, com um irmão, um amigo, até mesmo com desconhecidos. Quando se olha nos olhos dos outros e se compreende o que se está passando, a sintonia se dá, mesmo silenciosa.

Lembrei de Scarlett Johansson sozinha num bar de hotel em Tóquio, percebendo o também solitário Bill Murray tomando seu uísque, em Encontros e Desencontros. A secreta comunicação do olhar entre ambos dava sentido ao que não havia sentido algum.

Pode acontecer entre dois, e também pode acontecer entre muitos. Um estádio de futebol lotado, com a massa gritando pelo mesmo time. Um show vibrante, todos cantando a mesma letra. Imagine se o espetáculo fosse exclusivo pra você: que graça teria?

Estando sozinhos, a sensação interna sobre o que está sendo vivido é quase triste, mesmo que não seja.

Juntos, até o que não parece alegre, fica.


30 de janeiro de 2010 | N° 16231
NILSON SOUZA


O objeto perfeito

O caderno Vestibular, encartado na edição da última quarta-feira deste jornal, apresentou uma desafiadora sugestão para estudantes do Ensino Médio: a leitura de um livro por mês. Educadores e especialistas selecionaram títulos por faixa etária, e o jornal apresentou um roteiro específico para jovens entre 15 e 18 anos, indicando um livro a cada 30 dias como receita, senão para uma formação literária excelente, pelo menos para uma vida prazerosa.

Li com atenção a reportagem, conferi os títulos que já fazem parte do meu currículo de leitor, mas fiquei pensando: que jovem da geração digital dispõe de tempo para devorar um livro por mês?

Os críticos mais rigorosos do admirável mundo novo em que vivemos certamente responderão que o problema não é tempo, mas vontade. Como diria aquele célebre dicionarista, discrepo. Vontade muitos têm. Mas os apelos da tecnologia são mais fortes.

Os celulares chamam, torpedeiam, vibram como pequenos terremotos da atenção. Os computadores brilham, emitem ruídos, falam e ouvem. Os tocadores de música ocupam os ouvidos e o cérebro. Os teclados chamam os dedos. Fica mesmo difícil exigir que a garotada se conforme em ocupar as mãos e os olhos com um objeto aparentemente inanimado como um livro.

E no entanto ele se move. O livro (de papel, bem entendido) é um daqueles objetos perfeitos – portátil, fácil de manusear, responde prontamente ao toque dos dedos que o folheiam, permite retrocesso nas páginas, dispensa o uso do mouse, não trava, o conteúdo não se apaga quando falta luz nem quando se toca numa tecla errada. Dependendo do operador, pode ser tão interativo como qualquer equipamento eletrônico, já que possibilita soltar a imaginação.

Acho mesmo tudo isso, mas reconheço que esta é uma visão antiga. Estudiosos do cérebro dividem os leitores em contemplativos, fragmentados e virtuais.

Os primeiros são da época ancestral em que o livro era a principal fonte de conhecimento, consumia todo o tempo do consulente. O leitor fragmentado pegou o tempo do jornal, da televisão, do ambiente urbano cheio de placas luminosas, sinais que se movem.

Passou a consumir a leitura com pressa, em movimento, sem tempo para reler e meditar. E chegamos ao leitor virtual, que interage com som, texto, imagem, vídeos, telas planas, tudo misturado, numa celeridade quase alucinógena. É quase antinatural querer que essas criaturas multimídias desacelerem cérebros e dedos para ler um livro por mês.

Mas quem já leu vários daqueles títulos sugeridos pelo velho método de folhear página por página tem motivos para pensar que a garotada está perdendo algo muito valioso.

Um lindo sábado e um gostoso fim de semana

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010



27 de janeiro de 2010 | N° 16228
MARTHA MEDEIROS


De braços abertos

Eu não costumava prestar atenção nessas coisas, mas certa vez caiu no meu colo uma dessas reportagens que falam sobre nossa linguagem corporal, e me dei conta de que eu andava mandando um recado muito malcriado para as pessoas com quem eu me relacionava: tinha mania de conversar com os braços cruzados. O problema disso? Segundo os entendidos, todos.

Quem cruza os braços demonstra uma certa resistência em se entregar, não está querendo que invadam seus domínios, assinala que não quer muita aproximação. Dependendo do caso, até que os braços cruzados servem mesmo como um bom escudo, mantém cada um no seu quadrado, mas pô, na maioria das vezes, minha alma, silenciosamente, abraçava a pessoa querida com quem eu conversava, por que nem assim eu desamarrava os braços?

Hábito. Um mau hábito. Hoje estou atenta à linguagem corporal e mantenho os braços soltos, e se me descuido sou até capaz de conversar apoiando minha mão no ombro da pessoa, feito uma comadre abusada. Não tenho mais o corpo fechado, estou desprotegida para o que der e vier.

Toda essa introdução pra dizer que, mesmo me esforçando para abraçar a vida, ainda tenho um longo caminho a percorrer até chegar à exaltação carnavalesca de Kiki Joachin, o menino de sete anos que foi resgatado dos escombros do Haiti semana passada e que foi responsável pela cena mais doce dessa tragédia infame.

Kiki, morrendo de fome, morrendo de sede, morrendo de medo, morrendo de dor – morrendo –, não esperou nem meio segundo para, fora do buraco, esticar seus braços feito um mestre-sala na avenida, feito um artilheiro que fez seu gol mil, feito o azarão de todas as apostas que conseguiu vencer o campeonato.

Driblou todos os prognósticos, viveu. E comemorou imitando o Cristo Redentor, só que com muito mais alegria – santos fazem milagres, mas jamais sorriem, não entendo por quê.

Então, em homenagem ao Kiki, que a gente nunca mais cruze os braços pra nada, a exemplo também de outro menino de sete anos, dessa vez o britânico Charlie Simpson, que se propôs pedalar sua bike por oito quilômetros em volta de um parque para conseguir doações para o Haiti. O tiquinho de gente arrecadou 132 mil libras, cerca de R$ 390 mil.

Descruzando os braços, a gente se desarma e participa mais da sociedade. Se aproveitarem nossa vulnerabilidade para nos atingirem, a covardia será dos outros, não nossa.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010



26 de janeiro de 2010 | N° 16227
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Sobre uma foto

No outono de 1964, a noite acabara de cair sobre o Brasil. Inauguravam-se os Anos de Chumbo. Por mais de duas décadas, todas as leis se submeteriam a uma só – a do arbítrio.

Acabei de revisitar a inauguração daquela era de autoritarismo. O Jornal do Povo, de Cachoeira, mantém uma seção dominical chamada Olho Mágico, em que se publicam fotos e notícias antigas da cidade. E é nela que me deparo com um flagrante da vida real: um instantâneo do coral da Escola Normal João Neves da Fontoura no dia 22 de maio de 1964.

Em Brasília, em Porto Alegre, em centenas de lugares, brasileiros tramavam a perenidade do golpe de 31 de março. Rompia-se o Estado de Direito, rasgava-se a Constituição. Quem era contra a nova ordem submetia-se à violência, à cassação de mandatos, à perda de prerrogativas de cidadania.

Mas havia uma lógica estranhamente perversa no processo. Funcionava um simulacro de instituições democráticas. Mesmo mutilados, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados mantinham uma aparência de normalidade. Mesmo desfigurada, a Assembleia Legislativa realizava sessões com discursos e moções. Era a comédia trágica dos parlamentos amputados.

Tempos piores ainda viriam, de mais violência. Mas naquele 22 de maio de 1964, as meninas do Coral do João Neves ainda podiam sorrir para a câmera, alheias ao que se passava ao seu redor. Como a maioria das pessoas, estavam algo distantes do que sucedia em sua cidade, em seu Estado, em seu país.

Olhadas agora, são belas em seus uniformes, em seus sorrisos, em seu amor pela vida. Conheci várias delas, tão bonitas, em festas, bailes, reuniões dançantes. Acompanhei de perto muitas de suas alegrias, vários de seus romances. De algumas me perdi, de outras sou amigo até hoje.

Mas o que mais me toca é vê-las nesta foto, como se séculos não houvessem transcorrido. Estão aqui no zênite de sua lindeza, os corações cheios de esperança.

O país ia mal ou andava confuso? Não era culpa delas. Elas tratavam de sobreviver. Pois sobreviver para contar também é uma forma de luta.

sábado, 23 de janeiro de 2010



24 de janeiro de 2010 | N° 16225
MARTHA MEDEIROS


Seu apartamento é feliz?

Dia desses fui acompanhar uma amiga que estava procurando um apartamento para comprar. Ela selecionou cinco imóveis para visitar, todos ainda ocupados por seus donos, e pediu que eu fosse com ela dar uma olhada.

Minha amiga, claro, estava interessada em avaliar o tamanho das peças, o estado de conservação do prédio, a orientação solar, a vizinhança. Já eu, que estava ali de graça, fiquei observando o jeito que as pessoas moram.

Li em algum lugar que há uma regra de decoração que merece ser obedecida: para onde quer que se olhe, deve haver algo que nos faça feliz. O referido é verdade e dou fé.

Não existe um único objeto na minha casa que não me faça feliz, pelas mais variadas razões: ou porque esse objeto me lembra de uma viagem, ou porque foi um presente de uma pessoa bacana, ou porque está comigo desde muitos endereços atrás, ou porque me faz reviver o momento em que o comprei, ou simplesmente porque é algo divertido e descompromissado, sem qualquer função prática a não ser agradar aos olhos.

Essa regra não tem nada a ver com elitismo. Pessoas riquíssimas podem viver em palácios totalmente impessoais, aristocráticos e maçantes com suas torneiras de ouro, quadros soturnos que valem fortunas e enfeites arrematados em leilões. São locais classudos, sem dúvida, e que devem fazer seus monarcas felizes, mas eu não conseguiria morar num lugar em que eu não me sentisse à vontade para colocar os pés em cima da mesinha de centro.

A beleza de uma sala, de um quarto ou de uma cozinha não está no valor gasto para decorá-los, e sim na intenção do proprietário em dar a esses ambientes uma cara que traduza o espírito de quem ali vive. E é isso que me espantou nas várias visitas que fizemos: a total falta de espírito festivo daqueles moradores.

Gente que se conforma em ter um sofá, duas poltronas, uma tevê e um arranjo medonho em cima da mesa, e não se fala mais nisso. Onde é que estão os objetos que os fazem felizes? Sei que a felicidade não exige isso, mas pra que ser tão franciscano?

Um estímulo visual torna o ambiente mais vivo e aconchegante, e isso pode existir em cabanas no meio do mato e em casinhas de pescadores que, aliás, transpiram mais felicidade do que muito apê cinco estrelas. Mas grande parte das pessoas não está interessada em se informar e em investir na beleza das coisas simples.

E quando tentam, erram feio, reproduzindo em suas casas aquele estilo showroom de megaloja que só vende móveis laqueados e forrados com produtos sintéticos, tudo metido a chique, o suprassumo da falta de gosto. Onde o toque da natureza? Madeira, plantas, flores, tecidos crus e, principalmente, onde o bom humor? Como ser feliz numa casa que se leva a sério?

Não me recrimine, estou apenas passando adiante o que li: pra onde quer que se olhe, é preciso alguma coisa que nos deixe feliz. Se você está na sua casa agora, consegue ter seu prazer despertado pelo que lhe cerca? Ou sua casa é um cativeiro com o conforto necessário e fim?

Minha amiga ainda não encontrou seu novo lar, mas segue procurando, só que agora está visitando, de preferência, imóveis já desabitados, vazios, onde ela possa avaliar não só o tamanho das peças, a orientação solar, o estado geral de conservação, mas também o potencial de alegria que os ex-moradores não souberam explorar.

Um lindo domingo pra vc


Beyoncé, a poderosa

Provocativa, mas nunca vulgar, a cantora americana – que se apresenta no Brasil em fevereiro – conquista os adolescentes sem ofender os pais. Ela é hoje o maior nome da música pop mundial

Sérgio Martins
Mr Photo/Corbis Outine/Latinstock


AS MEDIDAS DA ESTRELA
Altura: 1,70 m
Peso: 59 quilos Busto: 89 cm
Cintura: 64 cm Quadris: 102 cm
Discos vendidos no mundo: 25 milhões
Rendimentos anuais: 87 milhões de dólares
A MULHER DO SÉCULO

Beyoncé Knowles: hino feminista sobre um tabu do feminismo – a aliança de casamento

A revista Billboard, especializada em música pop, elegeu Beyoncé Knowles, de 28 anos, a mulher de 2009. Com mais de 25 milhões de discos vendidos em seis anos como artista-solo – aos quais se somam os 50 milhões de cópias do Destiny’s Child, grupo em que começou a carreira –, a americana é de fato um colosso do showbiz.

Na lista das 100 celebridades mais poderosas do mundo (seja lá o que isso for), publicada no ano passado pela revista Forbes, ela aparece em quarto lugar, atrás da atriz Angelina Jolie, da apresentadora Oprah Winfrey – e de outra cantora, Madonna, que, aos 51 anos, ainda bate na conta bancária a concorrente bem mais jovem.

De acordo com a revista, Beyoncé tem ganhos anuais de 87 milhões de dólares, contra 110 milhões de Madonna. Na música pop, porém, o momento conta mais do que a história – e este é o momento de Beyoncé. Seu último disco, I Am...

Sasha Fierce, vendeu 2,7 milhões de cópias nos Estados Unidos, enquanto Hard Candy, o mais recente de Madonna, ficou em 1 milhão. Beyoncé – que desembarca no Brasil no início de fevereiro para shows em Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador – é a voz mais ouvida nos iPods da moçada (e também está no aparelho do presidente Barack Obama, segundo declarou o próprio).

Sua balada Halo foi a música mais executada nas rádios brasileiras em 2009. Ela embolsa 20 milhões de dólares anuais emprestando o rosto e todo o resto a marcas como L’Oreal e Diamonds, perfume da grife Giorgio Armani. Mais do que a cantora do ano, Beyoncé é, até agora, a mulher do século no mundo pop.

Os shows do I Am... Tour, que os fãs brasileiros poderão ver em breve, trazem aquele gigantismo característico das grandes estrelas da música americana: duas horas e meia de duração, com muita coreografia, telões e efeitos especiais – em certo momento, a cantora voa sobre a plateia, suspensa por cabos. O repertório alterna baladas chorosas como Halo com canções dançantes que misturam as batidas do hip-hop à soul music das décadas de 60 e 70.

Beyoncé equilibra esses elementos com mais energia e carisma do que concorrentes como Rihanna ou Alicia Keys. Seus singles são o padrão-ouro do pop: fazem download instantâneo na cabeça de quem os ouve.

Mesmo quando tratam de ciúme e desilusão amorosa, as canções de Beyoncé dão voz a personagens femininas poderosas, como a tal Sasha Fierce (o sobrenome, em inglês, quer dizer feroz, bravia) que dá título a seu mais recente disco. Mas ela divide as feministas.

As mais radicais consideraram seu hit Single Ladies um retrocesso para a causa. Trata-se, afinal de contas, de uma mulher declarando que deseja uma aliança de casamento. Beyoncé, a propósito, é casada com o rapper Jay-Z. O maridão tem seu passado barra-pesada (já esfaqueou um desafeto), mas parece ter se aprumado.

Ao contrário de divas barraqueiras como Britney Spears e Mariah Carey, Beyoncé é boa moça até prova em contrário. Mantém uma fundação, a Survivor, que presta assistência a pobres e a vítimas de catástrofes como a destruição de Nova Orleans pelo furacão Katrina, em 2005. Seu cachê no filme Cadillac Records, no qual interpretou a cantora Etta James, foi revertido para associações que cuidam de viciados em drogas.

Na eleição presidencial de 2008, esteve engajada na campanha de Obama – até cancelou shows na Europa para fazer corpo a corpo (no caso, corpão a corpo) com eleitores na Virgínia e na Flórida. Valeu a pena: Obama convidou-a para fazer o show de seu baile inaugural na Presidência.

O histórico de correção política da cantora foi arranhado no réveillon, quando fez um show particular, em uma ilha do Caribe, para Mutasim-Billah, filho do ditador líbio Muamar Kadafi. E o cachê até que foi baixo: 2 milhões de dólares.

Provocativa, mas nunca vulgar, a música de Beyoncé alcança o público adolescente sem ofender os pais. Com seu ritmo fácil e repetitivo, Single Ladies até virou hit entre os bebês.

O vídeo de um menino de fralda dançando em frente a uma TV que exibe o clipe da canção já foi visto mais de 7 milhões de vezes no YouTube. O pai do garoto até criou um site, a fim de arrecadar dinheiro para a futura educação universitária do pequeno dançarino.

Esse apelo infantil, porém, é acidental: Beyoncé, com suas formas exuberantes (há especulações sobre implantes nos seios), é a estrela mais sexy da música atual.

Com tendência a engordar, ela às vezes recorre a esquisitas dietas líquidas para vencer a balança. Também tem uma discretíssima celulite. Homens de verdade não fazem a mínima ideia do que seja celulite. Mas sabem que Beyoncé tem poder.

SUCESSO DE BERÇO
Beyoncé e suas dançarinas:
campanha para Obama e show para o filho do ditador líbio


Claudio de Moura Castro

Na Idade das Trevas

"A infindável batalha entre os formuladores de políticas de desenvolvimento tecnológico e a nossa impenetrável máquina burocrática"

Cruzando um corredor da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos, empresa pública vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia), o impetuoso diretor é alvejado por uma pergunta à queima-roupa, formulada com ironia: "Há quanto tempo você trabalha aqui?". Isso porque ele tinha proposto que os pedidos de empréstimo fossem processados em um prazo máximo de um mês.

Ousou arrostar a pachorrenta burocracia. Era mais um capítulo de uma infindável batalha entre os formuladores de políticas de desenvolvimento tecnológico e a nossa impenetrável máquina burocrática.

As políticas para criar tecnologia brasileira sugerem a existência de vida inteligente nas agências de fomento. Em contraste, as regras para implementar tais políticas permanecem na Idade das Trevas.
Ilustração Atomica Studio

Nossos formuladores revelam argúcia. Há ideias inteligentes e um mínimo de continuidade na sua implementação. Nota-se também um saudável aprendizado, ao entender os equívocos e procurar corrigi-los.

A Lei da Inovação criou engenhosas pontes entre universidades e empresas, tornando possível oferecer subsídios monetários aos empresários inovadores. Ademais, o governo agora pode virar parceiro, entrando com capital de risco. Houve um crescimento vertiginoso das publicações científicas.

Hoje o Brasil é o 13º maior produtor de ciência em periódicos respeitáveis. Se publicações no exterior podem ser vistas como exportação de conhecimento, exportamos mais ciência (2% do total mundial de publicações) do que mercadorias (pouco mais de 1% do comércio internacional).

Somos um dos três únicos países a extrair do próprio subsolo e refinar urânio. A meteorologia está pronta para enfrentar os desafios do aquecimento global. Não há nenhuma empresa de petróleo no mundo com o mesmo domínio tecnológico da Petrobras.

É respeitada a nossa aeronáutica. Somos os primeiros em alguns setores do agronegócio (por exemplo, no etanol). Quase todos os grandes produtos de exportação têm ampla dose de tecnologia tupiniquim.

Ou seja, há vida inteligente no governo, pois algumas iniciativas privadas dependem de políticas públicas. Porém, as discussões de políticas tecnológicas são engolfadas pelos ruídos de gente que nada entende. Jorram palpites desencontrados.

Mais grave é o terrorismo dos sistemas de controle. São necessários, é certo. Contudo, Advocacia-Geral da União, Ministério Público, Receita Federal e tribunais de contas fazem coro para encontrar minudências técnicas que atrasam ou impedem o fluxo de pedidos de grande interesse para a nação.

Em vez de entenderem e apoiarem quem merece, esses órgãos garimpam tecnicalidades impeditivas e presumem a desonestidade dos postulantes. Segundo advogados empresariais, usar a Lei da Inovação tornou-se um risco para todo e qualquer projeto. Melhor não usar o que promete a lei, para não se arriscar aos humores de algum fiscal iracundo.

Atolam pesquisas de importância estratégica, derrotadas na maratona surrealista de importar reagentes ou equipamentos para os laboratórios das universidades públicas.

Não há correspondência entre fúria controladora e volume de recursos, pois tendem a ser quantias irrisórias. Foram abandonadas (exceto na Saúde) as políticas de compras públicas, responsáveis pelos sucessos passados da nossa indústria bélica e aeroespacial (por exemplo, a Embraer).

Os papéis engarrancham na burocracia, independentemente do talento do cientista ou da promessa do projeto. Licitações públicas escolhem propostas baratas mas frágeis, por medo das punições dos tribunais de contas (essa foi uma das razões da debacle do Enem).

As regras do serviço público são incompatíveis com a agilidade exigida pela ciência e tecnologia. Daí a abundância de mecanismos - como as fundações - para oferecer a velocidade imprescindível.

Mas, tão logo aparecem, os órgãos de controle fazem tudo para destruir esses atalhos administrativos. Na área ambiental, um parecer equivocado dá processo criminal. Ir para a cadeia por uma licença ambiental? Quem se arriscaria? Mas é o paraíso dos burocratas do "não" e dos crentes com visões simplórias.

A vida inteligente colide com órgãos de controle que permanecem na Idade das Trevas. Ou seja, temos boas políticas e as empresas estão aprendendo as artes da inovação (muito tarde, até).

Mas, na hora de implementá-las, os entraves e os riscos se multiplicam. Bons quadros públicos se acovardam, com razão. As empresas não têm tempo, recursos nem competência para vencer as forças malignas da inércia. É até surpreendente que tenhamos conseguido alguns sucessos.

Claudio de Moura Castro é economista


Estresse pode causar câncer, diz estudo

De acordo com pesquisadores americanos, condições estressantes podem emitir sinais que favorecem o desenvolvimento da doença
REDAÇÃO ÉPOCA

Estresse pode ativar mecanismos que favorecem o aparecimento do câncer

Um estudo feito por pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, publicado no site da revista Nature, afirma que o estresse pode emitir sinais que fazem com que células desenvolvam tumores.

O grupo liderado por Tian Xu, professor e vice-presidente do conselho de genética de Yale, descreve uma nova maneira pela qual o câncer age no organismo.

De acordo com o estudo, as mutações que causam o câncer podem atuar em conjunto para promover o desenvolvimento de tumores mesmo quando localizados em diferentes células em um mesmo tecido. A tese vai de encontro à defendida pela maioria dos cientistas, que defendem que uma célula precisa de mais de uma mutação para que os tumores se desenvolvam.

Para chegar a essa conclusão, o grupo trabalhou com Drosophila melanogaster (conhecidas popularmente como moscas da fruta) para analisar as atividades de dois genes conhecidos pelo envolvimento no desenvolvimento de tumores. O primeiro é o RAS, que aparece em 30% dos cânceres. O outro é o gene scribble (“rascunho”), que contribui para o desenvolvimento de tumores quando sofre mutação.

Segundo os resultados, uma célula com apenas a mutação RAS é capaz de se desenvolver em um tumor maligno se auxiliada por uma célula próxima que contenha um gene scribble defeituoso.

Os pesquisadores também observaram que condições estressantes, como uma ferida, por exemplo, podem disparar o desenvolvimento do câncer. O mecanismo por trás desse fenômeno, segundo os pesquisadores, é um processo de sinalização conhecido como JNK, que é ativado por condições de estresse.

“Diversas condições podem disparar esse processo de sinalização, seja o estresse físico ou emocional, infecções ou inflamações”, afirma Xu.

O estudo, segundo ele, deve apontar novas formas de prevenção e tratamento do câncer.


23 de janeiro de 2010 | N° 16224
NILSON SOUZA


O rúgbi e o perdão

Ganhei de presente, no último Natal, uma simpática bola de rúgbi com as cores da Austrália, o nosso conhecido verde e amarelo. Veio de Sydney, onde estuda um sobrinho que conhece bem o meu apreço por esportes.

Mas a bola oval que atravessou o oceano para chegar às minhas mãos também tem um significado irônico: o remetente sabe que um dia tentei jogar este jogo de correrias, trombadas, agarrões, quedas, atropelamentos e até cotoveladas, já que os participantes da brincadeira mal conheciam as regras.

Era, na verdade, um exercício de coragem, iniciativa, ousadia ou maluquice mesmo, que tivemos que realizar durante um encontro de executivos. Muitos de nós saímos estropiados daquelas pirâmides humanas que se formavam na disputa da bola.

Teve reclamação, discussão, safanões, mas, no final, todos os participantes da disputa, vencidos e vencedores, feridos e milagrosamente ilesos, sentamos em círculo e nos divertimos numa conversa amigável. Estávamos, confesso, orgulhosos de termos participado daquele verdadeiro entrevero - se me permitem a licença nada poética os praticantes do esporte.

Pois o rúgbi será o esporte deste ano da Copa do Mundo de futebol da África do Sul. Estreia na semana que vem o filme Invictus, no qual Morgan Freeman interpreta Nelson Mandela na sua empreitada para apaziguar um povo dividido e ressentido pelo apartheid, o sistema de segregação racial que vigorou no seu país.

Mandela utilizou a seleção de rúgbi, vencedora do mundial de 1995, como símbolo da união nacional. Naquela época, o time era formado apenas por brancos e representava a classe dominante e excludente. Mas o esporte faz mágicas e o filme certamente vai mostrar como tudo se ajeitou quando a bola rolou – ou, no caso, voou.

Morgan Freeman fala do filme e de sua carreira nas páginas amarelas da última Veja. Lá pelas tantas, o entrevistador pergunta o que ele acha da ideia de perdão, que foi essencial no governo Mandela para a superação do ódio acumulado.

O ator responde que mais difícil do que perdoar é esquecer. E sentencia: “O perdão significa riscar uma linha separando o presente e o futuro das faltas passadas e determinar que não se voltará para trás dessa linha. Que aqueles erros não serão repetidos”.

Mais ou menos como no rúgbi. No final, os oponentes se abraçam, pedem desculpas, perdoam-se. Mas não esquecem.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010



20 de janeiro de 2010 | N° 16221
MARTHA MEDEIROS


A nova minoria

É um grupo formado por poucos integrantes. Acredito que hoje estejam até em menor número do que a comunidade indígena, que se tornou minoria por força da dizimação de suas tribos. A minoria a que me refiro também está sendo exterminada do planeta, e pouca gente tem se dado conta. Me refiro aos sensatos.

A comunidade dos sensatos nunca se organizou formalmente. Seus antepassados acasalaram-se com insensatos, e geraram filhos e netos e bisnetos mistos, o que poderia ser considerada uma bem-vinda diversidade cultural, mas não resultou em grande coisa. Os seres mistos seguiram procriando com outros insensatos, até que a insensatez passou a ser o gene dominante da raça. Restaram poucos sensatos puros.

Reconhecê-los não é difícil. Eles costumam ser objetivos em suas conversas, dizendo claramente o que pensam e baseando seus argumentos no raro e desprestigiado bom senso. Analisam as situações por mais de um ângulo antes de se posicionarem. Tomam decisões justas, mesmo que para isso tenham que ferir suscetibilidades. Não se comovem com os exageros e delírios de seus pares, preferindo manter-se do lado da razão. Serão pessoas frias? É o que dizem deles, mas ninguém imagina como sofrem intimamente por não serem compreendidos.

O sensato age de forma óbvia. Ele conhece o caminho mais curto para fazer as coisas acontecerem, mas as coisas só acontecem quando há um empenho conjunto. Sozinho ele não pode fazer nada contra a avassaladora reação dos que, diferentemente dele, dedicam suas vidas a complicar tudo. Para a maioria, a simplicidade é sempre suspeita, vá entender.

O sensato obedece a regras ancestrais, como, por exemplo, dar valor ao que é emocional e desprezar o que é mesquinho. Ele não ocupa o tempo dos outros com fofocas maldosas e de origem incerta. Ele não concorda com muita coisa que lê e ouve por aí, mas nem por isso exercita o espírito de porco agredindo pessoas que não conhece. Se é impelido a se manifestar, defende sua posição com ideias, sem precisar usar o recurso da violência.

O sensato não considera careta cumprir as leis, é a parte facilitadora do cotidiano. A loucura dele é mais sofisticada, envolve rompimento com algumas convenções, sim, mas convenções particulares, que não afetam a vida pública. O sensato está longe de ser um certinho. Ele tem personalidade, e se as coisas funcionam pra ele, é porque ele tem foco e não se desperdiça, utiliza seu potencial em busca de eficácia, em vez de gastar sua energia com teatralizações que dão em nada.

O sensato privilegia tudo o que possui conteúdo, pois está de acordo com a máxima que diz que mais grave do que ter uma vida curta é ter uma vida pequena. Sendo assim, ele faz valer o seu tempo. Reconhece que o Big Brother é um passatempo curioso, por exemplo, mas não tem estômago para aquela sequência de conversas inaproveitáveis. É o vazio da banalidade passando de geração para geração.

Ouvi de um sensato, dia desses: “Perdi minha turma. Eu convivia com pessoas criativas, que falavam a minha língua, que prezavam a liberdade, pessoas antenadas que não perdiam tempo com mediocridades. A gente se dispersou”. Ele parecia um índio.

Mesmo com poucas chances de sobrevivência, que se morra em combate. Sensatos, resistam.

Uma linda quarta-feira pra você. Que haja muito sol lá fora e aí dentro desse coraçãozinho também

terça-feira, 19 de janeiro de 2010



19 de janeiro de 2010 | N° 16220
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um amor impossível

Devo ser uma das 14 pessoas de Porto Alegre que têm os 14 tomos das obras mais ou menos completas de Joaquim Nabuco. Ainda assim me peguei o outro dia lançando um olhar comprido para a centimetragem ocupada pela coleção, calculando quantos outros volumes poderiam preencher o espaço reservado aos livros se eu me animasse enfim a perpetrar a dieta a que ando pretendendo submeter minha biblioteca.

Citei Nabuco porque está na moda. Faz cem anos de sua morte e só a Veja da outra semana lhe dedicou 12 páginas. Mas tenho examinado ainda o território tomado pela Bíblia, pelo Tesouro da Juventude, pela Enciclopédia Larrousse e sua vizinha, a Barsa, imaginando os domínios que poderia desbravar pela simples eliminação de suas alentadas lombadas.

Pois esse é todo o meu problema. Minha biblioteca atingiu o ponto extremo de saturação e eu me encontro inteiramente desprovido de lugares para abrigar os livros, comprados ou presenteados, que não cessam de imigrar para as minhas prateleiras.

A maioria são os doados, por autores ou editoras, que cultivam uma ideia extremamente otimista de minha capacidade de leitura. O resultado é que vou acumulando, nos beirais das estantes, pilhas de obras que não tardarão a ameaçar as alturas da Burj Khalifa, a torre de 169 andares erguida pelos petrodólares de Dubai.

Está bem, exagero.

Mesmo assim, as colunas se agigantam e não dão sinal de que vão estacionar.

Ocorre que, desde que me tenho por gente, morei em casas guarnecidas por dezenas de prateleiras. Às vezes as casas encolhiam, mas não as bibliotecas.

De muito longe em longe, eram indispensáveis providências drásticas. Como, por exemplo, presentear escolas ou chamar o caminhão do Mensageiro da Caridade.

Mas essas eram medidas extremas. O normal era explorar novos espaços para os volumes órfãos de abrigo. É nesse transe que estou novamente.

Não vou me desfazer da Larrousse, nem dos 14 tomos de Joaquim Nabuco, esse grande cruzado da Abolição. Não vou, tanto quanto possível, me desfazer de livro algum.

Mas já que falei em Nabuco, não custa nada revisitá-lo. Nem que seja apenas para reviver a senhora e dama de seu amor impossível.

Uma linda terça-feira para todos nós. Ah e parabéns pelo meu aniversário.

sábado, 16 de janeiro de 2010



17 de janeiro de 2010 | N° 16218AlertaVoltar para a edição de hoje
MARTHA MEDEIROS

Infeliz celular novo

Não compreendo muito bem essa ânsia que certas pessoas têm de trocar seu celular por outro mais moderno, jogando o antigo no lixo a cada seis meses.

Mentira: compreendo, sim. São pessoas normais, que lidam com tecnologia desde que largaram as fraldas, não são da época da pedra lascada, como eu.

Só uso celular para receber e fazer ligações, e para receber e enviar torpedos (o que aprendi muito recentemente, diga-se, e até hoje me atrapalho). Não pense que estou me gabando, agora que me declarei publicamente uma hippie que perdeu o rumo da história. Sei que estou reduzindo minhas possibilidades de ser feliz.

Eu poderia tirar fotos com o celular, receber e-mails pelo celular, ouvir música pelo celular, desfrutar de passatempos variados pelo celular, mas eu embestei que não preciso de nada disso, a não ser usar o aparelho para telefonar.

O que, justiça seja feita, me coloca num patamar de subdesenvolvimento, acima daqueles que nem para telefonar querem um. Conheço um cara que nunca teve um celular, que se nega, bate o pé, rejeita a ideia, e acho que ele deveria reconsiderar, pode precisar dar um telefonema no meio da estrada com o carro quebrado, vá saber. Tento convencê-lo e não tem jeito, chega a ser irritante em sua teimosia. Mais uma prova de que o fruto nunca cai longe do pé, já que o cidadão é meu pai.

Eu não chego a tanto. O celular facilita a minha vida. Não me tem como refém: eu sou a dona dele, não ele de mim. Poucas pessoas possuem o meu número, ele quase não toca. E eu só o utilizo para recados rápidos, assuntos domésticos, pendências profissionais, nenhuma conversa bombástica que mereça ser gravada.

Eu até o esqueço em casa de vez em quando. Então para que eu precisaria de um modelo novo? Poderia ter ficado com meu antigo até o fim dos dias, mas dia desses ele respirou com dificuldade, engasgou uma, duas vezes, e morreu. Como tenho pontos acumulados até para comprar a operadora, acabei recebendo um modelo de última geração. E desde então não durmo mais.

A moça que me atendeu disse que eu me acostumaria em questão de horas. Nenhuma dúvida. Vou me acostumar daqui a umas 678.423 horas. Eu implico com a configuração atual do aparelho. Eu estranho os novos ícones. Eu não sei onde ele liga. Nem onde desliga. Eu precisarei digitar nome por nome, e número por número, para formatar minha nova agenda.

Eu não tenho mais o meu ringtone clássico, agora o barulho que ele faz ao tocar é diferente, e eu que sempre respeitei as diferenças, virei nazista, xenófoba, misógina, homofóbica e biruta. E ainda nem falei o que me enerva mais: não ter teclas.

Agora é tudo na base do toque. Just touch. Repouse o dedo suavemente nos aplicativos, deslize o indicador na tela, assim, com delicadeza, isso... Não precisa apertar, não precisa apertar!

Até a publicação dessa crônica, estarei familiarizada com ele, claro. O exagero é o último recurso dos cronistas sem assunto no verão.

Mas que já estou com saudades do que deixei pra trás em 2009, estou.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010



13 de janeiro de 2010 | N° 16214
MARTHA MEDEIROS


A lei de cada um

Wesley Ramos é um menino de 11 anos que mora nos arredores de Sorocaba, SP, e que foi homenageado semana passada pela prefeitura da sua cidade por ter devolvido uma bolsa à dona e tudo o que nela havia, documentos e dinheiro inclusive. Foram concedidas honrarias públicas para o menino honesto.

A cada vez que isso é destacado no jornal, me sinto uma extraterrestre. Viver num país onde os atos que deveriam ser corriqueiros viram manchete é um sintoma da nossa deterioração moral. No jornalismo, existe uma máxima que diz que notícia não é um cachorro morder uma pessoa, e sim uma pessoa morder um cachorro. Wesley, que devolveu o que não era seu, mordeu um cachorro.

O comum tornou-se incomum porque nos habituamos a tomar atitudes desconectadas da ordem social. Na hora de bravatear, somos todos imaculados, os reis do gogó, que salivam de prazer ao apontar as falhas dos outros, mas, na hora de seguir a lei dos homens, refutamos a coletividade e tratamos de seguir nossa própria lei. E a lei de cada um é a lei de ninguém.

A estrada, o lugar mais superpovoado do verão, oferece um demonstrativo desse “cada um por si” que leva a catástrofes. A faixa amarela contínua serve para os outros, não para o super-herói do volante que enxerga mais longe e melhor do que os engenheiros de trânsito. Quantas doses de álcool se pode beber antes de dirigir? Para a lei geral estabelecida, nenhuma. Para a lei de cada um, o limite é decisão pessoal.

Choramos pelos mortos que ficam soterrados nas encostas por causa da chuva, mas dai-nos um terreninho em cima do morro e com vista pro mar, Senhor, e daremos um jeito de conseguir um alvará irregular.

A corrupção é generalizada. Na hora de espinafrar os Arrudas que surgem na tevê, somos todos anjos, mas quando surge uma oportunidade de facilitar o nosso lado, de encurtar caminhos, mesmo agindo incorretamente, não existe lei, não existe ética, existe apenas uma oportunidade que não se pode desperdiçar, coisa pequena, que mal há?

Honestidade e ética dependem unicamente do ponto de vista do cidadão: quando ele enxerga o outro fazendo mal, condena. Quando é ele que age mal, o mal deixa de existir, é apenas uma contingência. Essa miopia se corrige como?

Ninguém está imune a erros, mas seria um alívio se nossos erros se mantivessem na esfera particular. Quando agimos como cidadãos responsáveis pelo bem público, o erro de caso pensado deveria ser um crime. Aliás, é crime.

Mas somos hipócritas demais e há muito que invertemos os princípios básicos da cidadania. Wesley foi homenageado por não ser mais um a inventar a sua própria lei, e sim por ainda acreditar na lei de todos.

Uma gostosa quarta-fera especialmente pra você.

sábado, 9 de janeiro de 2010



09 de janeiro de 2010 | N° 16210
NILSON SOUZA


Pandora

Quando a menina dos meus olhos fez a clássica pergunta dos finais dos filmes que assistimos juntos, eu estava tão atordoado que apenas sinalizei com as duas mãos espalmadas e um dos dedos encolhidos. Nem sei por que dei nota 9 em vez de 10 para Avatar, uma experiência de cinema absolutamente diferenciada de tudo o que eu já havia visto.

Talvez porque ainda estivesse me refazendo do susto e do constrangimento de ter me esquivado quando um artefato qualquer voou na minha direção, em meio a uma das batalhas em terceira dimensão entre terráqueos e habitantes da lua Pandora, cenário da fantástica aventura. Fiz como o Bush diante dos sapatos arremessados pelo jornalista iraquiano.

No mundo de efeitos especiais criados pelo diretor James Cameron, tudo é possível e verossímil, desde as poderosas máquinas de extermínio dos invasores até a fauna e a flora mágicas dos nativos. Nós, humanos, somos os invasores.

Estamos naquele lugar para roubar um minério valioso enterrado sob o paraíso onde vivem em absoluta sintonia com a natureza criaturas azuis de três metros de altura, cauda e narigão achatado.

Eles, os azuizões, são os índios do filme, as vítimas da ganância e da insensibilidade dos chamados civilizados. Qualquer semelhança com a conquista das Américas pelos europeus ou com as campanhas militares modernas nos países petrolíferos não é mera coincidência.

As mensagens simbólicas do filme são variadas, mas acho que a principal delas é de natureza ecológica. Tudo é deslumbrante em Pandora, as árvores gigantescas, as flores exóticas, as montanhas flutuantes e, especialmente, os animais selvagens, um mais estranho do que o outro.

O que mais impressiona é a relação dos nativos com o bicho que eles chamam de ikran, um lagartão voador, furioso e predador, que se torna dócil e obediente quando encontra o seu dono.

Ele representa o rito de passagem na vida de um guerreiro, que passa a ser respeitado pela tribo depois que consegue estabelecer uma conexão cerebral com a fera alada, para então montá-la e utilizá-la como transporte.

O povo azul utiliza suas tranças para se ligar, literalmente, à natureza.

Pandora arrasada pela brutalidade humana, como na fábula da mitologia, é uma visão tridimensional do mal, inclusive com um final reservado para a esperança – e para os próximos filmes da saga. Pelo menos na ficção, a sapatada da sensatez atinge os invasores. Nove com louvor.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010



06 de janeiro de 2010 | N° 16207
MARTHA MEDEIROS


A dificuldade de ser hippie

Na véspera do último dia 31, publiquei uma “Carta a 2010” na qual, entre outros desejos, pedi para termos um ano mais paz & amor. Pra não ficar só na teoria, passei o Réveillon numa praia uruguaia que ainda não frequenta a mídia, pra felicidade geral dos nativos.

Fui a Punta del Diablo, a apenas 40 quilômetros de Chuy, um local sem a infra e a badalação de Punta del Este e que ainda preserva uma rusticidade que nos remete aos anos 60/70. Fazia tempo que eu não via nada tão “pode crer”, um astral tão mochileiro, nem garotada tão bonita e despojada. Foi a legítima volta no tempo.

Imaginei Búzios sendo descoberta por Brigitte Bardot e Garopaba descoberta pelos surfistas, numa época em que ninguém estava interessado em modismos ou aparências, apenas em se divertir sem repressão.

Eu sei que o mundo mudou e Punta del Diablo está mudando também: aposto as minhas fichas em que dentro de três ou quatro anos o boom imobiliário irá transfigurar esse astral ainda genuíno da praia (e esta crônica pode estar colaborando pra isso), mas a verdade é que fazia muitos anos que eu não me sentia tão à vontade e tão bem instalada numa era que passou, mas que ainda reconheço como minha, mesmo nunca tendo sido. Há em mim uma hippie que não fui por ter nascido alguns anos atrasada.

Foram quatro dias de sol rachando, mar azul e dolce far niente, sem notícia alguma do Brasil. Ao final do breve descanso, percorri os 500 quilômetros de volta a Porto Alegre e fiquei sabendo, estarrecida, que o litoral do Rio de Janeiro esteve inundado, soterrado, incapacitado de qualquer festejo nesse final de ano, e, diante da tragédia vivenciada por tanta gente, senti um tremendo desconforto, tive que cair na real:

o mundo hippie exige uma alienação quase impossível de ser adotada hoje em dia. Quem não quiser sofrer, que vá pra Punta del Diablo em definitivo, não volte mais. Aqui, a vida exige participação.

Foi só a primeira má notícia de 2010. Ano novo não é sinônimo de ano incólume, ano utópico, ano intacto. Serão mais de 360 dias comuns e falíveis. Mas dói quando caímos das nuvens assim tão na boca do ano, tão na estreia, como já aconteceu anteriormente, a exemplo de tragédias como o naufrágio do Bateau Mouche no Réveillon carioca de 1988 e o tsunami indonésio em 2004.

Que seja. Dói, mas ainda podemos tentar manter a serenidade diante do reverso das expectativas felizes que todo início de ano impõe. Tentemos, mesmo contra a maré, mesmo informados sobre o inferno lá fora, manter uma alma hippie, um espírito mais desapegado diante de tanta parafernália, de tanto supérfluo incutido como essencial.

Adoraria que desenvolvêssemos uma humanidade mais retrô, que a simplicidade virasse tendência de comportamento e nos ajudasse a promover um astral mais puro e leve nesta nova década que se inicia – aliás, que só se iniciará mesmo em 2011, a antecipação é uma ilusão, mas as ilusões fazem parte do pacote paz & amor de que precisamos urgentemente.

Uma linda quarta-feira ainda que com chuvas. Aproveite o dia.

sábado, 2 de janeiro de 2010



03 de janeiro de 2010 | N° 16204
MARTHA MEDEIROS


Amanhã fica pra amanhã

Amigos meteorologistas, segunda-feira poderemos vivenciar um dramático temporal ou um sol rachando, mas sinto muito, me desliguei de previsões, não estou interessada no que o céu despencará sobre mim amanhã quando eu acordar. Recém é hoje.

A cotação que o dólar terá quando o mercado reabrir continuará não fazendo a menor diferença pra mim, já que não trabalho com exportação nem importação. Nada me importa além desse minuto.

Já tomei banho e tudo o que minha pele e meus cabelos assimilarem durante minha passagem por esse dia ficará como marca registrada das ruas por onde andei e das intempéries que enfrentei, só no próximo banho é que eliminarei as partículas deste domingo.

Se você quiser me dizer alguma coisa, diga já, amanhã posso estar surda, com febre, ausente, desconectada, com TPM, de férias, e você terá desperdiçado a oportunidade de ser ouvido nesse instante.

As pesquisas de opinião são muito afoitas, ligeiras, ansiosas, que me interessa a eleição de outubro se nem o amanhã me é seguro, hoje eu tenho os representantes que tenho, até que eu me corrija no próximo voto.

Esse bombom em minhas mãos, quantas calorias terá, que estrago fará em minha região abdominal, que consequências deixará visíveis na beira da praia? Nhac. Veremos.

Não tenho caderneta de poupança nem me preocupo com fundos de investimento, e gastei três dígitos num vestido que me ofereceu cor, leveza e jovialidade para daqui a algumas horas, e daqui a algumas horas eu ainda terei a aparência que tenho, não garanto depois.

Comecei a ler um livro que tem frequentado a lista dos dez mais e nas primeiras dez páginas peguei no sono. Deixei o livro de lado: perder tempo é um insulto à vida. No mesmo instante comecei outra leitura e essa, sim, me devora.

No almoço de amanhã teremos à mesa o que eu me sentir impulsionada a comprar no supermercado amanhã, hoje eu me contento com o que há na geladeira e que alimenta o meu agora.

Olimpíadas de 2016, que viagem no tempo, mal sei se atravessarei os obstáculos anotados em minha agenda neste 3 de janeiro de 2010 e se quebrarei algum recorde de alegria ou tristeza antes que o telefone toque.

Hoje ainda estou dentro da lei, ainda tenho todos os amigos por perto, ainda me reconheço no espelho, ainda não enjoei da música que estou ouvindo, ainda estou em paz, ainda acredito que o dia terminará bem.

“Amanhã fica pra amanhã” é um aforismo que li no livro de Pedro Maciel chamado Como Deixei de ser Deus. Admitir que não temos controle sobre o futuro é um bom começo. Deus é uma projeção, e hoje, aqui em casa, as projeções estão em falta, amém.

Um lindo domingo para vc. O Primeiro de 2010


Sherlock Holmes e Watson sem retoques

Em Sherlock Holmes, o diretor Guy Ritchie submete o detetive a um choque iconoclástico. E quem sai ganhando, finalmente, é Watson

Isabela Boscov
Fotos Everett Colecction/ Grupo Keystone

MARTE E MERCÚRIO
Law, como Watson, e Downey Jr.,como Sherlock: um está sempre pronto para a guerra, o outro para imaginar – e intimidar



Sherlock Holmes, o infalível detetive particular da Inglaterra vitoriana, é uma dessas criações que ganham a posteridade meio que à revelia de seu criador: o escocês Arthur Conan Doyle, médico, aventureiro e veterano da Guerra dos Bôeres, em várias ocasiões manifestou a pessoas próximas seu descontentamento com a fama colossal conquistada pelo tipo.

Conan Doyle acreditava ser capaz de literatura de muito maior quilate, e a cada nova investida ficava à espera de que seu verdadeiro gênio (a modéstia não se contava entre as suas qualidades) fosse finalmente reconhecido.

O escritor, que morreu em 1930, aos 71 anos, esperou em vão. Romances como Micah Clarke e O Mundo Perdido, assim como sua ambiciosa história da I Guerra, são pouco mais do que notas de rodapé em sua biografia; as grandes estrelas dela são mesmo Sherlock e seu fidelíssimo companheiro Dr. Watson.

Em certos círculos, atribui-se a essas estrelas tal brilho que elas chegam a ofuscar Conan Doyle e relegá-lo ao papel de coadjuvante em sua própria trajetória: os admiradores mais atirados por vezes se esquecem de que Sherlock e Watson são personagens de ficção, e escrevem sobre eles ensaios, estudos e biografias como se a dupla fosse real.

O grupo dos sherlockianos fanáticos é menos conspícuo e barulhento do que os fãs de super-heróis que patrulham com zelo fundamentalista toda tentativa de adaptação de seus objetos de adoração. Mas não são menos devotos. Dar-lhes umas boas cutucadas, assim, é o primeiro mérito do trabalho do diretor Guy Ritchie em Sherlock Holmes (Estados Unidos/Inglaterra, 2009), que estreia na próxima sexta-feira no país.

Sherlock, na recriação de Ritchie, não saca de uma lupa a cada oportunidade, não usa boina de caçador nem sobretudo com capa, não diz "elementar, meu caro Watson" e, embora ainda fume cachimbo, prefere um modelo de haste reta à excêntrica haste curva celebrizada em adaptações como as estreladas por Basil Rathbone e Nigel Bruce nos anos 30 e 40. Essas alterações não são meros retoques cosméticos.

São reflexo do choque iconoclástico a que o diretor submete o personagem, e que traz para a superfície todas as suas características menos elogiáveis: o esnobismo, a presunção, a arrogância, o egoísmo, e a sem-cerimônia com que usa as pessoas – a começar por Watson, um médico respeitável e combatente condecorado da segunda guerra britânica no Afeganistão (1878-1880) que, nos livros, ele sempre tratou como um subalterno.

Ritchie, que até os 15 anos foi educado em internato, como convém aos meninos ingleses de classe alta, sabe bem quem Sherlock realmente é: no fundo, ele nunca deixou de ser um prefect, como é chamado o monitor escolhido entre os próprios alunos e que reina sobre eles como déspota. (A título de observação, os prefects amáveis e razoáveis de Harry Potter são tão plausíveis quanto a existência de um internato para jovens bruxos.)

Como não é o caso de alienar a plateia, contudo, esse tirano ególatra é, aqui, interpretado por Robert Downey Jr., um dos poucos atores capazes de conferir traços redentores à petulância e torná-la até adorável.

Com cabeleira revolta, energia incontida e entusiasmo infantil pela própria inteligência, esse Sherlock é um personagem ao qual se pode desculpar o jeito pernóstico. Vez ou outra, ele pode até ser colocado no seu devido lugar pelo Dr. Watson vivido com surpreendente vigor por Jude Law.

Nos últimos anos, Law vinha se tornando um ator vago, quase inapetente. Mas, no jogo de influências que se desenha entre Ritchie, Downey e ele, Law sobressai como a força capaz de corrigir as distorções do jogo original, o desempenhado por Conan Doyle, Sherlock e Watson.

O detetive tem a imaginação, mas seu parceiro é quem tem o senso prático que possibilita aos lampejos de Sherlock exercer impacto sobre o mundo. Na concepção de Conan Doyle, Sherlock era Deus e Watson, seu rebanho, como observou o jurista americano Richard Posner em um ensaio contrário à idolatria sherlockiana. Na visão do filme, Sherlock pensa que é Deus, mas nada seria sem Watson, que, à maneira de Moisés, cuida de que sua palavra seja posta em prática.

ATRAÇÃO QUE REPELE

Rachel no papel da golpista Irene Adler: o detetive bem que gosta dela. Mas gosta ainda mais da companhia de Watson


Não que Sherlock Holmes seja, nem em sonho, um ensaio crítico. Toda essa informação e esse conhecimento do seu principal trio criativo estão a serviço do entretenimento em larga escala – a aposta de Ritchie para, tendo sobrevivido ao divórcio de Madonna (e, mais notável, ao casamento com ela) e recuperado sua centelha, estabelecer-se como um nome de sucesso comercial, não mais restrito a facções de cinéfilos. Ritchie sempre foi um diretor de ação extremamente inventivo.

É também, por afinidade ainda que não por origem, um cultuador de uma faceta meio mítica de Londres, a de uma cidade sob cujo verniz de civilização pulsa um submundo tão violento quanto vibrante.

Aplicando essas características à Inglaterra vitoriana e imperial, que criava na mesma medida poderio e degradação, ele faz a festa. Londres aparece sinistra e bela na sua sujeira. Sherlock agora é versado em artes marciais, não só porque os chutes, socos e pontapés são um jogo de xadrez que ele planeja lance por lance (e, o mais divertido, executa exatamente como planejou), mas porque o detetive tão frio e racional afinal contém uma legião de demônios sempre prestes a irromper, e precisa desse escape. Esses demônios, aliás, parecem ser de várias ordens.

No papel e nas versões anteriores, Sherlock em geral é um ser assexuado, a despeito de sua ligação com a golpista Irene Adler. Já o filme sugere uma relutância, até uma repugnância, um tanto reveladora na sua atração por Irene (em atuação radiante de Rachel McAdams) – mais ainda quando somada ao empenho com que ele tenta boicotar o noivado de Watson com a governanta Mary Morstan (Kelly Reilly).

Sherlock e Watson necessitam, claro, de um adversário pérfido – como Lorde Blackwood (o excelente Mark Strong), que se crê capaz de conjurar forças malignas que porão sob seu controle o Império Britânico.

Uma das teses mais alopradas dos sherlockianos contumazes é a de que o Professor Moriarty, o inimigo figadal do detetive, era na verdade o Conde Drácula (vá se entender de onde eles tiram essa ideia).

Moriarty, aqui, não chega a se revelar: é uma presença oculta que obviamente está sendo guardada para uma possível continuação. Ritchie então veste Lorde Blackwood, em sua aparição final, como o vampiro do Nosferatu de F.W. Murnau e, por garantia, completa o figurino com adereços que prenunciam Adolf Hitler.

É uma brincadeira, sem dúvida. Mas é também uma ironia com o absurdo que constitui a mitologização exagerada do personagem. Os idólatras podem até achar que finalmente encontraram um diretor que os compreende.

E como: compreende-os tão bem que lhes dá uma palmada fazendo com que eles pensem tratar-se de um agrado. Exatamente como Watson, agora, aprendeu a fazer para manobrar seu amigo tão inspirador – e tão enervante.
A DUPLA CLÁSSICA



Bruce, como Watson, e Rathbone, como Sherlock: uma relação desigual

Lya Luft

O ano de pensar

"A essência seria esta: neste ano, eu vou pensar. Em mim, na vida, nos outros, no mundo, em mil coisas ou numa coisa só – que seja realmente importante"

Mudança de ano, que, com o Natal, para uns é celebração (estou desse lado), para outros, melancolia.

O que nos atrapalha é que alguém inventou que temos de tomar decisões e fazer projetos para esse novo ano. São quase sempre irreais, quase sempre não cumpridos. Aí já nos frustramos neste mundo de tantas frustrações, em que a gente teria de ser bonito, saudável, competitivo e competente, bom de cama e ruim de mesa, e uma lista interminável de "ter de".

Pois eu acho que 2010 pode ser o Ano de Pensar. Bom projeto, boa intenção. Uma só, e já é bastante. Pensar: coisa que tão pouco fazemos, embora seja o que nos distingue das outras feras.

Publiquei recentemente mais um livro para crianças (mas os adultos se divertem), chamado Criança Pensa. Com ele respondi, décadas depois, ao duplo lema dos adultos de um outro tempo, de que criança não pensa, criança não tem querer. Hoje tem querer até demais, mas isso é assunto para outra crônica. E pensar, continua pensando, apesar de todos os jogos eletrônicos e programas de computador imagináveis.

Se criança pensa – e pensa lindamente, segundo descobrimos e escrevemos, um de meus filhos, professor de filosofia, e eu –, adultos teriam de pensar ainda muito mais. Porém a gente vai se enquadrando. Família, escola, sociedade e cultura, seja o que isso for, tornam-nos menos pensantes e menos questionadores. Alguns escapam dessa mordaça e desabrocham. Podem ser os menos confortáveis, mas são os que movem o mundo.

Pensar não é uma obrigação: é um direito, e deveria ser um prazer. Naquela horinha no ônibus ou no carro, andando, nadando, comendo, não fazendo nada – o que é um luxo, e nós, bobos, poucos saboreamos –, nada melhor do que deixar tudo de lado e refletir, ou deixar as ideias vagando numa atenção flutuante, como dizia Freud.

Largar mão, por alguns instantes, dos compromissos, do cansaço, da falta de tempo, da dificuldade em ser feliz, da pouca harmonia consigo e com o mundo, das tragédias, das decepções universais ou pessoais – e dar-se o prêmio de pensar. Para algumas pessoas, parar para pensar não é desmontar.

E ficariam dispensados os dez ou doze ou três propósitos, as intenções fajutas eternamente repetidas – como as de emagrecer, romper ou melhorar o relacionamento, sair de casa, voltar a estudar, vencer na vida, ter filhos, mudar de emprego ou de parceiro, deixar de beber, de fumar, de se drogar com outras substâncias. A essência seria esta: neste ano, eu vou pensar. Em mim, na vida, nos outros, no mundo, em mil coisas ou numa coisa só – que seja realmente importante.

Pensar para ser uma pessoa mais decente; pensar para amar mais e melhor, começando por mim mesmo; pensar para votar com mais lucidez; pensar no que de verdade eu quero, se é que eu quero alguma coisa – ou sou do tipo que se deixa levar por desânimo, preguiça ou desencanto?

Pensar simplesmente para criar meu mundo particular, não num ataque de loucura, mas de criatividade. Pois o real não existe, existe o que vemos dele. Dentro de certos limites, podemos, cada um de nós, inventar o nosso mundo: sendo mais céticos ou mais otimistas, com aquele grãozinho de loucura necessário para que haja beleza e claridade e não vivamos numa caverna de trevas.

Basta ver como pensam as crianças, ainda livres das nossas inibições. "Fadas e anjos existem, não é?", pergunta-me uma delas. Respondo honestamente: "Para quem acredita, existem".

Acredito que, apesar de Copenhague, o mundo não vai torrar (as opiniões dos cientistas divergem), que vamos ter motivo para nos orgulhar de nossos países, que não vai mais haver tanta miséria e cinismo, que os colégios vão ensinar melhor e exigir mais em lugar de facilitar tão absurdamente e despejar tanta gente despreparada no mundo.

Sei que todos algum dia acordamos com a senhora desilusão sentada na beira da cama. Mas a gente vai à luta e inventa um novo sonho, uma esperança, mesmo recauchutada: vale tudo menos chorar tempo demais. Pois sempre há coisas boas para pensar. Algumas se realizam. Criança sabe disso. Feliz 2010.

Lya Luft


Dinheiro? Para quê?

O irlandês Mark Boyle viveu um ano sem um tostão para convencer o mundo de que dinheiro é bobagem

RODRIGO TURRER - Matt Cardy - SOLITÁRIO

Mark Boyle na Inglaterra, nos primeiros passos para viver um ano sem dinheiro. “É possível o mundo viver assim”, diz

O irlandês Mark Boyle quer convencer o mundo de que o dinheiro é supérfluo. Há quase um ano traçou um plano mirabolante para erradicar o dinheiro dos bolsos de todos. Para dar o exemplo, se desfez de seus bens e foi morar em um trailer, nas cercanias de uma fazenda de alimentos orgânicos em Bristol, na Inglaterra.

Pegou meia dúzia de roupas e uma bicicleta. Dos bens manteve o celular, que só recebe chamadas, e o laptop, ambos alimentados por energia solar. Improvisou um fogão a lenha, em que cozinha o que planta, um chuveiro com painel solar e uma escova de dentes feita de conchas e sementes de erva-doce. Seu banheiro é um buraco no chão; o papel higiênico, jornais velhos ou plantas anatomicamente adequadas.

Boyle afirma ter encontrado o sentido de sua vida na faculdade de economia, por volta de 2001, graças ao filme biografia Gandhi, sobre o líder pacifista indiano. “O chapa da tanga me ensinou uma lição gigante: seja a mudança que você quer ver no mundo.” Ainda recém-formado, Boyle não tinha ideia de qual mudança desejava ser. Resolveu ganhar dinheiro – de modo ecologicamente ético, claro.

Abriu uma empresa de comércio de alimentos orgânicos. Apesar do relativo sucesso, continuava insatisfeito. “Eu me dei conta de que nem mesmo negócios sustentáveis conseguem mudar as coisas.” O que seria suficiente? “Em vez de diagnosticar as doenças do mundo e protestar contra elas, pensei em me tornar um homeopata social, com tratamentos longos”, diz Boyle.

Sua primeira medida foi trocar o nome de batismo Mark Boyle por Saoirse – pronuncia-se “Sir-chu”, palavra em gaélico para “liberdade”. Em seguida criou uma comunidade virtual para “troca de conhecimentos solidários”, o Freeconomy (justfortheloveofit.org). Lá as pessoas podem se filiar, declarar suas habilidades – de cortes de cabelo a reparos na casa – e doá-las a quem precisar.

A ideia ainda não entusiasmou muita gente. Em quase dois anos, 14.382 pessoas de 118 países se inscreveram no Freeconomy, menos de 123 engajados por país.
“A raiz da insegurança e do medo do mundo é o dinheiro. O que aconteceria se me livrasse dele?”

Para divulgar sua iniciativa, Boyle – ou Saoirse – conta que começou uma peregrinação até a terra de seu mentor, Gandhi. A pé. Mil dias de caminhada a partir da Inglaterra, passando por França, Itália, Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bulgária, Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão e Índia.

O projeto começou em março de 2008 e foi abortado em abril, por problemas linguísticos, segundo ele. “Os franceses me disseram que não ajudariam ninguém que não falasse francês...”, afirma Boyle, que só fala inglês e arranha espanhol.

No caminho de volta, Boyle teve seu derradeiro lampejo: “A raiz de toda a insegurança e medo do mundo é o dinheiro. O que aconteceria se me livrasse dele?”. Em dezembro do ano passado, ele pôs em prática o plano de erradicar o dinheiro da humanidade.

“Nos próximos 20 anos, as pessoas terão de repensar a forma como vivem, consomem e desperdiçam”, afirma Boyle. “Meu plano é mostrar que é compensador e podemos construir uma comunidade sem dinheiro.”


O novo sempre vem

O Mario Quintana poetou para sempre que o tempo é só um ponto de vista dos relógios, mas, vamos combinar, fim de ano é sempre boa hora para pensar em coisas velhas, novas, velhas novidades, novidades antigas, tempo, criação, renascer e tal.

A gente tenta fazer uma limpa em dezembro, rasga a folhinha do calendário e, como em algumas cidades italianas, tenta jogar pela janela imaginária ou não o que não se quer mais do ano que passou. Tenta, né. Memória é onde as coisas acontecem muitas vezes, passado é o que aconteceu e história é o que queremos lembrar. Lembro da recente polêmica sobre arte, Bienal, dinheiro público e tal. Cada um puxando a brasa para seu assado e o público, como sempre, curtindo a troca de farpas.

Coisa antiga, mas normal, democrática, vá lá. Arte, amor, tempo, criação, amizade, sentido da vida, todo mundo está milenário de saber que são temas de difíceis e ilimitadas definições, no tempo, no espaço e nas cabeças. Quem pode dizer o que é arte hoje? O que é amor, amizade, literatura da boa e receita correta de carreteiro de marisco? No nosso mundinho globalizado, pós-moderno, fragmentado, sei lá, cada um inventa toda hora mil maneiras, formas, conteúdos.

É muita pretensão oferecer “definições definitivas” do que quer que seja. O ano novo é momento para, mais uma vez, pensar que os julgamentos mais importantes são os do tempo e os da maior parte das pessoas, ressalvados, claro, os sagrados direitos das minorias que, de vez em quando, vão se tornando maiorias no decurso da História.

As universidades, academias e os doutores têm lá seu valor, assim como as velhas e novas vanguardas, mas, ao fim e ao cabo, Dom Quixote ficou para sempre por que todo mundo é meio Quixote e meio Sancho Pança, porque foi bem escrito e o tempo assim quis. Ao contrário do que disse o outro, a História não acabou e não acabaram nem vão acabar as indagações e mistérios humanos.

Tudo bem, a vida é curta e a arte é longa, mas sempre é bom pensar que o novo sempre vem, mesmo quando nem tão novo e mesmo quando algum grego já tinha pensado no assunto. Na virada de 2010 o lance é imaginar e desejar que um desses bebês que está nascendo com sua pele e alma novas traga alguma criação boa para nós e o planeta.

Alguma bossa nova-nova, em homenagem à memória do Tom Jobim. Bom lembrar que depois da vida, a liberdade, de imprensa, criação, ir e vir etc, é o bem maior. O resto é discussão normal, humana, às vezes demasiadamente humana. Livre, criativo, polêmico e ótimo 2010 para todos nós!

Um ótimo fim de semana para vc. Aprovite este que é o primeiro de 2010