sábado, 30 de abril de 2011



01 de maio de 2011 | N° 16687
MARTHA MEDEIROS


Para Francisco e todos nós

Nunca havia pensado nisso: vemos nossos pais através dos olhos de nossas mães – estando eles vivos ou não

A história é a seguinte. Ela era uma publicitária mineira de 36 anos que estava vivendo uma história de amor com todos os ingredientes que se sonha: reciprocidade, leveza, afinidades, planos e, pra completar, um filho na barriga. Engravidara de surpresa, e festejou. O homem com quem repartia esse conto de fadas também ficou emocionado com a notícia, e passaram a curtir cada passo rumo à nova etapa. Quando ela estava com sete meses de gravidez, ele morreu de uma hora para outra.

O horror da morte súbita de um amor e o êxtase de uma nova vida chegando: foi essa contradição emocional que, quatro anos atrás, viveu Cristiana Guerra, atualmente uma conhecida blogueira especializada em moda (www.hojevouassim.com.br). Cris transitou entre o céu e o inferno. Poderia ter se entregado à vitimização, mas fez melhor: transformou sofrimento em poesia.

Francisco nasceu dois meses depois, forte, saudável e órfão. Cris não se conformou com a ausência de um dos protagonistas da história, e foi então que começou a escrever cartas para que seu bebê lesse quando tivesse idade para tal. Nessas cartas, contou sobre quem era seu pai, como ela e ele se conheceram, e os problemas e alegrias pelos quais passaram durante o pouco tempo de convívio, algo em torno de dois anos de relacionamento. Esses textos, ilustrados com fotos do casal e complementados por alguns e-mails trocados, virou um livro, Para Francisco, da Editora Arx.

Cris me entregou esse livro em mãos dias atrás, quando a conheci em Belo Horizonte. É uma mulher charmosa, firme, bem-humorada. Participamos juntas de um evento e depois voltei ao hotel, onde dei as primeiras folheadas no livro. Na manhã seguinte, ele já havia sido devorado, e me senti agradecida pela oportunidade. Em tempos em que só se fala em amores fóbicos, ler o texto elegante e inteligente da Cris me fez ter uma nova perspectiva do que é tragédia. Tragédia é não lembrar com doçura.

A relação de Cris com o pai de seu filho não teve tempo para o desgaste e a falência. Tiveram alguns desencontros, mas nada que fraturasse a relação que era encantadora e sólida a seu modo. Não sei se duraria pra sempre, mas durou o suficiente pra montar a memória afetiva que estruturará a vida de um menino que conhecerá seu pai através da visão de sua mãe. Nunca havia pensado nisso: vemos nossos pais através dos olhos de nossas mães – estando eles vivos ou não.

A narrativa dessa vida-e-morte simultâneas é contada com desembaraço, emoção e nenhuma pieguice, mesmo tendo todos os elementos para virar um dramalhão. Mas Cris Guerra não deixou a peteca cair e, além de um belo livro, nos deixou um recado valioso: a vida não apenas continua, ela sempre recomeça.

sexta-feira, 29 de abril de 2011


Jaime Cimenti

Os míticos paraísos terrestres

A questão do paraíso aqui na terra ou no além e, especialmente o paraíso terrestre, tornou-se um mito e, ao mesmo tempo, sua história, sem dúvida, tornou-se um dos pilares da modernidade.

Como interpretar, por exemplo, as palavras do Gênesis, da Bíblia, sobre a criação do mundo? Stendhal, autor do clássico O vermelho e o negro, falando sobre a beleza, disse que o Paraíso não passa de promessa de felicidade e a nostalgia de uma origem perdida e que essa promessa e essa nostalgia designam uma falta, uma ausência, uma brecha na natureza humana.

No ensaio O Paraíso Terrestre, do historiador e conferencista escocês Milad Doueihi, essas e outras muitas questões são abordadas através de uma proposta inovadora. Milad reexamina o tema antigo como utopia permitindo compreender, de que forma, na Idade Moderna, essa utopia sustenta uma ética universal.

O autor narra os momentos-chaves no uso filosófico do conceito de Paraíso e, para tanto, segue os rastros das transformações da figura do Éden, de Santo Agostinho a Nietzsche, passando pelos escritos de Lutero, Bayle, Leibniz, Spinoza e Kant. Kant dizia ser o Paraíso o primeiro momento do uso da razão e do progresso na história do Homem.

Nietzsche descrevia o conceito de modo mais sombrio, como a personificação do conflito entre a humanidade e suas crenças. De fato, o Paraíso assombra o Ocidente bíblico. O Jardim do Éden representa, para muito além do imaginário religioso, uma estrutura de ordem e Milad não pretendeu, em sua obra, apenas escrever mais uma história do Paraíso e de suas representações.

Ele vai bem mais longe. Mostra como os debates modernos a respeito da natureza do mal, do livre-arbítrio e da origem da linguagem estão relacionados às interpretações filosóficas sobre o Paraíso. Doueihi mostra que um entendimento mais completo sobre o Paraíso pode responder questões fundamentais à sociedade, ao mesmo tempo em que pode abalar e revisar antigas crenças da humanidade. Como se vê, tema e obra são profundos.

Os leitores poderão escolher com mais consciência, conhecimento e liberdade suas crenças e descrenças sobre paraísos, Deus, Bíblia, fé e outras questões milenares relevantes. Difel, 240 páginas, mdireto@record.com.br.

quarta-feira, 27 de abril de 2011



27 de abril de 2011 | N° 16683
MARTHA MEDEIROS


Outros estrangeirismos

Gosto muito do que voçê escreve. Se não for encômodo, poderia ler o meu blog?

Estou anciosa para ler seu novo livro.

Essas três primeiras frases são exemplos de manifestações carinhosas que recebo diariamente e que muito me comovem, mas, se você reparar bem, vai ver que elas trazem alguns “estrangeirismos” à língua portuguesa, com os quais, aliás, o governo não se importa tanto.

Você escrito com cedilha. Encômodo em vez de incômodo. Anciosa em vez de ansiosa. Equívocos campeões de audiência. Existe também na linguagem escrita uma farta distribuição de palavras como previlégio, viajem, recompença, análize, sem contar os clássicos mendingo, menas, imbigo.

Quando se trata da palavra falada, é comum ouvir “trusse” em vez de trouxe, “eu soo” em vez de “eu suo”, sem falar no descaso absoluto com os plurais: vou com quatro amigo, ela me deve cinco real, almocei dois pastel.

Serão todos analfabetos? De forma alguma. São profissionais liberais, estudantes de faculdade e, olha, alguns se apresentam até como professores. Erram porque todo mundo erra, assim como eu também cometo meus erros. Não esses, nem tantos, mas cometo. Recentemente passei pelo vexame de escrever “doentis” em vez de “doentios”. O português é uma língua que convida à derrapagem.

Só há uma maneira de barrar o uso disseminado desses estrangeirismos no nosso idioma: incentivando cada vez mais o hábito da leitura, investindo maciçamente nas escolas e inaugurando uma biblioteca pública em cada esquina.

Se não for assim, os pais continuarão falando errado em casa e darão maus exemplos aos seus filhos, que por sua vez passarão adiante atrocidades como “para mim fazer” ou “vou estar fechando a loja”, e o português continuará sendo infestado de expressões que, essas sim, comprometem a integridade do nosso idioma.

Eu sou contra qualquer patrulha, mas se querem instaurar uma, que seja pela preservação do bom português, em vez de perderem tempo com uma caça às bruxas improdutiva. A absorção de palavras estrangeiras é algo natural em qualquer cultura, não há motivo para organizar uma resistência.

Claro que há certos exageros, principalmente no jargão empresarial, mas isso é questão de gosto: na minha opinião, de mau gosto. Me parece mais elegante apresentar um orçamento do que um budget, fazer uma reunião do que fazer um meeting e apresentar um relatório em vez de um paper, mas há quem se sinta um profissional mais competente falando assim. Afetação, só isso. De forma alguma coloca em risco nossa língua mãe.

Utilizar palavras em inglês, vez que outra, é apenas uma rendição ao que se consagrou como universal. Não mata ninguém. E não deixa de ser didático, afinal, o turismo tem aumentado no mundo e é bom que se saibam algumas palavras-chaves.

De minha parte, acho preferível fazer um happy hour do que ter uma hora felis com os amigos, fazer um check in no aeroporto do que uma xecagem, executar downloads do que baichar músicas. O uso eventual do inglês (ou do francês, do italiano, do latim) não compromete em nada o nosso idioma. O português mal falado e mal escrito é que nos faz passar vergonha.

terça-feira, 26 de abril de 2011



26 de abril de 2011 | N° 16682
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Acidente de percurso

Na calma destas manhãs de domingo, costumo revisitar minha infância. Cachoeira era então uma cidade atrevida e próspera. Perguntei uma vez a meu pai se Cachoeira era maior que Caxias, e ele respondeu que sim. “Cachoeira”, disse, “é a maior produtora de arroz do Brasil e a quarta praça financeira do Estado. Isso quer dizer que só outras três cidades gaúchas têm mais movimentação de dinheiro que a nossa, aí incluindo Porto Alegre.”

E se perguntava se Cachoeira tinha aeroporto, meu pai respondia imediatamente que sim. São três voos semanais, da Varig e da Savag, ligando-nos com a Capital. “E temos cinemas?” “Temos dois: O Cine-Teatro Coliseu e o Cine Ópera Astral.” E porto, temos? “Claro que sim. Basta descer a ladeira da Rua Morón e tu encontrarás um amplo ancoradouro povoado de embarcações.”

E em indústrias, como estamos? “Vai à Estação Ferroviária – aliás, ligada diariamente com Porto Alegre e Santa Maria – e verás uma fileira de imensos engenhos, capazes de abastecer o Brasil.”

Eu ouvia essas e outras coisas de meu pai e ficava orgulhoso de minha cidade. Havia mais: tinha um hospital – onde aliás nasci – comparável aos mais modernos das três Américas. Não nos faltavam lideranças: em um governo eram nossas as secretarias da Educação e Cultura e a da Agricultura. O mais belo e moderno clube do Rio Grande do Sul – o Comercial – ficava bem no centro do centro da Rua Sete, com seus mármores e cristais.

E estávamos bem servidos de igrejas? Meu pai sorria: “O grande historiador Athos Damasceno Ferreira descreveu a Matriz como mais ampla que a própria catedral de Porto Alegre”. Tinha, antes da desastrosa reforma que a deformou e desfigurou, um altar-mor, vários altares laterais e santos ancestrais, talhados nas Missões, cuja idade se media por séculos.

E ornavam a cidade lindas casas? “Lindíssimas”, comentava meu pai. “Um bairro chamado Rio Branco reunia esplêndidas mansões, que não fariam mau papel num recanto da Europa”.

Mas então o que houve com Cachoeira?

“Um acidente de percurso”, diria hoje meu pai. “O tempo passou e ela esqueceu de crescer.”

sábado, 23 de abril de 2011



24 de abril de 2011 | N° 16680
MARTHA MEDEIROS


Amor?

Obsessão e descontrole são doenças sérias, mas batizar isso de “amar demais” é um desserviço

Implico com títulos ou marcas acompanhadas de ponto de interrogação. Podem funcionar graficamente, mas pronunciá-los é uma chatice. Só que no caso do mais recente filme de João Jardim, o questionamento se aplica: aquilo que a gente assiste na tela é amor mesmo?

Amor? traz vários depoimentos de homens e mulheres que viveram relações conflituosas ao extremo, com violência física e até risco de morte. Os depoimentos são verdadeiros, e quem os interpreta (de forma comovente, diga-se) são atores que conseguem dar à obra um toque inquestionável de realismo. Tudo aquilo existe.

Quando, anos atrás, começou a se falar em “mulheres que amam demais” (há um grupo sério com a abreviatura Mada, que funciona nos moldes dos AA), muito me intrigou o uso do verbo amar como designação de uma patologia. Obsessão e descontrole são doenças sérias e merecem respeito e tratamento, mas batizar isso de “amar demais” é uma romantização e um desserviço.

Fica implícito que amar tem medida, que amar tem limite, quando na verdade amar nunca é demais. O que existe são homens e mulheres que têm baixa autoestima, níveis exagerados de insegurança e que não distinguem amor de possessão. Se assinarmos embaixo de que isso é amar demais, acabaremos achando que quem vive uma relação serena, preservando a individualidade do outro, é alguém que ama de menos.

Logo, a pergunta de João Jardim procede e perturba. Impossível se manter neutro diante do filme, pois todos nós já vivemos ou testemunhamos um caso que começou por amor, mas terminou em dor e aniquilamento da identidade. Entre um depoimento e outro, o diretor optou por colocar vinhetas quase líricas, para nos dar um certo respiro diante da turbulência dos relatos.

Curiosamente, uma dessas cenas mostra uma mulher mergulhada dentro de uma piscina, estática por alguns minutos. É uma cena aparentemente comum, mas que aos poucos vai angustiando: quanto tempo ela conseguirá ficar sem respirar?

Não existe relação sadia se ambos os envolvidos não conseguem respirar. Sufocamento, medo, violência, é tudo prenúncio de morte, enquanto que o amor é matéria-prima da vida, não compartilha com o desfacelamento da alegria.

Claro que brigas são comuns e até necessárias para a sólida construção de uma história entre duas pessoas, mas quando usamos essa relação para resolver carências e fantasias da infância (e isso sempre acontece), é preciso encontrar uma medida para que o exagero dessa transferência não ponha tudo a perder.

Estamos todos fadados a amores doentis? Depende. Todo amor faz sofrer em determinados momentos, mas estaremos salvos se soubermos transcender o melodrama. Semana que vem vou falar de um amor lindo que terminou de forma trágica, mas cujo sofrimento foi transformado em poesia. Um amor que era amor mesmo, e ponto final.


23 de abril de 2011 | N° 16679
NILSON SOUZA


O enigma

Meu extravagante colega de ofício Paulo Sant’Ana apareceu outro dia aqui na Sala do Senado – que é como alguns companheiros do jornal apelidaram a nossa Editoria de Opinião – portando uma imponente bengala com cabo de metal. Diz ele que se trata de uma “prótese externa”, necessária para compensar-lhe uma disfunção no joelho.

A explicação costuma ser recebida com sorrisos irônicos, pois todos temos a impressão de que ele se vale do bastão para ostentar uma pose de distinção, como faziam os cavalheiros europeus do século 18. Em Londres, naquela época, havia até mesmo uma legislação disciplinando o uso da bengala – e o sujeito que violasse as regras perdia o privilégio de desfilar com o respectivo instrumento de apoio.

Sant’Ana mais parece um Chaplin contemporâneo quando sai da sala caminhando devagar, rumo ao fumódromo, com o celular numa das mãos e o seu novo brinquedinho na outra. Ele a utiliza como um acessório fashion – se é que o deputado Carrion me permite o anglicismo. Mas ainda não adquiriu o traquejo e a elegância do doutor Brossard, que já incorporou a bengala e o chapéu panamá à sua imagem pública.

O cajado também era indissociável de um outro antigo frequentador da nossa sala, o saudoso Décio Freitas, que nos visitava todas as quintas-feiras depois de participar de uma confraria de intelectuais no restaurante Copacabana.

Portador de uma anomalia que o levava a claudicar, o escritor necessitava da bengala para se locomover e o fazia de forma um tanto ruidosa, porque efetivamente depositava o peso do corpo no bastão. Antes de vê-lo chegar, ouvíamos o toc-toc que invariavelmente prenunciava uma sessão de histórias divertidas e inteligentes.

Tem gente que usa a bengala como arma, como aquele aposentado que castigou um político envolvido em corrupção. Não é comum, nem recomendável. O mais sensato é usá-la pacificamente, como fazia Mahatma Gandhi na sua caminhada incessante contra a violência: “Estou convencido das minhas próprias limitações – e esta convicção é minha força” – dizia ele. Espero que sirva de inspiração para o nosso Sant’Ana.

A bengala tradicional – me ocorre agora – é também um ponto de interrogação, que simboliza a sabedoria de seus portadores. Pela manhã, temos quatro patas e não somos capazes de entender o mundo. Ao meio-dia, temos duas e achamos que o mundo é que não nos entende. Ao entardecer, somos sábios, ainda que tenhamos dificuldade para nos equilibrar sobre o mundo.

Talvez esteja aí o enigma da vida.

Gostoso sábado de aleluia para voce. FELIZ PÁSCOA

quinta-feira, 21 de abril de 2011


CONTARDO CALLIGARIS

Estilos da vida

Nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida

VOCÊ SE lembra daqueles personagens de quadrinhos que são impiedosamente seguidos por uma nuvem preta, que é uma espécie de guarda-chuva ao contrário? Eles não têm para onde fugir: deslocam-se, mas a chuva os persegue, mesmo debaixo do teto de sua casa.

Claro, no outro extremo do leque há pessoas que são seguidas por um sol esplendoroso, mesmo quando estão no escuro ou no meio de um desastre que deveria empalidecer a luz do dia (se ela tivesse vergonha na cara).

Em suma, cada um de nós parece estar sempre numa condição meteorológica que lhe é própria e não depende nem da estação nem dos acontecimentos do momento.

Esse clima privado, como um pano de fundo que nos seria imposto, é uma consequência quase inevitável dos primórdios de nossa vida e das bênçãos ou maldições murmuradas ao redor de nosso berço.
Talvez sejamos um pouco mais livres para escolher o estilo da vida que levaremos, seja qual for nosso pano de fundo.

Geralmente, por estilo DE vida, entende-se um modelo que a gente imita para construir uma identidade e propô-las aos olhos dos outros. Mas o estilo DA vida, que é o que me interessa hoje, é outra coisa: é a forma literária na qual cada um narra sua própria vida, para si mesmo e para os outros. Um exemplo.

Acabo de ler (e continuarei relendo por um bom tempo) "The Book of Dreams" (o livro dos sonhos), de Federico Fellini (ed. Rizzoli). São mais de 400 páginas, em grande formato, que reproduzem fotograficamente os cadernos nos quais o diretor italiano registrou seus sonhos, em palavras e desenhos, de 1960 a 1968 e de 1973 a 1990 (ele morreu em 1993).

Tullio Kezich, que assina a introdução, conta que, em 1952, no seu primeiríssimo encontro com Fellini, o diretor lhe perguntou o que ele tinha sonhado no dia anterior. Tullio não sabia e ganhou uma filípica de Fellini sobre a importância de não perder o "trabalho noturno", que seria no mínimo tão significativo quanto o que pensamos e fazemos quando estamos acordados.

Fellini amava dormir e sonhar; ele vivia com um caderno ao lado da cama, onde registrava texto e visões imediatamente, ao despertar. E note-se que seu interesse pelos sonhos era anterior a seu primeiro contato com a psicanálise (que foi desastrado, com um freudiano, em 1954, e bem-sucedido com um junguiano, Ernst Bernhard, de 1960 a 1965, quando Bernhard morreu).

Vários amigos que me viram ler o livro me perguntaram se, então, os sonhos de Fellini serviam de material para seus filmes. A questão não cabe. O que o livro revela é que, para Fellini, o sonho era, por assim dizer, o gênero literário no qual ele vivia (e portanto contava) sua vida- nos cadernos da mesa de cabeceira, nos filmes e no dia a dia.

Cuidado. Fellini não especulava nem um pouco sobre, sei lá, a "precariedade" de nossa percepção, que pode confundir sonho com realidade. Ele nunca se perguntava se o que estava vivendo era sonho ou realidade, porque, para ele, o sonho era, propriamente, o estilo da realidade.

Esse estilo era o que fazia com que seu olhar estivesse constantemente maravilhado ou atônito: graças a esse estilo, ele atravessava (e contava) a vida como "um mistério entre mistérios" (palavras dele).
Pois bem, nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida -é o estilo graças ao qual nossa vida se transforma numa história.

Cada um escolhe, provavelmente, o estilo narrativo que torna sua vida mais digna de ser vivida (e contada). Há estilos meditativos, investigativos, introspectivos, paranoicos ou, como no caso de Fellini, oníricos e mágicos.

Quanto a mim, o estilo narrativo da minha vida é, sem dúvida, a aventura. Não só pelos livros que me seduziram na infância ("Coração das Trevas", de Conrad, seria o primeiro da lista). Mas porque a narrativa aventurosa sempre foi o que fez que minha vida valesse a pena, ou seja, não fosse chata, mesmo quando tinha toda razão para ser.

Quando meu filho, aos quatro ou cinco anos, parecia se entediar, eu sempre recorria a um truque, que ele reconhecia como truque, mas que funcionava. Eu me calava e me imobilizava de repente, como se estivesse ouvindo um barulho suspeito e inquietante; logo eu sussurrava: "Atenção! Os piratas!".

Nem ele nem eu acreditávamos na chegada dos piratas, mas ambos achávamos que a vida merecia um pouco de suspense.

ccalligari@uol.com.br

Parece não ser quinta-feira, mas é quinta-feira sim. Dia do Aniversário de Brasília. Parabéns aos meus amigos que lá vivem. Tiradentes e a Inconfidência Mineira. E o próximo dia útil já será 25 de Abril.

sábado, 16 de abril de 2011



17 de abril de 2011 | N° 16673
MARTHA MEDEIROS


O que a vida oferece

É preciso dar uma chance à vida, colocando-nos à disposição para que ela nos surpreenda

Conversando outro dia com um senhor saudosista, ele me contou que quando sua filha tinha uns 10 anos de idade, ele costumava pegá-la pela mão e propunha: Vamos dar uma volta na rua pra ver o que a vida oferece.

Tanta gente aí esperando ansiosamente para ver o que a vida oferece, só que não sai de casa, e quando sai, não tem o olhar curioso nem o espírito aberto para receber o que ela traz.

Infelizmente, já não caminhamos pela rua, a não ser num ritmo acelerado, com trajeto definido e com o intuito de queimar calorias. Marchamos rumo a um melhor condicionamento físico, o que é um belo hábito, mas flanar, não flanamos mais. Não passeamos. As ruas estão esburacadas, há muitas ladeiras, o trânsito é barulhento e selvagem, compreende-se. Mesmo assim, a despeito de todos os inconvenientes, é preciso dar uma chance à vida, colocando-nos à disposição para que ela nos surpreenda.

Ao sair sem pressa, paramos numa banca de revistas e descobrimos uma nova publicação. Dizemos bom dia para o jornaleiro e ele, gentil, nos troca uma nota de valor alto. Na calçada, encontramos um velho amigo. Ou um artista famoso. Ou alguém que sempre nos prejudicou e hoje está mais prejudicado do que nós, bem feito.

Na rua, pegamos sol. Paramos para tomar um suco de maracujá com maçã. Flertamos. Um novo amor pode surgir de uma caminhada tranquila numa rua qualquer. E uma nova proposta de trabalho pode surgir de um esbarrão num ex-colega: estava mesmo pensando em te procurar, cara! Se continuasse apenas pensando, nada aconteceria.

Na rua, o jeito de se vestir de uma moça inspira a gente a resgatar uma jaqueta que não usávamos mais. Bate de novo a vontade de ter um cachorro. Descobrimos que é hora de marcar um exame minucioso no joelho direito, por que ele incomoda tanto?

Encontramos umas amigas num bistrô e paramos um instantinho para conversar, e então ficamos sabendo de uma exposição que não se pode perder. Passamos por uma livraria e damos mais uma namoradinha num livro que nos seduz. Ajudamos uma senhora que está saindo com várias sacolas de um supermercado, não custa dar uma mão. Aceitamos o folheto entregue por um garoto na esquina, anunciando uma cartomante que promete trazer seu amor de volta em 3 dias.

Você joga o folheto no lixo, e não no meio-fio. Você compra flores para sua casa. Você observa a fachada antiga de um prédio e resolve voltar ali com uma máquina fotográfica. Você entra numa igreja, não fazia isso há anos.

Reencontra um ex-namorado que passa de carro e lhe oferece uma carona. Você nem tinha percebido como havia caminhado e como estava longe de casa. Aceita a carona. Um novo amor não surgiu, mas seu antigo amor foi resgatado em menos de 3 dias, nem precisou de cartomante.

Pode nada disso acontecer, óbvio. Mas sem dar uma chance à vida é que não acontece mesmo.

IVAN MARTINS

Desculpe, não me lembro de você

É chato ouvir isso, mas acontece – e não mata

Todos nós somos inesquecíveis, claro. Mas algumas pessoas, estranhamente, se esquecem de nós. E nós também nos esquecemos de pessoas. Se a vida fosse simples, não haveria problema. “Desculpe, eu não me lembro de você”. Diante dessa frase, perfeitamente compreensível, a pessoa explicaria, rapidamente, onde e quando vocês se conheceram – e que tipo circunstância compartilharam. Foi trabalho, lazer ou prazer?

Mas a vida está longe de ser simples. Diante de um sorriso de intimidade num rosto estranho, a maior parte de nós mergulha em pânico social. Em vez de admitir ignorância, somos levados a agir como tontos.

Sorrimos de forma mecânica, entabulamos uma conversa sem sentido, esperamos que o cérebro – o mesmo que acaba de nos deixar na mão – encontre uma saída para a enrascada. A quem pertence esse rosto, meu deus? De quem é essa voz que se dirige a mim com tanta naturalidade? Todos já passamos por esse pesadelo.

Faz muito tempo eu vi um filme francês no qual havia uma cena desse tipo, deliciosa.

O sujeito entra no bar, senta-se em frente da garçonete e faz cara de criança feliz. A moça olha, estranha a atitude dele e, afinal, pergunta: você e eu nos conhecemos? O rapaz balança a cabeça afirmativamente. Ela faz cara de brava, afasta-se, mas volta, minutos depois, curiosa. “Nós transamos?”, pergunta. O rapaz assente, com entusiasmo. Na cena seguinte, estão os dois na cama, com cara de que deu tudo errado. Ela diz uma única frase: “Agora me lembrei de você”.

Afinal, o que nos torna esquecíveis ou inesquecíveis?

Minha impressão é que isso nada tem a ver com qualidades inerentes, como beleza, charme e habilidades. É uma questão de circunstância. Às vezes estamos tão agitados ou tão distraídos que a mais bela mulher do mundo pode passar sem deixar marcas. Diante do cenário em movimento, torna-se um rosto ou um corpo sem identidade. Outro. Há fases da vida dos homens e das mulheres em que isso tende a acontecer.

Pela quantidade, pela repetição, pela ausência de relevo emocional. A tristeza provoca esse tipo de sensação. Ou a euforia. Tudo fica mais ou menos igual. As coisas e pessoas vão se sucedendo e todas elas ficam parecidas. É provável que alguém que passe pela vida do sujeito – ou da moça – num período desses, seja posto de lado na memória, logo em seguida. Sem desonra. A gente nunca sabe o que se passa no interior do outro.

Uma vez, anos atrás, estava com meus filhos na Fnac e avistei uma namorada de adolescência que foi, para mim, da maior importância. Ela estava na faculdade, eu no colégio. Ela era culta e bem informada, eu, louco para aprender. Longas conversas, sexo desengonçado, política, filmes e passeios no Bom Retiro. Jamais me esqueci dela. Como poderia? Pois nesse dia, na Fnac, minha ex-namorada demorou uma eternidade para lembrar-se de mim.

Eu lá, sorrindo, emocionado, exibindo as minhas crias, e ela me fitando como se eu fosse de Marte. Longos minutos depois, quando eu, de tanto explicar, consegui que ela recordasse alguma coisa, a reação foi ainda pior. Ah, sim, Ivan... com uma expressão de quase indiferença no rosto. Fiquei desconcertado.

Ela fora importante na minha vida, mas a recíproca, obviamente, não era verdadeira. Recolhi minha alegria sem contexto e fui embora, explicando aos meus filhos sobre a arte do desencontro. Sem desonra. A gente nunca sabe o que se passa no interior do outro.

Agora que inventaram o Facebook, essas coisas estão acontecendo em escala muito maior, planetária. Na vida de todo mundo. Eu não sou o cara mais popular da cidade, nunca fui, e, mesmo assim, vira e mexe aparece alguém no meu perfil, se reapresentado: então, lembra de mim?

Às vezes eu não me lembro de nada e deixo por isso mesmo. A memória deve ter suas razões. Em outras ocasiões eu quase lembro, quase sei quem é a pessoa, e isso me deixa curioso. O que terá havido que eu borrei na memória?

Outro dia aconteceu algo assim. Apareceu um nome, um rosto e uma alegria gostosa em me reencontrar, depois de uns 10 anos. Como não era uma conversa frente a frente, o embaraço foi menor. Eu pude, delicadamente, fazer perguntas.

De onde a gente se conhece mesmo, quem nos apresentou, você era a moça que alugava aquela casa na praia? Eu estava com medo de repetir a cena do filme francês - esquecer de alguém com quem eu tinha transado - mas não foi o caso. Melhor assim. Já me aconteceu de apagar esse tipo de evento íntimo e a sensação é muito ruim. A gente se sente ao mesmo tempo promíscuo e desmemoriado.

Como eu disse no início, todos nós somos intrinsecamente inesquecíveis. Únicos mesmo. E eu acredito nisso. Se alguém pudesse, como nos filmes, entrar na nossa mente, por um segundo que fosse, perceberia a corrente de sentimentos, memórias e sensações totalmente originais que forma cada um de nós. Mas não vivemos assim, não é?

Passamos rapidamente pela vida dos outros, que passam pela nossa, sem verdadeiramente nos tocar. Somos muitos, não deixamos marcas e tampouco nos deixamos marcar. Nessas circunstâncias, a memória fraqueja. Cria embaraços, mas abre, também, novas oportunidades. “Desculpe, eu não me lembro de você”, não é necessariamente um insulto. Pode ser apenas um recomeço.

Até a próxima semana


16 de abril de 2011 | N° 16672
NILSON SOUZA


A era da colaboração

O pesquisador canadense Don Tapscott, páginas amarelas da Veja desta semana, disse que o mesmo gênio da tecnologia que havia proporcionado a prensa móvel a Gutenberg saiu da garrafa outra vez para criar a internet.

A imprensa – ele assegura – nos deu acesso ao conhecimento que já havia sido produzido e estava registrado. A internet nos dá acesso ao conhecimento contido no cérebro das outras pessoas em qualquer parte do mundo.

A principal consequência desta revolução é o que ele chama de “era da colaboração coletiva”, na qual as pessoas, as empresas e até os governos veem-se compelidos a trabalhar em conjunto para inovar, para criar valores, bens e serviços. É a wikinomia – um sistema econômico regido pelo mesmo princípio da Wikipédia, a enciclopédia digital feita e atualizada constantemente pelos usuários.

Tudo faz sentido. As novas possibilidades de acesso, produção e divulgação de informações estão mesmo derrubando barreiras, conceitos e até ditaduras. É inquestionável que o indivíduo ganhou poder.

Em poucos cliques, as pessoas se identificam, formam comunidades de interesse e ganham força para defender suas causas. Só mesmo lideranças anacrônicas continuam achando que a concentração de conhecimento e informação lhes garante supremacia sobre seus liderados.

Mas nem tudo são flores neste admirável mundo novo da comunicação instantânea. O cérebro das pessoas, cada vez mais acessível, pode ser também uma caixa de Pandora, de onde só saem coisas ruins.

A internet igualmente dá poder a gente do mal, que usa os dedos e a magia do instrumento para ferir, fraudar e discriminar. Diante desta realidade, fico pensando: será que esta cooperação determinada por razões econômicas não acabará boicotada pelo terrorismo digital?

A mudança de paradigmas sempre choca. Resisto em aceitar, talvez por algum sentimento de autopreservação, que o declínio dos jornais e a obsolescência do jornalista são inexoráveis neste ambiente multimídia em que cada indivíduo se transforma em editor e no qual as informações circulam em nuvens.

Continuo achando que não basta ter acesso fácil a dados superficiais, como fazem milhões de usuários da rede, para fazer bom uso deles. Alguém tem que saber decodificá-los. Alguém tem que explicar melhor o que a internet não conta. Alguém tem que surpreender com notícias e comentários inesperados. Espero que essas tarefas continuem a cargo dos jornalistas.

Alguém – suprema pretensão – talvez tenha que organizar as nuvens.

quarta-feira, 13 de abril de 2011



13 de abril de 2011 | N° 16669
MARTHA MEDEIROS


Vulneráveis

O que mais me choca nestas tragédias como a que aconteceu na escola carioca é a constatação de que somos todos vulneráveis. O que ocorreu no Rio de Janeiro é repeteco de outras insanidades já cometidas e contra as quais nada podemos fazer (eu iria concluir com “apenas rezar”, mas é melhor deixar a religião fora disso: como dizia Saramago, “o mundo seria mais pacífico se fôssemos todos ateus”).

A qualquer momento, podemos cruzar o caminho de um maluco com uma arma, de alguém que nunca recebeu um olhar cuidadoso sobre ele, que foi deixado à deriva com seus delírios. Alguém que, neste abandono, se sente na incumbência de moralizar o mundo a seu modo, um demente que se sente predestinado, um pobre coitado que nunca teve razão para viver, nenhum neurônio em bom estado.

A qualquer momento, pode um sujeito transtornado, com muito fio solto na cabeça, se dar conta de que o mundo não lhe deu a devida atenção e decidir resgatar essa atenção na marra, arrasando com dezenas de vidas.

Não é do Brasil esse problema, é do mundo inteiro. Aconteceu também num shopping da Holanda dias atrás. Claro que atos extremos, como atirar a esmo contra pessoas indefesas, são exceções, mas há inúmeros delitos corriqueiros que também provocam ferimentos e mortes, e é isso que assusta: somos todos vulneráveis diante das esquizofrenias alheias.

Diante de homens e mulheres que sofrem de distúrbios mentais, que sofrem de falta de orientação e de amor em casa, que sofrem sem ter apoio profissional, sem ter ajuda de médicos, que sofrem suas psicopatias e que descontam em quem nada tem a ver com elas.

Se Wellington Menezes de Oliveira era um animal, como o definiu o governador do Rio, era um animal sem dono, sem adestrador, sem um ser humano que se responsabilizasse por sua selvageria latente.

Nunca estivemos tão à mercê de estressados, de desequilibrados. É uma sociedade doente, onde um motorista passa por cima de ciclistas num momento de impaciência, onde um marido espanca sua esposa por ciúme, onde uma mulher abandona um bebê num saco plástico e o joga no rio, onde um avô abusa sexualmente da neta, onde o valor à vida está cada vez minguando mais.

Não sei se é por causa da competitividade dos dias de hoje, se é por causa do grande número de famílias desestruturadas, se é pelo narcisismo crônico ou se por tudo isso, mas as cabeças estão mais alucinadas do que nunca foram, e isso é caso de saúde pública.

Não são poucos os portadores de sofrimentos psíquicos, e eles precisam não só de atenção e cuidado, como também de tratamento para amenizar sua dor interna e assim não colocar a sociedade em risco. Só os que sofrem é que fazem os outros sofrerem.

terça-feira, 12 de abril de 2011



12 de abril de 2011 | N° 16668
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Minha vizinha mais bela

Segundo leio, pesquisas de cientistas do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa sugerem que 2% das estrelas semelhantes ao Sol possam ter planetas das dimensões da Terra e seriam habitáveis. Na Líbia se trava uma guerra por enquanto sem vencidos nem vencedores. E no Japão uma espantosa catástrofe ceifou milhares de vidas e coloca em jogo a própria segurança da energia nuclear.

São fatos impressionantes. Mas nada disso me causa tão grande impacto do que uma explosão que contemplo de minhas sacadas. Sem aviso prévio, a paineira que me dá a honra de sua vizinhança aqui na Rua Duque incendiou-se, de um dia para outro, da cor rosa.

Não é um rosa esmaecido. É um rosa brilhante que ilumina este ponto do Centro Histórico de Porto Alegre. Tenho visto esta mesma árvore nua, erguendo os ramos esquálidos para o infinito. Já a tenho também visto vestida de verde, num universo convidativo e acolhedor para os pássaros e seus ninhos.

Mas nunca a tinha contemplado assim neste estado tão perfeito de harmonia e de beleza.

Dizem que nos outonos as árvores se desnudam. Não é o que vejo neste exato instante de uma manhã de domingo. Falam que as árvores florescem durante a primavera. Não é o que constato neste dia outonal. Minha vizinha paineira se abre em sua máxima florescência neste começo de abril.

Gostaria de ter o talento e a arte de um fotógrafo para fixá-la em todo o seu esplendor.

Na Granja da Penha, em Cachoeira, tínhamos uma figueira monumental. Sua vida se contava em séculos. Sua copa cobria largo espaço de descampado e comentavam que em suas vigorosas raízes se ocultava um tesouro ancestral, composto de dobrões de ouro, ali escondidos pelos padres jesuítas das Missões. Ninguém jamais descobriu tamanha riqueza, mas havia outra: os pássaros de todas as espécies que se abrigavam em seus fortes troncos.

É dela que me lembro olhando a paineira aqui da Rua Duque, vigorosa e florescente. A figueira era maior e mais poderosa, mas a paineira tem uma força que as assemelha, com a vantagem nítida das flores.

Qualquer dia trago aqui o pintor Eduardo Vieira da Cunha para eternizá-la numa tela.

sábado, 9 de abril de 2011



10 de abril de 2011 | N° 16666
MARTHA MEDEIROS


Histórias cabeludíssimas

Não acontece só com celebridades de revista: qualquer um de nós está sujeito a virar assunto de pessoas inventivas e de má-fé

Outro dia recebi um e-mail de uma amiga dizendo que havia escutado uma história cabeludíssima a meu respeito e que não via a hora de me encontrar e tirar a limpo se era verdade ainda que ela estivesse quase segura de que era mentira.

Respondi que ela poderia ficar inteiramente segura de que era mentira, fosse o que fosse, já que não costumo protagonizar cabeludices. Não em público.

Quando por fim nos encontramos, rimos muito. A história não tinha nem pé nem cabeça, mas o espantoso é que alguém havia jurado e sacramentado que era tudo verdade verdadeira. A fonte, quem era a fonte? Uma enfermeira amiga de não-sei-quem que me viu nos corredores de uma clínica não-se-sabe-qual fazendo nem-te-conto-o-quê.

A tal enfermeira não conseguiu acabar de vez com minha reputação – ufa –, mas fiquei pensando sobre como é fértil o mercado da fofoca. Sem que nunca tenham visto você, sem que nunca tenham trocado uma única palavra com você, divulgam um episódio venenoso a seu respeito e depois você que se vire para consertar os estragos. Não acontece só com celebridades de revista. Qualquer um de nós está sujeito a virar assunto de pessoas inventivas e de má-fé.

Sei que um mundo sem fofoca seria muito sisudo, que a fofoca é considerada uma falta leve, quase uma diversão, e que não há razão para se preocupar, já que são raros os casos em que ela denigre pra valer um sujeito. Mas é inquietante saber que há versões falsificadas de nós mesmos passeando por aí de boca em boca.

A maioria das pessoas comunga da ideia do “falem mal, mas falem de mim”. Sempre achei meio suspeita essa necessidade de ser notado a qualquer custo, de preferir ser esculhambado a ser ignorado. O que é que confirma nossa existência? O afeto que os outros sentem por nós e o respeito que sentimos por nós mesmos.

Preferir ter a existência confirmada por invencionices de quem não tem mais o que fazer me parece uma alternativa desesperada de se fazer notar. De minha parte, falem bem ou não falem nada: prefiro o desprezo verdadeiro a uma boataria depreciativa que evolui pelo telefone sem fio.

Agora, se me viram de chamego com George Clooney num iate em Ibiza, confirmo.
Quem as mulheres desejam?

Não basta ser rico e bonito. O homem do século XXI precisa de atributos como fidelidade, inteligência, coragem e... talento para fazer massagens nos pés



O tipo bom moço de Wagner Moura lhe valeu o primeiro lugar na lista dos famosos mais desejáveis pelas mulheres.

Num passado não muito distante, o marido dos sonhos era um cara honesto, razoavelmente fiel, bom pai e que não deixava faltar nada em casa. A esposa, por sua vez, cumpria o outro lado do acordo social vigente: cuidava dos filhos, preparava o jantar e esperava a volta do amado para casa, com o avental todo sujo de ovos.

Hoje essa Amélia não existe mais. Porém, ao buscar um companheiro, a mulher moderna ainda sonha com algumas qualidades desejadas por suas avós – acrescentadas de uma longa lista de novas exigências.

Em fevereiro, a pedido de ÉPOCA, o instituto de pesquisas da mulher Sophia Mind aplicou uma enquete para saber qual dos homens famosos encarnaria esse sujeito dos sonhos. O ator Wagner Moura obteve o primeiro lugar, com 37,5% dos votos. Fora das telas, Moura é casado e pouco aparece nas revistas de celebridades – muitas de suas aparições, aliás, são flagras de passeios com o filho pequeno.

O mesmo instituto de pesquisas ouviu, recentemente, 666 mulheres, casadas e solteiras, sobre as características essenciais do macho perfeito. Fiel, inteligente, atencioso e sincero estão entre os predicados mais citados. A fidelidade, aliás, é a top das virtudes, tanto para as solteiras (35%) quanto para as casadas (34%).



Fica claro, por essas pesquisas, que o homem ideal, modelo século XXI, é um pacote completo, que alia proteção, afeto e satisfação. A antropóloga Mirian Goldenberg acredita, aliás, que a lista de demandas femininas se tornou excessiva. Segundo a pesquisadora, é impossível satisfazê-la. Se há cinco décadas as mulheres queriam apenas segurança e uma família, agora elas querem tudo isso – mais cumplicidade, afinidade intelectual, romance e massagem nos pés.

“Elas querem um bonitão bom de cama e, de preferência, fiel”, diz Mirian. Ela pesquisou 835 mulheres e homens para o livro Por que os homens e as mulheres traem, lançado em 2010, e descobriu o homem ideal das brasileiras em 2011: fiel, sincero, honesto, corajoso, alegre e rico – nessa ordem.

Parece demais? Pois pode ser ainda pior. Uma pesquisa com estudantes da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, concluiu que o ideal de homem para a maioria das garotas é... Jesus Cristo, seguido por Martin Luther King. Quem disse que os padrões de exigência moral estão caindo?

A beleza dos galãs de novelas, por outro lado, parece não estar na lista de prioridade das mulheres. “Homem bonito? Isso é uma bobagem!”, diz a escritora Danuza Leão, de 76 anos. Para a ex-modelo, socialite e escritora, o padrão de príncipe encantado com barriga tanquinho é totalmente ilusório.

“Isso é coisa de gente que vê novela, vai ao cinema e só tem isso como parâmetro”, afirma. Danuza fala com o conhecimento de quem passou por três casamentos e diversos romances, ao longo de uma vida rica agitada. “Jamais tive um namorado gato. Meus maridos foram todos feios, inteligentes e interessantes”, diz.

O ator Eriberto Leão, de 38 anos, galã da novela Insensato coração, descarta a beleza como principal atributo do homem perfeito. Campeão de cartas de telespectadores da TV Globo, ele tem olhos verdes enigmáticos, corpo malhado e oito novelas no currículo. “Um homem que lê e tem opiniões essenciais sobre a vida chama a atenção das mulheres”, afirma.

Casado há cinco anos e pai há menos de um mês, ele defende a fidelidade – o mais valorizado dos atributos masculinos, segundo as mulheres. “Ser fiel é uma escolha que dá força na vida”, diz. Eriberto acredita que postura intelectual, caráter sólido e virilidade são as virtudes que definem um homem. “A beleza desaparece na primeira meia hora de conversa”, diz ele.

No livro Histórias íntimas – Sexualidade e erotismo na história do Brasil, que será lançado em abril, a historiadora Mary Lucy del Priore dedica um capítulo à transformação masculina – do tipo “almofadinha” ao perfil “Tarzan”. Mary explica que na fase almofadinha o homem moderno construiu uma masculinidade não mais fundada apenas na coragem e na honra, como no passado, quando era obrigado a pegar em armas para defender seu lar.

A versão Tarzan surgiu recentemente, forjada pela exibição corporal masculina na mídia e nas praias. “A masculinidade foi reelaborada em contraste com a feminilidade”, afirma Mary. Isso encerra a transformação masculina? Não exatamente. Tudo sugere que o modelo “macho 2011” exige manter a virilidade e caprichar na aparência, mas incorporando, obrigatoriamente, a ternura. Não vai ser fácil...

raquino@edglobo.com.br

O massacre dos brasileirinhos

Achávamos o Brasil imune a chacinas escolares “do tipo americano”. Já encaramos tantos problemas tão nossos. Realengo, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, tinha lugar cativo na música brasileira. Foi imortalizada por “Aquele abraço”, uma das composições mais cantadas de Gilberto Gil. Ironicamente, a letra, feita no exílio da ditadura em 1969, começava com “O Rio de Janeiro continua lindo”. E o estribilho, “Alô, alô, Realengo, aquele abraço”, era um recado para o quartel em que Gil ficara preso.

Agora, nosso abraço sentido e solidário vai para uma outra Realengo, aturdida, que reza, enche de flores a rua, acende velas e doa as córneas das crianças mortas para tentar tocar a vida adiante.

Todos procuram na história do atirador, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, os motivos que o tornem único. Era muito mau, muito louco, um animal, um psicopata, um esquizofrênico e se matou. Logo, isso não voltará a acontecer. Certo? Errado. O que podemos fazer para tentar evitar novos massacres de brasileirinhos?

• As escolas precisam ter psicólogos que possam antever problemas com alguns alunos. Um dos depoimentos mais lúcidos foi de Bruno Linhares, ex-colega do atirador: “As escolas estão mal preparadas. O Wellington era completamente maluco. Na sala de aula, já era perceptível o distúrbio mental dele. Muito calado. Vivia agarrado com a pasta embaixo do braço e dava uns sorrisos estranhos.

Um amigo um dia bateu no ombro dele e disse: ‘A gente tem medo de que você ainda vá matar muita gente’. Foi uma profecia. Deveriam chamar os pais dele, encaminhar ao psicólogo e ver qual a situação dele.” Psicólogos podem parecer luxo num sistema de ensino tão deficitário como o nosso. Mas, diante de tantos casos de violência entre alunos ou com os professores, não dá para ter quase 1.000 estudantes numa escola municipal sem uma assistência psicológica real, que funcione.

• A família deve prestar mais atenção ao comportamento dos meninos. “Há alguns padrões entre esses atiradores”, disse o psiquiatra Luiz Alberto Py. “Em todos, existe uma violência contida e armazenada durante anos até explodir. São crimes premeditados e tipicamente masculinos. O macho é mais dotado dessa busca de matar ou morrer. Para alguns, a juventude é um momento transtornado e confuso. O misticismo exagerado é outro indício preocupante.

Na dúvida, a família deve procurar um psiquiatra, porque hoje há diversos medicamentos capazes de acalmar e diminuir a confusão mental.”
Achávamos o Brasil imune a chacinas escolares. O que podemos fazer agora para evitar novos massacres?

• Escolas precisam reforçar a segurança. Não dá para qualquer um entrar em salas de aula sem identificação. Nos Estados Unidos, depois do massacre de 15 alunos na escola de Columbine, em 1999, as escolas passaram a usar detectores de metais.

Há quem ache essa medida radical ou paranoica diante de tragédias tão raras. Mas temos acompanhado inúmeras histórias de alunos, até mesmo em escolas de elite, que levam armas dos pais à sala de aula para mostrar aos amigos. Uma segurança maior contribui para evitar não só crimes premeditados, mas acidentes com armas de fogo.

• Infelizmente, a sociedade contribui para a glamourização da violência. É um exagero descomunal a quantidade de filmes violentos com tiros, degolas e estupros em horário nobre na TV. Fico pasmada com o investimento familiar maciço em jogos de computador cujo objetivo é matar ou morrer. Qual será o efeito em crianças e adolescentes?

• O Brasil não deveria se intimidar com os lobbies de armas. Temos de estudar seriamente a aprovação do Estatuto do Desarmamento. A elite colecionadora de armas detesta esse assunto. Wellington tinha em sua mochila 12 speed loaders, acessório para carregar os revólveres com rapidez, que pode ser comprado por qualquer pessoa em lojas de caça e pesca por até R$ 30.

O Estado do Rio tem 581 mil armas ilegais, segundo levantamento do deputado estadual Marcelo Freixo, da CPI das Armas. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, anunciou nova campanha do governo pelo desarmamento: “Temos uma cruzada pela frente”.

Podemos não conseguir evitar chacinas semelhantes. Mas cruzar os braços me parece pior.


09 de abril de 2011 | N° 16665
NILSON SOUZA


A caixa preta

Adoro fotografia antiga de gente antiga. Gosto de imaginar não apenas como era a vida daquelas pessoas congeladas pela imagem em determinado momento de suas existências, mas também a intenção do fotógrafo ao aprisionar a cena. Mais do que isso: diante de uma foto pretérita, fico pensando no operador da câmera, que nunca aparecia na própria obra e muitas vezes passava anônimo para a posteridade estrelada por seus personagens.

Tenho em casa uma pequena caixa preta que me faz sonhar com um tempo em que eu não existia, mas meu destino estava sendo traçado. É uma máquina alemã marca Agfa Box 44, que pertenceu a meu pai.

Ele a adquiriu quando era pouco mais do que adolescente, no final dos anos 1930. Naquela época, máquinas fotográficas eram raridade. Para satisfazer um capricho da juventude, meu pai empenhou na compra vários de seus salários de cobrador de ônibus. Graças àquela curiosa caixa, tenho hoje fotos de parentes que sequer conheci e dos lugares que eles frequentavam.

Também alguns fragmentos de minha infância foram captados pelo equipamento, que é de uma simplicidade artesanal, mas tem um intrigante detalhe: o visor mostra a imagem invertida. Se a gente move a máquina levemente para um lado, a imagem se desloca para o outro. Só isso, quando eu era menino, já me parecia magia suficiente. Mais espantoso ainda era, meses depois, pois as revelações demoravam séculos, ver aqueles rolos de filme 6x9 transformados em fotografias.

Pois bem, esta semana, lendo sobre o Festival Internacional de Fotografia que se realiza em Porto Alegre, resolvi pesquisar um pouco sobre a raridade que herdei de meu pai e descobri uma curiosa história. A maquininha foi fabricada na Alemanha em 1932 e fez parte de uma estratégia de vendas da Agfa verdadeiramente assombrosa para a época.

Os fabricantes fizeram uma campanha publicitária pela qual o público podia adquirir a máquina em troca de quatro moedas de um marco, desde que as moedas tivessem as letras A, G, F e A, que formavam o nome da empresa. Resultado: venderam 1 milhão de máquinas abaixo do preço de custo. Mas ganharam uma fortuna com a venda de filmes.

A câmera ajudou a popularizar a fotografia na Europa. Tanto que a empresa produziu um lote de máquinas na cor azul, para que as escolas públicas do país dessem de presente aos seus melhores alunos. E certamente vendeu mais filmes.

Sempre gostei daquela caixinha preta, que documentou momentos importantes de minha história familiar. Agora amo-a ainda mais por saber que levou a tanta gente a magia da fotografia.

quarta-feira, 6 de abril de 2011



06 de abril de 2011 | N° 16662
MARTHA MEDEIROS


Dinos

É um mundo estranho este. De repente, começaram a ser apresentados fósseis de animais pré-históricos descobertos recentemente no Estado. Parece até coisa de novela. Primeiro foram as ossadas encontradas em São Gabriel, agora as de Dona Francisca. E eu que achava que os nossos mais antigos ancestrais eram os açorianos. Pois soube agora que tivemos Tiarajudens e Decuriasuchus residentes. Tivemos, e ainda temos.

Estou só esperando tocarem a campainha aqui de casa. Posso imaginar os paleontólogos entrando com suas escovinhas e pás, buscando embaixo do meu porcelanato algum resíduo de esqueleto. “Soubemos que dinossauros habitaram esse pedaço de chão milhões de anos atrás, exatamente aqui, onde a senhora vive.” E eu responderei muito circunspecta: “Habitaram, não. Habita ainda. Muito prazer”.

Sou uma dinossaura gaúcha.

Outro dia, num encontro entre amigas, me xingaram por não estar no Facebook. Em vez de uma liberdade de escolha, consideraram minha ausência uma afronta. Não estar no Facebook significa que você é uma esnobe com mania de ser diferente.

Mas não é nada disso, tenho um bom argumento de defesa: é que me sinto obrigada a dar retorno a todos os contatos que recebo e, se entrar no Facebook, somando os e-mails que recebo (sim, e-mails – é condizente com minha espécie) não terei paz. Sou uma dinossaura. Relevem.

Eu ainda uso aparelho celular com teclas. Poderia ter um iPad, um tablet ou qualquer outro equipamento de última geração lançado dois minutos atrás, mas gosto do meu telefone simplificado, que só serve para fazer e receber chamadas e torpedos (eu ainda chamo de torpedo, e não de SMS). Não leio mensagens fora de casa. Dinossaura.

Lembram quando comentei outro dia sobre a entrevista que fiz com a Patrícia Pillar? A revista que me contratou me ofereceu um gravador. Aceitei. E pedi: não esqueçam de mandar as fitas!

É um mistério terem mantido a missão que me confiaram. Gravador digital era coisa que eu ainda não tinha manuseado. Poderia ter gravado a conversa pelo celular também. Mas vocês sabem: não se extraem os resíduos paleolíticos do DNA assim no mais.

Outro dia contei pro Fabrício Carpinejar que, quando estou no escuro do cinema, durante a projeção, costumo anotar nas folhas do talão de cheque as frases que me tocam durante o filme. Ele ficou bege. “Tu usa cheque???”.

E ainda acredito no amor. Podem me empalhar.

terça-feira, 5 de abril de 2011



05 de abril de 2011 | N° 16661
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Reunião de família

Elas vieram de muitos lugares, alguns distantes como a Alemanha. Elas se parecem no modo de olhar, de sorrir, de dividir sua beleza, especialmente as moças. São todas pessoas que participam de um almoço, num dos restaurantes do Menino Deus, de celebração de sua irmandade. Castanhas, loiras, queimadas do sol de verão, compartilham de um dom em comum.

São todos, homens e mulheres, crianças e adolescentes, netos bisnetos ou trinetos de Angelina Salzano Vieira da Cunha – aliás fotografada em um quadro que a reproduz no auge de sua beleza.

Viemos todos das mesmas origens: Pedorido, no norte de Portugal, Nocera Superiore, na Itália, mais os vastos domínios do Duque de Medinacelli, na Espanha. Viemos todos por nossos caminhos, ao longo dos séculos, para formar uma família que se renova, como podia ser visto na festa, organizada por minha prima Paula.

O mais surpreendente foi o modo com que, apesar da maioria de nós viver distanciada, ao nos reencontrarmos foi como se nos víssemos todos os dias. Não havia separação alguma.

O convívio foi retomado como se nos encontrássemos a cada instante, com uma naturalidade e uma espontaneidade que desconheciam ausências. É claro que sentimos a falta dos que já partiram, mas o dia era de celebração e não das perdas do caminho. Para estas resta nossa lembrança e nosso afeto.

Poucas festas terão sido tão fotografadas. Como hoje cada pequeno telefone celular é uma máquina múltipla de imagens, restaram centenas de registros de uma convivência num sábado outonal e chuvoso, mas pleno de ternura.

Daqui a 10, 20 anos, reviveremos cada instante do reencontro, da reunião de família em um almoço que se prolongou muito além das quatro da tarde.

E nos reveremos com o jeito de ser e a idade que hoje temos, sem nostalgia, mas com infinita saudade.


05 de abril de 2011 | N° 16661
CLÁUDIO MORENO


La donna è mobile

Ninguém é sempre o mesmo – e disso ninguém duvida. Mudamos o corte de cabelo e a maneira de vestir, mudamos de hábitos e de apetites. Trocamos de ideias e de atitudes; nossa opinião de hoje, que contradiz a de ontem, poderá ser abandonada amanhã.

Como muito bem disse Montaigne, somos formados por peças e retalhos que se juntam num arranjo variável e mutante, em que cada elemento, simultaneamente, desempenha o seu papel – e há tanta diferença entre nós e nós mesmos quanto entre nós e os outros.

Embora essa descrição se aplique a toda a espécie humana, a tradição masculina atribui às mulheres uma vocação especial para a inconstância. La Donna è Mobile, a conhecida ária de Verdi, diz tudo isso cantando: a mulher é volúvel como uma pena ao vento, muda seu tom e seu pensamento – e vá o homem confiar num coração assim tão inquieto...

Para contrabalançar (e corrigir) essa visão exagerada, nada melhor, a meu ver, que a versão grega do mito de Selene, a deusa da Lua. Desiludida do gênero masculino, esta jovem deusa não se interessava por homem algum e parecia conformada em viver eternamente solitária, contentando-se em servir apenas de inspiração para músicos e poetas.

Uma noite, porém, durante sua melancólica trajetória pelo céu deserto, ela percebeu (pois não era mulher?) que estava sendo acompanhada por um olhar que não conhecia, mais intenso e emocionado.

Era Endímion, o tímido e belo pastor da Tessália, que levava o rebanho para o alto do monte, todas as noites, a fim de poder vê-la mais de perto. Seu olhar sonhador abalou a frieza de Selene e a fez descer do firmamento diretamente para seus braços. Como uma história feliz, casaram e tiveram filhos.

Pouco a pouco, do alto do monte, ele, que era homem sensível, tinha começado a compreender o caprichoso ciclo lunar, que era um mistério para todos, e soube, como ninguém, adivinhar o ritmo de seus delicados movimentos pelo céu noturno. Ao entender Selene, Endímion tinha entendido a mulher, pois é disso que trata este belo mito: a perplexidade do homem diante da misteriosa complexidade da alma feminina.

Por isso, só posso me alegrar ao saber que na semana que vem estreia na HBO a série Mulher de Fases, em que nossa talentosíssima e queridíssima Claudinha Tajes, transmitindo diretamente das hostes femininas, vai nos fornecer sua visão alegre e bem-humorada desta rica potencialidade que a mulher tem de ser uma e muitas ao mesmo tempo.

sábado, 2 de abril de 2011


Ruth de Aquino

Cinco motivos para sentir vergonha

Há um novo nome na lista dos fugitivos mais procurados do Estado de São Paulo: o pedreiro Ananias dos Santos, de 27 anos, principal suspeito de um dos crimes mais tenebrosos de que o país ouviu falar. As vítimas são as irmãs Josely e Juliana, de 16 e 15 anos.

No caminho entre o ônibus escolar e a casa, encontraram um monstro. Se tiver sido mesmo Ananias, era um monstro conhecido delas e da polícia. Tinha saído da prisão numa folga de Páscoa, em 2009, e não voltara. Todos sabiam onde morava. Já era foragido antes. Mas ainda não tinha ficado famoso.

A delegada Sandra Vergal diz com simplicidade que, “pelos antecedentes dele, Ananias não podia ser contrariado em nada”. Por que nenhuma autoridade policial até agora fez um mea culpa? O preso sai pela porta da frente, não volta para a cela e, por suposta rejeição de uma das meninas, persegue e mata as irmãs a tiros?

Dói demais ver as fotos das adolescentes. Além de muito bonitas, eram conhecidas como educadas, estudiosas e apegadas à família. Ananias era fugitivo com endereço certo. Quem afinal matou as meninas da aprazível Cunha, uma localidade pacata e verde, que fez passeata de 3 mil por justiça? Somos ou não também culpados pela negligência de nosso sistema penitenciário?

A semana passada foi pródiga em constrangimentos. Em dezembro, listei nesta coluna dez razões para se indignar. Nos últimos dias, além do crime bárbaro de Cunha, deparei com mais quatro razões para me decepcionar com o ser humano público e privado.

- O vice-presidente José Alencar, herói no combate ao câncer, afetuoso no trato com as pessoas, dizia “não temer a morte, mas a desonra”. E, mesmo assim, foi incapaz de sequer conhecer sua suposta filha com uma enfermeira. Recusou-se a fazer exame de paternidade e chamou publicamente a mãe de Rosemary de Morais de prostituta: “Todo mundo que foi à zona um dia pode ser pai.

São milhões de casos”. No caso de Alencar, a atitude não combina com a biografia. Onde estava sua coragem? Encarou o câncer e 17 cirurgias, mas Rosemary não. Ela ganhou na Justiça o sobrenome Alencar.
Além do crime bárbaro de Cunha, a semana ofereceu quatro outros motivos para nosso constrangimento

- A atriz Cibele Dorsa usou sua depressão e seu suicídio para protagonizar um circo deprimente. O Twitter, a carta para a revista Caras, o vídeo montado para homenagear o noivo que também se matara dois meses antes. Nesse inacreditável mundo novo, a regra é se expor e ser seguido por milhares, mesmo no Além. Uma moça bonita, mãe de um casal de filhos, desperdiça a vida e dirige um roteiro multimídia para conseguir finalmente a fama após a morte. O suicídio perde o que lhe restava de privacidade, discrição, gravidade e pudor.

- O deputado Jair Bolsonaro também aproveitou a mídia para ser mais Bolsonaro do que nunca. Ofendeu negros quando só queria, segundo ele, ofender gays. Já falou barbaridades piores. Desta vez, conseguiu a repercussão desejada porque difamou pela televisão uma celebridade,

Preta Gil. Reafirmou a uma rádio que Preta “é promíscua” e que o pai da cantora, Gilberto Gil, “é outro que vive dando bitoquinha em homens”. Como Bolsonaro defende sua liberdade de expressão, eu também poderia escrever que ele não passa de um ignorante. Mas, como isso não é novidade, só pergunto como o deputado foi parar na Comissão de Direitos Humanos da Câmara.

- O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em visita a Buenos Aires, foi condecorado pela Faculdade de Jornalismo de La Plata por sua “defesa da comunicação popular”. Chávez tirou do ar uma TV e várias emissoras de rádio. Aprovou leis que tornaram crime as críticas pesadas ao governo.

Perseguiu oposicionistas. E ganhou um prêmio que é homenagem a um jornalista importante da Argentina, assassinado pelos militares, Rodolfo Walsh. O vexame internacional foi ainda maior pela coincidência: a anfitriã, a presidente Cristina Kirchner, é acusada de estar por trás dos sindicalistas que proibiram a circulação do jornal Clarín.

Como jornalista e ser humano, senti vergonha e impotência diante desses episódios e seus personagens. Nessas horas, a palavra não é suficiente.


02 de abril de 2011 | N° 16658
NILSON SOUZA


O casamento dos ogros

Que rolo deu o casamento dos fãs de Shrek em Garibaldi! Não era para tanto, certamente, mas como a gente dá um boi para não entrar numa discussão e todas as vaquinhas da Cow Parade para não sair, estamos debatendo até agora. Foi um desrespeito com a Santa Madre ou apenas uma brincadeira inocente dos noivos e de seus convidados?

E o padre mereceu aquela espargida pública do bispo? A propósito, um bispo paramentado com a sua Capa Magna e todos aqueles ornamentos medievais também não parece um personagem de conto de fadas?

Bah, gente, vamos nos divertir mais. Tudo bem que os noivinhos podiam ter deixado para realizar suas fantasias em casa, mas também não foi nenhum sacrilégio levar aquele bloco de falsos súditos para a igreja.

Não vejo muita diferença entre as túnicas de seda colorida dos trajes medievais e os nossos espartilhos modernos – ternos, gravatas, vestidos longos e salto alto. Acredito até que as primeiras eram mais confortáveis. O próprio vestido tradicional das noivas não deixa de ser uma bela fantasia.

O ser humano adora fantasiar. No fim do mês teremos o casamento do príncipe William, da Inglaterra, com sua namorada Kate Middleton, plebeia que, coincidentemente, trabalhava no negócio da família, uma empresa de acessórios para festas. Provavelmente ela já vendeu até fantasias de Shrek.

Pois bem, o príncipe e sua amada irão numa carruagem antiga até a Abadia de Westminster, uma catedral de estilo gótico que já foi palco de incontáveis casamentos e funerais, inclusive o da princesa Diana, mãe do noivo. Aposto que ninguém ficará escandalizado se, em meio ao espetáculo das bodas reais, aparecer algum convidado vestido com roupas medievais.

E o que isso tem a ver com os nossos príncipes de mentirinha? Tudo. O casamento é um momento de sonho para nobres e plebeus. Nem todos se sujeitam à formalidade, é verdade, mas aqueles que escolhem a cerimônia querem torná-la inesquecível, pois sabem que no dia seguinte – como na série cinematográfica do simpático ogro – o encanto pode acabar e a vida virar rotina.

Decididamente, estou ao lado dos imaginativos recém-casados de Garibaldi e do padre que admitiu a brincadeira.

E só posso desejar que o amor de Shrek e Fiona seja infinito enquanto dure.