segunda-feira, 26 de novembro de 2018


26 DE NOVEMBRO DE 2018
CELSO LOUREIRO CHAVES

UM VIOLÃO

Mais um álbum com músicas de Francisco Mignone, o compositor brasileiro do século passado. Vida longa e música chegando até os 1980, sempre no mesmo passinho da inspiração brasileira, das festas e das valsas. Agora mesmo, o novo álbum reúne as 12 Valsas Brasileiras em forma de estudos para violão, de 1970. Valsas tão raramente tocadas que o registro de agora é o primeiro. E, se não fosse o violonista Edelton Gloeden, talvez essas valsas permanecessem esquecidas para sempre.

As 12 valsas, por serem 12, caminham pelo dó-ré-mi-fá-sol-lá-si de sempre, mas com um tempero: são tonalidades menores, o que já faz com que o ouvinte esbarre na melancolia e na saudade. Como diz o próprio Edelton, são sonoridades escuras para o violão, prontas para explorar novos afetos. Vai longe o entusiasmo e a festa das feitas matinais. O terreno é mesmo o da música noturna, para não dizer... soturna.

Por volta dos 1970, a música de Mignone era considerada ultrapassada, boa de ser atacada. Até José Maria Neves, pesquisador extraordinário, deu uma derrapada ao falar sobre Mignone no seu livro sobre música brasileira. Ele diz algo como: "as soluções propostas por Mignone para a tensão entre forma e conteúdo não correspondem às preocupações dos dias de hoje e por isto mesmo perdem toda a sua força". Hoje, aqueles dias de hoje são ontem e surpreende que o compositor continuasse compondo apesar (ou por causa?) destes ataques.

A recuperação da música de Mignone, em álbuns e partituras, prova que às vezes a música é mais forte que a crítica. O registro das Valsas Brasileiras é assim. Edelton Gloeden fala na cumplicidade que o intérprete deve ter com o compositor, ainda mais registrando uma obra esquecida há décadas. Não se poderia encontrar violonista melhor para essa cumplicidade com o espírito de Mignone. Não há dificuldade técnica que Edelton não transforme em música, não há música que ele não recrie como se dele mesmo saíssem aquelas partituras.

É isso que a música brasileira de concerto merece. Tanto nela foi esquecido que cada memória recuperada é um mundo de sons à nossa espera.

CELSO LOUREIRO CHAVES


26 DE NOVEMBRO DE 2018

DAVID COIMBRA

Nas redes na segunda-feira

Não entendo essa gente que posta foto de cachorro nas redes sociais. Criança, tudo bem. Crianças são filhotes de Homo sapiens, a nossa sabida espécie. Mas, cachorro? E quase sempre são aqueles cachorrinhos de apartamento, pequenos, peludos, feios. Sei que as pessoas amam seus bichinhos de estimação, também tive vários, tive até uma codorna, que é tão feia quanto um cachorro de apartamento, e a amei e amei-os todos, mas não ficaria mostrando foto deles para outras pessoas. Vou contar uma verdade dura até para uma segunda-feira: ninguém se interessa pelos bichos de estimação dos outros. Ninguém.

A mesma coisa os pés. Por que as pessoas publicam fotos de seus próprios pés? É verdade que existem amantes de pés, inclusive já escrevi sobre o Tarado do Pé, que atuava solertemente na noite de Porto Alegre, gemendo entre artelhos, lambendo calcanhares, cheirando tornozelos, mas, em geral, essa não é a parte mais admirada do corpo humano. Ao contrário. É difícil você encontrar um pé formoso, sem calos e outras imperfeições típicas de um membro que passa o dia inteiro sustentando o nosso peso e roçando humildemente pelo chão.

Pés estranhos há em abundância. A Naomi Campbell, aquela modelo inglesa altiva como uma imperatriz, negra de pele lisa e reluzente de sair faísca, olhos amendoados e boca carnuda de bergamota poncã, você olha para a Naomi Campbell e chega a estremecer de medo, tão linda ela é. Mas seus pés ostentam joanetes do tamanho de bolas de pingue-pongue.

Uma vez, uma revista, não lembro se a Placar, a Realidade ou a Manchete, publicou uma matéria sobre o pé mais importante da história do Brasil: o pé do Pelé. Havia uma foto de página inteira, em cores, do pé do homem. Horrível. Mas, tudo bem, aquele pé marcou mais de 1,2 mil gols. Depois, a Xuxa, que namorou com o Pelé, disse que o pé dele era a coisa mais feia que vira na vida. Pelé respondeu:

- Se ela se lembra do meu pé, imagina do resto.

Nem precisava de resposta. O pé do Pelé é perfeito. Palmas para o pé do Pelé.

Outra foto que me intriga nas redes é a do elevador. As mulheres, sobretudo elas, entram num elevador, miram-se no espelho e pensam: "Tenho de me fotografar neste elevador e colocar no Instagram. As pessoas precisam ver que estou andando neste elevador. Olha só: que elevador!".

Por que, meu Deus?

Segunda-feira é bem dia de bater foto em elevador.

Não bastasse isso, alguns fazem efeitos especiais nas fotos e se colocam focinho e orelhas de cachorro. Sério, eles fazem isso.

E tem ainda aqueles que botam fotos fechadas deles mesmos, tipo 3 x 4. Você não está fazendo nada de especial, não está em nenhum lugar diferente, nem mesmo dentro de um elevador. A foto é apenas do seu rosto, nada mais. E você vai lá e publica para o mundo contemplar. Por que as pessoas quereriam ver sua cara? Se você fosse a Irina Shayk, aí, sim, tudo certo. Alguém vê uma foto da Irina Shayk, aqueles olhos verdes-mar, aquela boca lúbrica, aquele ar enigmático de mulher que faz maldades e diz:

- Ai. Só que você não é a Irina Shayk! Você é? aí vai outra verdade dura de segunda-feira? você. As redes. Às vezes, elas são um mistério. Da próxima vez que entrar em um elevador, vou tirar uma foto. Quero ver se é bom mesmo.

DAVID COIMBRA


26 DE NOVEMBRO DE 2018

EDUCAÇÃO


Aposta nas escolas comunitárias


PREFEITURA INVESTE EM PARCERIAS com instituições privadas, já responsáveis pela maior parte das vagas na Educação Infantil

A mudança começa pelo vocabulário. Cada vez que um interlocutor classifica uma escola como "conveniada" com a prefeitura de Porto Alegre, o secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Brito, cordialmente corrige:

- Conveniada, não. Escola da Rede Municipal Comunitária.

O esforço não é mero preciosismo. É uma das múltiplas formas com que a prefeitura tenta dar às instituições anteriormente conveniadas status de escolas municipais de fato, como hoje são as 43 escolas municipais de Educação Infantil (Emeis) e os 49 colégios de Ensino Fundamental, que a prefeitura passou a chamar de "escolas público-estatais".

O modelo das comunitárias, aplicado quase na sua totalidade na Educação Infantil, ganhou fôlego no governo Nelson Marchezan a partir do Marco Regulatório da Educação, decreto que regulamentou a aplicação no município da lei federal 13.019/2014, que disciplina parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil "em regime de mútua cooperação". A partir dele, a prefeitura chamou à mesa de negociação as 227 entidades com que o poder público tinha convênio, pelo qual repassava um valor por aluno na Educação Infantil. Cerca de 75% das vagas de Educação Infantil do município funcionam assim: são 21 mil "compradas" das antigas conveniadas e cerca de 6 mil nas Emeis.

Ao anunciar aumento no valor das bolsas de 30% para 2018 e mais 15% em 2019, a Smed estabeleceu exigências e firmou novos contratos com 218 delas, majoritariamente de dois anos. Com as que demandavam adaptações profundas (15), estabeleceu acordos de um ano e firmou termos de ajustamento de conduta (TACs).

Há outro ponto considerado positivo, ao menos para o governo municipal. Ao limitar sua participação nas escolas em um valor investido por vagas e cobrar adequações e resultados, a prefeitura se desonera de uma série de obrigações administrativas que vão de negociações com servidores públicos até a resolução de problemas de estrutura dos colégios. No modelo público-estatal, do encanamento do banheiro ao professor de matemática, as obrigações são do Executivo.

AUTONOMIA PARA RESOLVER PROBLEMAS DE ZELADORIA

A Smed afirma que, desde agosto, aumentou em média 135% o repasse por aluno às público-estatais. A intenção, conforme o secretário, é aproximar os dois modelos também pela outra via, dando mais recurso e independência para cada escola do município. Para o mesmo fim, desativará o setor de manutenção, diz Naves de Brito:

- O que acontecia antes: o repasse era mínimo e, quando o banheiro entupia, o diretor ligava para o setor de manutenção da Smed, que é pequeno, desaparelhado e ineficiente, para dizer o mínimo. Nossa ideia é que a secretaria repasse recursos ao conselho de cada escola e não precise se envolver em questões de zeladoria.

No caso de reformas maiores nos prédios, o secretário declara que a prefeitura negocia financiamento junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

CAUE FONSECA


26 DE NOVEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

UM ALENTO NA SEGURANÇA

O número de assassinatos continua elevado demais em todo o Estado e os gaúchos seguem às voltas com uma rotina assustadora de chacinas, tiroteios e mortes. Ainda assim, o simples fato de o total de vítimas fatais da violência ter diminuído de janeiro a outubro nas 10 maiores cidades da Grande Porto Alegre, incluindo a Capital, significa um alento para a população, que hoje não se sente protegida nem dentro de casa. Depois do descontrole, há sinais de que as forças de segurança pública, finalmente, encontraram uma brecha para conter a expansão da criminalidade.

Balanços de curto prazo e avanços localizados não podem ser vistos como tendências, nem se prestar para comemorações antecipadas. 

A cautela vale particularmente no caso do crime organizado, que tem por estratégia justamente o desafio constante à capacidade de resposta por parte das forças de segurança pública. E as polícias, como sabem a sociedade e, particularmente, os criminosos, têm sua atuação limitada pela falta de recursos humanos e financeiros, agravada pela intensificação da crise do setor público. Até por isso, é necessário, agora, que as alternativas bemsucedidas possam ser replicadas em outras grandes cidades, nas quais os assassinatos continuam em tendência de alta. 

Entre os casos críticos, estão cidades serranas como Caxias do Sul e Bento Gonçalves, além de Rio Grande, na Região Sul. Preocupa também a situação de pequenos municípios desprotegidos do Interior para os quais o crime organizado vem dando sinais claros de estar migrando. A missão das autoridades é facilitada pelo fato de a fórmula bem-sucedida em municípios populosos da Região Metropolitana ser simples e óbvia. 

As prioridades incluem prisão de assassinos, intensificação do policiamento ostensivo pela Brigada Militar e combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro com o sequestro de bens das facções. Fica evidente que o isolamento dos líderes do crime, reduzindo as disputas por território do tráfico, foi decisivo. E a esse esforço se somam ações da própria sociedade, como a liderada pelo Instituto Cultural Floresta, que articula doações de equipamentos para as polícias. 

Os resultados promissores registrados pela Secretaria da Segurança Pública em alguns municípios, na comparação com o período anterior, tornam evidente que o simples enfraquecimento do tráfico, deixando-o sem recursos e sem mão de obra, já significa um ganho importante para a população. A sociedadenão quer soluções mágicas, mas, sim, que o poder público cumpra com o seu dever de deixá-la viver em paz e com segurança.


26 DE NOVEMBRO DE 2018
ECONOMIA

Valor das marcas é tema de debate

ASSUNTO SERÁ DISCUTIDO na 4ª edição do AHEAD!, evento promovido amanhã pelo Grupo RBS
Novas mídias, informações e produtos ao alcance de um toque, negócios globais e consumidores digitais são apenas alguns dos elementos que compõem, atualmente, o panorama em que as marcas estão inseridas. Em um mundo regido pelo imediatismo, construir reputação, manter um relacionamento duradouro com o consumidor e agregar valor à marca se transformaram em novos e poderosos desafios para empresários, comunicadores e gestores de marketing.

Pesquisa recente realizada pela PriceWaterhouseCoopers (PwC) mostra que, entre os novos consumidores digitais, as redes sociais são a principal fonte de inspiração na hora de escolher um produto ou uma marca, seguidas por sites de comparação de preços.

Frente a essas transformações nos hábitos de consumo, encontrar novos formatos para o desenvolvimento de uma marca a partir de sua reputação e do relacionamento com os consumidores é o tema central da quarta edição do Ahead!, programa de debates do Grupo RBS, dirigido ao mercado publicitário. Participam da conversa Maria Fernanda Albuquerque, diretora de marketing da Skol, e Danielle Bibas, responsável pela estratégia digital e pelas campanhas globais da Avon.

- Hoje, os consumidores se tornaram mais exigentes. Eles não aceitam mais vendas forçadas. Não há espaço no mercado para empresas que só pensam em oferecer determinado produto ou se comunicar de forma unilateral. É preciso passar conhecimento, gerar conteúdo relevante e dialogar com o consumidor - defende Danielle, uma das primeiras brasileiras a assumir uma posição global dentro da gigante de cosméticos e recentemente reconhecida como Women to Watch Brasil.

É o que defende também o professor de branding da ESPM-SUL Genaro Galli. Segundo o especialista, trabalhar conteúdos relevantes, engajar o público e fazer com que ele alimente essa cadeia, de forma bilateral, é fundamental. Para tal, diz o professor, é necessário ter coerência entre as ações digitais, o posicionamento da marca e o propósito dela.

A marca, argumenta Galli, deve ter algo a dizer ao mercado, ter propósito claro, com discurso conectado aos movimentos contemporâneos.

- Existem demandas quantitativas imediatas, que não podem ser deixadas de lado, mas é preciso sempre trabalhar a construção da marca visando também ao médio e ao longo prazo, porque é isso que vai gerar receita, que vai provocar engajamento e pertencimento do público em relação à marca.

Em entrevista à colunista Marta Sfredo, publicada na quinta-feira (22), Maria Fernanda contou que, na Ambev, o posicionamento se dá por meio de valores e do cuidado para que os mais de 28 rótulos de cerveja não se "esbarrem". Nos últimos anos, a empresa passou por mudanças e se direcionou para a diversidade.

- A Skol sempre foi de quebrar regra, provocar o tradicional, o padrão. Hoje, são importantes para a sociedade questões que a Skol levantou, como a de gênero. Foi bacana abraçar esses pontos e fazer com que eles ficassem ainda maiores - afirmou a diretora de marketing.

26 DE NOVEMBRO DE 2018
POLÍTICA +

EDUCAÇÃO, A SECRETARIA MAIS DIFÍCIL DE PREENCHER

A decisão de Eduardo Leite de separar Educação, Saúde e Fazenda das secretarias que entrarão na negociação com os partidos parte da premissa de que essas áreas precisam ficar protegidas das injunções políticas. Para a Fazenda, Leite fez a chamada busca ativa, depois de definir o perfil desejado.O escolhido, Marco Aurelio Santos Cardoso, é funcionário de carreira do BNDES e tem vasto conhecimento da área de finanças públicas. Pelo tamanho da crise que o Estado enfrenta, o senso comum diz que é o cargo mais difícil de preencher, mas não é. Desafio mesmo é encontrar um secretário para a Educação,a pasta mais relevante para o futuro.

O futuro governador busca alguém que pense a educação de forma inovadora, comande uma revolução para adequar as escolas ao mundo digital e também seja bom gestor. Se fosse uma empresa, a Secretaria da Educação estaria entre as maiores em número de empregados.

Diferentemente da Secretaria da Fazenda, que trabalha com uma equipe bem remunerada, organizada em carreiras modernizadas nos últimos anos, na Educação o quadro é desolador. Boa parte da energia do secretário é consumida na administração das tensas relações com o Cpers, um sindicato forte que resiste a qualquer tentativa de mudar o plano de carreira dos anos 1970. Por se tratar de um plano em que o salário só melhora quando o professor se aproxima da aposentadoria, a carreira no magistério não consegue atrair os melhores alunos como ocorre nos países desenvolvidos. Não faltam candidatos nos concursos, mas a procura por cursos de formação de professores nas universidades é incomparavelmente menor do que para outras profissões.

A pauta salarial, que motivou incontáveis greves desde o governo de Pedro Simon (1987-1990), ganhou um apêndice desde a criação do piso nacional, que o Estado não paga como básico da carreira. Nenhum professor recebe menos do que o piso, mas o entendimento do Cpers é de que ele deve ser o básico sobre o qual incidem todas as vantagens da carreira, incluindo os adicionais de tempo de serviço.

O embate salarial trava o debate sobre a qualidade do ensino oferecido a crianças e adolescentes. E é esse o grande desafio de quem for escolhido para comandar a Educação: melhorar os índices de desempenho dos alunos, que estão abaixo de Estados mais pobres do que o Rio Grande do Sul. Quem aceitar a tarefa de gerir a Educação terá de ter humildade para buscar exemplos de sucesso dentro e fora do Brasil.

A ideia de que se pode resolver os problemas da educação no Estado comprando vagas em instituições particulares é fantasiosa. O economista Aod Cunha faz três ressalvas: 1. O desempenho das escolas privadas está distante do desejado. 2. Não há escala. Nas grandes cidades, faltariam vagas, e, em centenas de municípios, só existem escolas públicas. 3. Os países que conseguiram um salto de qualidade na educação o fizeram melhorando a escola pública.

ROSANE DE OLIVEIRA


26 DE NOVEMBRO DE 2018

CLÓVIS MALTA

Por que porto "alegre"?

Não temos mais dúvida de que Porto Alegre deixou de ser um porto de verdade há muito tempo. Que pena, mas deixou. Fazer o quê? Agora, diga você, do fundo daquilo que parece ser o mais fundo de seu ser: continua alegre?

Pensamos nisso quando miramos da orla o esplendor dessa espécie de mar doce com suas águas barrentas do qual há quase três séculos emergiram os tais casais açorianos. Seria coisa breve, mas... duas décadas depois, ainda aguardavam pela documentação de terras para prosseguir até as Missões.

Diante da imensidão de águas, colinas, matas nativas, ilhas, pássaros e esses céus - que céus -, o que mais poderiam ter feito os ilhéus portugueses? Foram povoando o lugarejo com seus filhos. Nascemos, assim, do descaso e da enganação, mas acharam o porto alegre. E é. Continua sendo. Não porto. Não mais. Mas alegre.

Então, mano, não tem que ficar na tristeza.

Porto-alegrenses, entre os quais os desgarrados para os quais "o que vale é o sonho", com a eterna gratidão a Mário Barbará, os que apenas estão de visita, todos vocês: tem muita coisa alegre nessa "Cidadezinha... Tão pequenina/ Que toda cabe num só olhar", como a pintou em palavras Mario Quintana. E vai além da música, da poesia. Tem muita, mas tanta coisa, que faltaria espaço na chaminé do Gasômetro, num caderno de páginas incontáveis, numa folha dobrada infinitas vezes em direção às estrelas para enumerá-las.

Por trás do abandono, a alegria transborda entre os que vendem com entusiasmo o seu peixe e a eterna bomba gigante de sorvete no Mercado Público, síntese e alma da província. A sensação de júbilo se movimenta no pedal dos ciclistas, ocupando todos os espaços.

Está também nesses grupos que penduram uma caixa de som no poste e assam churrasco na calçada, está no flow das ruas das batalhas de MCs que levam as torcidas ao êxtase, está nos saraus com champanhe, naquela surpresa com a qual recebemos abraço grátis, nos barcos e ônibus lotados de turistas, nas limusines de festa-ostentação, nuns bairros em que as pessoas ganham pouco e custam a chegar. Ainda assim, fazem pagode, tomam cerveja, fazem planos, tomam porrada. E, no outro dia, despertam com os mesmos pássaros das áreas ditas nobres, que brindam democraticamente a todos com seu canto.

Porto Alegre já foi chamada de tudo que é jeito, como esses pontos de comércio nos quais nada dá certo. Não é por inércia que continuamos nos referindo à cidade com esse nome. Seguimos vendo-a como um imenso cais. Nela, ancoramos nossa esperança por bons dias.

Temos motivos aos montes, como os que nos cercam, tão lindos, para considerarmos feliz a nossa Porto Alegre. E os reforçamos ao repetir os dois termos como mantra, até nos sentirmos tomados por seu significado, sob esses céus - que baitas céus.

Há infinitas razões para percebermos contentamento em volta e dentro de nós mesmos. Você deve ter as suas. Descreve-as. Repita-as em voz alta. Espalhe-as como se faz com essas bandeirinhas de oração tremulando ao vento. Deseje que a alegria possa beneficiar a todos. Persista, aguarde um tempo e veja o que acontece.

CLÓVIS MALTA

sábado, 24 de novembro de 2018


24 DE NOVEMBRO DE 2018
LYA LUFT

Uma história de horror


Sou fissurada em notícias. As do meu país e tudo mais que aparecer e eu puder entender. Às vezes, preferiria não entender. Outras vezes, mudo de canal para não onerar ainda mais minha alma, que não anda lá essas coisas. Mas sou, sim, curiosa, interessada, assombrada, perplexa e às vezes maravilhada com as coisas do mundo. As Coisas Humanas, provável título de um novo livro meu, que talvez apareça em meados de 2019. Mas eu falo de notícias. Guerras, carnificinas, incêndios, terremotos, inundações, tiroteios, toda a trama que nos envolve e persegue e empurra há milhões de anos. Indignação, encanto, pasmo, se alternam em quem assiste. (E insiste.)

Então, noticioso correndo na tela, mas eu lendo e abstraindo de algum modo o filme das coisas humanas que passa na minha frente - mãe de família e trabalhando em escritório em casa, cedo aprendi a me concentrar, mesmo com o chamado rumor da família por perto -, levanto os olhos e foco um rosto de criança. Todos os traços de um ainda-quase-bebê, pode ter quatro anos, pouco menos ou mais. Linda menina, olhos enormes, melancólicos e perplexos. Ela não entende o que acontece ao seu redor, no campo de refugiados do Afeganistão, tendas espalhadas no areal sem um capim nem um poço à vista, só areia, vento, secura e rostos como máscaras de severidade ou dor. Nas crianças, ainda sombras de sorriso ou traquinices.

A menininha sentada, enfeitada com colares e brincos, ao lado da mãe, de um velho com turbante torto e barba com ar de suja e um menino - de 10 anos, fico sabendo depois. Até a curtida e experiente jornalista que os entrevistava parecia não encontrar palavras, enquanto eu, aqui do outro lado do mundo, não encontrava nem pensamentos claros. Resumo da tragédia: a mãe, cujo marido tinha sido morto numa escaramuça semanas atrás, viera ao acampamento com três ou quatro filhos, e a linda menininha sendo a menor. Não tinham mais o que comer, estavam famintos, acabariam morrendo ali mesmo.

Então, a mãe relata com ar severo mas decidido, sem encarar a entrevistadora: ela tinha resolvido vender a menina. Áquila, ainda com as bochechinhas inocentes de quase-bebê, tem seis anos. A mãe, magérrima e tisnada de muito sol e sofrimento, diz com simplicidade: "Ela ainda não entendeu, porque é muito pequena, mas foi vendida para esse senhor aí". O velho ao lado, turbante torto, lacunas entre os dentes da frente, se coça com vago desconforto e diz que sim, que ali não é grande coisa, que afinal a família morria de fome, e que ele vai pagar, em três anos, provavelmente, os US$ 3 mil pelos quais adquiriu a criança.

A mãe, remexendo-se, revela meio incomodada que até agora recebeu apenas US$ 70. A criança olha, pasmada, mãozinhas ainda de bebê postas no colo, imagem da inocência diante de um mundo brutal. A jornalista se levanta, a câmera é recolhida - eu desligo a TV e fico olhando o verde do parque lá fora, querendo ter, amar, abraçar, alegrar e cuidar, aquela menininha chamada Áquila pela qual até agora a mãe recebeu US$ 70, talvez mais do que os 30 dinheiros trocados por Cristo. Mudou o mundo, ou só ficou mais pesado porque dentro da nossa sala?

LYA LUFT

24 DE NOVEMBRO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Outra pessoa em casa

Volta e meia deparo com estatísticas de pessoas que moram sozinhas. Não lembro os números exatos, mas sei que são elevados. Jovens que deixaram suas cidades para estudar, idosos que viram a família seguir o rumo sem eles, homens e mulheres que se divorciaram, que enviuvaram ou que nunca se casaram, enfim, gente que, por escolha ou contingência, hoje habita só. Talvez um cão ou gato atenue a ausência de companhia, mas o fato é que não há outra pessoa na casa.

O rádio acaba virando a outra pessoa na casa.

Essa frase impactante eu pincei do livro da Katia Suman, que acaba de lançar as memórias da Ipanema FM, revelando os bastidores do estúdio em que trabalhou por tantos anos e nos ajudando a entender como uma rádio com equipamento precário, poucos funcionários e muito improviso conseguiu, de 1984 a 1997, conquistar ouvintes fiéis que interagiam diretamente com os locutores e que se sentiam representados por aquela bagunça pulsante, criativa, descolada. Uma turma independente que colocava no ar a nova cena musical e cultural do extremo sul do país. Fez história, logo, merece ser contada.

O rádio como meio de comunicação já teve sua extinção prevista "n" vezes, mas seu obituário continua adiado. Veio a tevê, veio o computador, vieram os home theaters, os celulares inteligentes, e que fim levou o rádio? Segue firme e forte no meio rural e urbano, no interior e na capital, tocando música, dando as horas, noticiando, informando, transmitindo futebol, debates, fazendo humor, promovendo encontros - sendo a outra pessoa dentro da casa enquanto lavamos a louça ou tomamos banho.

Sem imagem, o rádio se torna "alguém" por meio de vozes que a gente reconhece pelo timbre. É presença suficiente. Na cozinha, no pátio, na garagem, no banheiro, no quarto, na sala, um homem ou mulher invisível nos faz rir, nos faz refletir, nos comove, nos tira pra dançar. É diferente da televisão, que entretém com figurino, maquiagem e texto ensaiado, entregando uma fantasia. Rádio é emoção genuína, espontânea, de verdade. O exemplo mais célebre é o de Orson Welles com seu programa A Guerra dos Mundos, que 80 anos atrás, na véspera do Halloween de 1938, fez mais de 1 milhão de pessoas acreditarem que os Estados Unidos estavam realmente sendo invadidos por marcianos, instaurando o pânico. Por sintonizarem a transmissão no meio, muitos ouvintes não escutaram a abertura avisando que se tratava de radioteatro - e surtaram. Dê um Google para recordar. O episódio firmou para sempre a potência do veículo.

Como diz a Katia em seu livro: "por mais que avance a tecnologia, humanos continuarão falando e escutando". É o que basta. Enquanto existir rádio, a solidão terá um adversário à altura.

MARTHA MEDEIROS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
PIANGERS

Mal-educados

"É por isso que essas crianças de hoje em dia não têm limites", alguém grita em algum lugar, normalmente sem que ninguém lhe peça a opinião, o que prova a falta de limites dele mesmo. "Meu pai me batia e olhem pra mim, sou uma boa pessoa!", insiste ele. Pessoal adora dizer que as crianças de hoje em dia são mal-educadas. Eu pergunto: e os adultos? Já deu uma olhada no trânsito? Já viu uma fila de Black Friday? Já percebeu como falam alto ao telefone? Como estacionam em vaga de deficientes? Como não devolvem troco a mais?

"Eu devolvo!", dirá meu leitor imaginário. Pois aprendeu com seu pai explicando, não dando um tapa na sua cara. O argumento pró tapa é sempre o mesmo: "Meu pai me batia e aprendi". Você não aprendeu por causa da palmada. Você aprendeu APESAR da palmada. A criança que apanha vai ter que escoar o tapa em alguém, no colega da escola, no irmão mais novo, em alguém mais tarde. A violência fica guardada, revoltada, pra estourar lá na frente em algum episódio. Vai voltar em tapas no próprio filho, na esposa, em um acidente de trânsito, em uma briga no estádio. Somos um país bastante violento - violento demais com as crianças.

Sou a favor de nos inspirarmos em outra técnica que os antigos praticavam, mas que está totalmente fora de uso hoje em dia: conversa. É muito interessante como a conversa explica as coisas, ajuda a criar conexão, dá entendimento. Os leitores de mais idade lembrarão de uma época em que os pais conversavam com os filhos, exercitando a capacidade de troca. Está tão em desuso, a conversa. Toda a família no celular, pais que não têm contato legítimo com os filhos não tem autoridade.

Educar dá trabalho, e esta geração de crianças não é pior do que nenhuma outra. Ela tem potencial pra ser a melhor: afinal, temos mais informação, mais pesquisas científicas, mais boas práticas para nos inspirar. Mas temos menos tempo. Estamos sempre correndo. Queremos resolver todas as questões com uma fórmula mágica, imediata. "Toma o tablet e fica quieto". "Toma um tapa e não faz mais isso". Visito escolas públicas e particulares, e todas as crianças pedem só uma coisa: "Olha, tio!". Alguns minutos de atenção genuína e ficam calmos, felizes, agradecidos.

Se você encontrar uma criança mal-educada por aí, não é por falta de palmada. É por falta de atenção.

PIANGERS


24 DE NOVEMBRO DE 2018
CARPINEJAR

Prontuário de meu pai

Meu pai, 79 anos, estava com pressão alta e o levei para a emergência do hospital. Ele foi conduzido para a enfermaria e fiquei com o seu celular e a sua carteira. Na doença, não existe posses. Era o seu responsável pela primeira vez na vida. Precisava preencher o prontuário médico. A atendente me alcançou a folha alertando que se tratava de perguntas simples. Peguei a caneta e mordi a tampa, em vez de deslizar a tinta na página.

- Biotipo sanguíneo?

Eu não sabia. - Alergia a medicação? Eu não sabia.

- Já teve sarampo, caxumba, catapora?

Eu não sabia. - Realizou alguma cirurgia?

Eu não sabia. - Vem usando medicação?

Eu não sabia. Vi que eu não conhecia o meu pai. Ele que me conhecia de cor e teria facilidade em preencher qualquer ficha a meu respeito.

Mesmo possuindo quatro décadas e meia de oportunidades, o pai surgia como um desconhecido íntimo. Um anônimo. Eu não me esforcei em descobrir quem me cuidava durante todo esse tempo. Nossa relação foi uma via de mão única.

Terminei reprovado no teste de filho. Deixei o teste em branco, para o meu constrangimento. A atendente tentou disfarçar o desconforto: "Depois perguntamos para ele".

O prontuário médico tornou-se o meu obituário filial. Eu me dei conta de que nunca me preocupei em desvendar quem habitava a função "pai", em determinar as suas escolhas, em revelar a pessoa atrás da roupagem familiar.

Meu pai veio com uma encomenda pronta quando nasci, e jamais desfiz o embrulho para buscar o que havia dentro. Não desfrutava de condições de responder nada por ele, pois o reconhecia como eterno provedor, uma fortaleza inexpugnável, onde me socorria em caso de necessidade. Só eu pedia ajuda, não ajudava. Só eu cobrava afeto, não devolvia. Só eu esperava recompensas, não observava também a sua carência e sua fragilidade.

Não questionei o que ele viveu antes de mim. Não sabia se ele teve cachorro, qual o nome, se ele sofreu com a perda do mascote, se sofria castigo na infância, qual o seu melhor amigo, se dançava nas festas da escola ou permanecia encostado na parede, se nadava, se andava de bicicleta, qual a carreira que sonhou, qual o seu pior trauma, qual a sua maior felicidade, se içou pandorga, se pescou, se participou de acampamento, com o que brincava, se jogava futebol, qual a sua posição, se terminava como goleiro por não fazer gol, se dividia o quarto com os irmãos, com qual idade começou a ler e a escrever.

Eu simplesmente me conformei em ser o seu filho, jamais fui seu amigo.

CARPINEJAR


24 DE NOVEMBRO DE 2018
ENTREVISTA

"Marcas precisam e devem se posicionar"

A vice-presidente de Marcas, Comunicação e Conteúdo da Avon, Danielle Ribas, conta como a empresa tornou a diversidade uma de suas missões

Aos 45 anos, a brasileira Danielle Bibas está à frente da estratégia digital e das campanhas globais da Avon, uma das gigantes de cosméticos do mundo. E seu trabalho vem repercutindo por aí: a marca se destaca quando o assunto é abordar diversidade e representatividade em seus produtos. Com forte atuação nas redes sociais, a Avon está entre as pioneiras no Brasil a colocar trans e drag queens para estrelar campanhas. Mulheres negras, gordas, tatuadas, com cabelos curtos e dos mais diferentes tipos e estilos são regra em vídeos e fotos, e não exceção. 

No ano passado, o documentário Repense o Elogio, dirigido por Estela Renner e produzido em parceria com a marca, gerou debate na internet a ideia era refletir sobre a diferença no tratamento de meninos e meninas. A seguir, confira um papo com Danielle sobre a responsabilidade social das marcas, a necessidade de um discurso inclusivo para atingir diferentes públicos e como isso ajuda a construir uma sociedade mais igualitária e tolerante. A vice-presidente global de Marcas, Comunicação e Conteúdo (CCO) da Avon participa da quarta edição do AHEAD!, programa de debates do Grupo RBS, dirigido ao mercado publicitário, que será realizado no dia 27 de novembro.

A importância da diversidade e da representatividade está no centro do debate na última década. Como você avalia o impacto desses discursos nas marcas? Foi necessária uma mudança de perspectiva para criar campanhas que não reforçassem padrões estéticos?

Para nós, é importante que pessoas diversas ocupem espaço na publicidade, em grandes companhias e tenham visibilidade. As grandes corporações têm, sim, um papel muito importante na mudança da sociedade. Refletir a diversidade na comunicação externa é dar voz e representatividade, é ser consciente e responsável. E por parte do público, ver-se representado é se sentir respeitado. Por outro lado, praticar internamente o que se comunica é essencial, e nós fazemos isso.

Existe uma identificação maior com o discurso da marca? É essencial se "posicionar"?

É importante que a marca tenha um discurso condizente com o que prega, com a sua história. Não se trata só do modo como você comunica um produto. É preciso dar sentido para a beleza, pois é um ato social. Vivemos um momento-chave em que a transparência parou de ser um diferencial para as marcas e passou a ser pré-requisito para sua sobrevivência. Nesse contexto, a ação precisa ser maior do que o discurso. Mais do que um posicionamento, filme de TV ou ativações, o envolvimento do consumidor com a marca vem de ações concretas e verdadeiras que fazem sentido pras duas partes. A Avon tem sido exemplo em campanhas que saem do lugar-comum e atingem mulheres de todos os tipos, além de abrir espaço para as minorias. A marca se posiciona na luta contra a homofobia, o machismo e o racismo.

A Avon está entre as pioneiras no Brasil a colocar mulheres trans e drag queens para estrelar campanhas. Como foi a receptividade do público?

Com a evolução da conversa entre marca e pessoas nas redes sociais, as empresas estão cada vez mais expostas e propensas a ser alvo de críticas, elogios e comentários. Entendemos que as marcas precisam e devem se posicionar mesmo enfrentando riscos como o de ser alvo de resistência e críticas, não dá para agradar a todo mundo. Ao mesmo tempo, notamos que as pessoas têm investido cada vez mais em experiências em vez de focar apenas no produto, elas querem se conectar com propósitos e causas da marca, e levamos isso em conta cada vez que desenvolvemos uma nova iniciativa. Nós acreditamos em uma abordagem publicitária mais inclusiva e menos estereotipada e que, contemplar a diversidade na comunicação não é mais um diferencial e, sim, uma premissa básica para qualquer empresa em qualquer segmento.

O documentário Repense o Elogio teve grande repercussão ao tratar de como as construções de gênero se dão desde a infância e são reforçadas pelos adultos. Como o documentário ajuda a trazer a provocar a discussão sobre esse tema e a construir uma sociedade mais igualitária?

Como ponto de partida (do documentário), foi conduzida uma pesquisa online para checar quais adjetivos eram os mais lembrados na hora de elogiar cada um dos sexos. Quase 80% das palavras utilizadas pelos adultos para elogiar meninas estão relacionadas à aparência, como "linda", "bonita", "princesa". Já para os meninos, 70% referem-se a habilidades, como "esperto", "inteligente", "corajoso". A iniciativa recebeu muitos elogios e levou um prêmio na categoria Branded Content do Effie Awards Brasil neste ano. Mas também fomos alvo de muitas críticas de pessoas que consideraram a campanha contaminada do que determinada parte da sociedade considera "ideologia de gênero". Nós respeitamos todas as opiniões e entendemos que nem sempre vamos acertar, mas consideramos importante arriscar para levantar debates importantes para construir uma sociedade mais igualitária.

NATHÁLIA CARAPEÇOS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA


Santiago Uribe Rocha é porta-voz de uma das experiências mais bem-sucedidas da América Latina recente. Natural de Medellín, na Colômbia, ele participou da transformação que elevou de patamar a segunda cidade mais populosa de seu país - com mais de 2 milhões de habitantes. Em duas décadas, deixou de ser a mais violenta do mundo, tornando-se referência em inovação. Após passar quase uma década entre a África do Sul, onde trabalhou com Nelson Mandela, e a Colômbia, desde 2014 ele chefia o Escritório de Resiliência de Medellín, uma iniciativa da Fundação Rockefeller que conta com o apoio da ONU para investir em uma rede de cidades selecionadas - Porto Alegre entre elas - traçando estratégias

para enfrentar adversidades. Neste sábado, o antropólogo estará em Porto Alegre para palestrar no Festival da Transformação - FT18, promovido pela ADVB/RS (informações em ft.poa.br).

COMO SE DEU A MUDANÇA RADICAL DE MEDELLÍN?

Quando éramos a cidade mais violenta do mundo, com índices de homicídios de quase 391 para cada 100 mil habitantes, quase todos jovens em sua idade mais produtiva, nomeamos uma ministra conselheira para assuntos de paz. Sabíamos que o governo nacional não tinha recursos nem capacidade humana para resolver os problemas, e que não se podia mais pensar a cidade sem os cidadãos como parte do planejamento estratégico. Como ponto de partida, implantamos uma dinâmica de fóruns para discutir o futuro de Medellín. Fomos de bairro em bairro perguntando sobre qual era a cidade que nós, medellinenses, queríamos. Foram cerca de quatro anos, o que resultou em um documento com um planejamento para ser executado entre 1995 e 2015. O maior aprendizado, naquele momento, foi que o problema em si não era a violência, mas que era ela parte de um problema maior, que era a desigualdade, e que o que teríamos de resolver eram as diferentes manifestações de desigualdade como um problema estrutural: a carência de espaços públicos, de educação, de saúde, de centros comunitários.

COMO FORAM FEITOS OS INVESTIMENTOS?

Acredito que o documento elaborado na época foi uma espécie de coluna vertebral que ajudou a cidade a manter um planejamento de longo prazo. Quando Medellín entendeu que tinha de ter um enfoque diferente, não em força, mas em inclusão social, tivemos de priorizar onde investir. No começo dos anos 2000, começamos a usar os indicadores da ONU para identificar as regiões com mais necessidades, com os índices mais baixos de desenvolvimento humano. Em 2003, começamos a executar uma política pública, os chamados Planos Urbanos Integrais, que direcionavam os investimentos para essas regiões. Fizemos intervenções onde as pessoas nunca tinham tido acesso a serviços. Levamos bibliotecas públicas, centros culturais, colégios, parques e corredores estratégicos de renovação comercial a esses lugares.

COMO O GOVERNO SE APROXIMOU DAS COMUNIDADES?

Quando nomeamos a ministra conselheira para a paz, em 1991, o nome de uma mulher era estratégico. Acredito que as mulheres estão mais capacitadas em termos de resolução de conflitos do que nós, os homens. Outra coisa foi que nomeamos Maria Ema Gonzalez, uma comunicadora social. Ela percebeu que nossa maior necessidade era comunicativa: ouvir de maneira estratégica pessoas que nunca tinham sido ouvidas no processo de planejamento. Acredito que desenvolvemos uma das estratégias sociais de escuta sistemática mais importantes que já houve no país. Ouvir o outro foi inovador e sui generis para Medellín. Vocês levaram isso a níveis até mais avançados, com o Orçamento Participativo (OP).

A DESIGUALDADE SOCIAL É UM PROBLEMA COMUM A CIDADES BRASILEIRAS. QUAL É O PAPEL DO ESTADO NA PROMOÇÃO DE UMA SOCIEDADE MAIS IGUALITÁRIA?

É ser uma plataforma que permita, a partir transformações econômica, social e educativa, a inclusão social. Mas o problema de desigualdade e da segregação é da sociedade como um todo. Não adianta que os entes públicos foquem esforços enormes para tratar da desigualdade se nós, como sociedade, não atacarmos isso. Sempre me perguntam qual vai ser, no futuro, o indicativo de que Medellín atingiu a integração econômica e social - porque hoje somos uma cidade dividida em duas, uma no sul, que está bem, e uma no norte, com menos privilégios e serviços. Digo que quando uma menina do sul disser que vai na casa do namorado que mora na Comuna 13 (bairro com histórico de violência) e ninguém se assustar, termos o indicador de inclusão social. Teremos rompido barreiras. É preciso uma transformação cultural. O poder público tem de ser plataforma para isso.

MEDELLÍN DIRECIONOU RECURSOS PÚBLICOS PARA COMUNIDADES CARENTES, MELHORANDO INFRAESTRUTURA, TRANSPORTE E ACESSO À EDUCAÇÃO NESSAS REGIÕES. EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA, COMO É POSSÍVEL FAZER ESSES INVESTIMENTOS?

Uma das primeiras coisas que temos de entender é que, quando Medellín começou a transformação, não era uma cidade rica. Estava em uma crise profunda, econômica inclusive. O que deu origem à grande transformação foi construir, com diálogo social, uma plataforma de planejamento para o futuro da cidade. Os momentos de crise são os mais apropriados para construir esse diálogo e, a partir dele, tomar as decisões para desenvolver a transformação. Não é porque se tem crise que se deve perder a esperança. Se deixamos passar a crise, deixamos passar uma grande oportunidade.

O PRINCIPAL PROBLEMA DE MEDELLÍN, 20 ANOS ATRÁS, ERA O ALTO ÍNDICE DE HOMICÍDIOS...

Essa era uma das manifestações do problema. Temos uma sociedade muito parecida com a de vocês (brasileiros), com herança colonial, arraigada em uma hierarquia social de classe, com uma segregação socioeconômica e espacial. Temos de empenhar as sociedades latino-americanas em busca da redução da desigualdade. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 42 estão na América Latina. Infelizmente, Porto Alegre faz parte dessa lista (ocupa a 39ª posição). Todas têm indicadores sociais opressores. A violência não é outra coisa se não uma manifestação desse problema maior.

QUAL É O PRINCIPAL DESAFIO DE MEDELLÍN ATUALMENTE?

Reduzir a desigualdade social. É importantíssimo dar continuidade às políticas públicas. Porque, com as mudanças nas administrações, sempre há risco que parem. Em todo o mundo é assim. Infelizmente estamos tendo líderes políticos que querem o poder pelo poder, e o serviço público requer uma vocação de entrega pela cidadania. Precisamos de líderes que entendam que devem chegar ao poder para serem servidores públicos.

COMO A CIDADE TRATA AS QUESTÕES DE SEGURANÇA?

Hoje temos um enfoque diferente da linha que se vinha levando durante vários anos. É mais tradicional, com o uso da força. Sou um dos partidários de que o tema da segurança seja tratado com enfoque de prevenção. Abrir diálogo, dar oportunidade de inclusão. O uso da força deveria ter um papel cada vez menos preponderante. A segurança por meio da força legitima a violência. Pessoalmente, acredito que a prevenção é o caminho mais adequado. Mas, entre os políticos de hoje, há quem acredite que se tenha de voltar aos meios tradicionais. Os indicadores mostram que dá menos resultado e toma muito tempo.

NO ANO PASSADO, OCORREU UMA INTERVENÇÃO MILITAR NO RIO DE JANEIRO, COM O OBJETIVO DE REDUZIR A CRIMINALIDADE. O QUE SE VIU FOI UM AUMENTO NOS INDICADORES DE LETALIDADE VIOLENTA, COM MAIS DE 500 MORTES, E UM RECORDE NO NÚMERO DE HOMICÍDIOS POR INTERVENÇÃO POLICIAL. É POSSÍVEL ACABAR COM A VIOLÊNCIA COM UMA ABORDAGEM VIOLENTA?

Estou seguro que não. Vivi na África do Sul quando Mandela era presidente, trabalhei com ele. Temos encontrado evidências claras, a partir de estudos, de que violência repete violência. Não há sociedades violentas de famílias pacíficas. Acho que não temos nos perguntado: será que nossas famílias são violentas em essência, e que replicamos no público sociedades violentas? Até que não comecemos a construir famílias e ambientes pacíficos e protetores, dificilmente vamos ter sociedades pacíficas. A violência não ajuda a transformar uma sociedade, e muito menos uma família. E o que acontece em casa é o que replicamos no espaço público, que é a cidade.

NO BRASIL, A FALTA DE POLICIAMENTO É UMA DAS PRINCIPAIS CRÍTICAS DA POPULAÇÃO. QUAL É O PAPEL DA POLÍCIA EM UMA CULTURA DE PAZ?

A polícia devia ser uma força civil comprometida com outro tipo de necessidade, mais educativa, de formação, acompanhamento e prevenção. Deveria encontrar um jeito diferente de exercer a autoridade, mais pelo respeito e pelo reconhecimento dos cidadãos do que pela força. Cada vez mais deveríamos tender a desarmar as forças de segurança e torná-las forças mais civis, de controle e acompanhamento da sociedade e dos cidadãos. Mas isso vai levar um tempo. De fato, as orientações políticas, agora, vão ao contrário disso, com Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos EUA e outros. Acredito que o que fazem é gerar mais violência, de formas mais agressivas. Temos de nos perguntar quais são as raízes estruturais da violência. Por que os cidadãos, nossos irmãos, pessoas da nossa cidade, acabam exercendo a violência por qualquer motivo que seja? Eles não vieram em uma nave espacial, em um óvni, de outro planeta, e são violentos porque vêm destinados a isso. São as próprias sociedades que criam a violência. E enquanto não nos fizermos essa pergunta, não só não vamos resolver, como vamos querer eliminá-los, inclusive através do extermínio. Mas não vamos eliminar a causa estrutural, e assim sempre vão emergir novas formas de violência.

POR QUE A RESPOSTA VIOLENTA À VIOLÊNCIA TEM TANTO APELO JUNTO ÀS PESSOAS?

O que é atrativo é o poder, não a violência. E a violência, especialmente através das armas, é um mecanismo de acesso ao poder. O poder sobre o outro, para controlar a vida do outro, o espaço do outro, os lugares do outro. Armas são um meio para ter poder. E o poder exercido pela violência é a pior droga da humanidade. É a droga mais perigosa, inclusive quando se chega a ela pelas vias democráticas.

QUAIS SÃO OS RISCOS DA BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA?

Tornar a violência natural é perigoso porque lhe dá um lugar na cultura. E uma vez que se assume isso como normal é difícil fazer mudanças culturais. Leva décadas. A única maneira de mudar é com educação e formação cultural e cidadã, e leva gerações para fazer transformações.

BRASIL E COLÔMBIA ESTÃO ENTRE OS PAÍSES QUE MAIS MATAM MULHERES. COMO A COLÔMBIA TEM ENFRENTADO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO?

Só recentemente começamos a entender a delicadeza desse problema, e estamos começando a desenhar políticas públicas para evitar o feminicídio. Sociedades machistas como as nossas são onde a violência contra a mulher é mais fácil de ser vista, porque os lugares onde a autoridade se exerce pela força são onde a mulher é mais propensa a ser a ser vítima. Tem a ver com o imaginário de masculinidade que temos. Masculinidades que acreditam que têm direitos e privilégios sobre a mulher e que, com todo o respeito, parecem do tempo das cavernas. Sociedades como as nossas têm de fazer exercícios de educação profundos para construir novas masculinidades que entendam que os homens são iguais às mulheres. Não em termos de identidade, mas em termos de direitos fundamentais e oportunidades.

A CORRUPÇÃO É UM PROBLEMA ESTRUTURAL NA POLÍTICA BRASILEIRA. COMO COMBATÊ-LA?

Como combater a corrupção? (Risos.) Para responder isso, tem de fazer um doutorado... Não só no Brasil, na Colômbia também, e acredito que em todo o mundo. Há um grande mestre, Antannas Mockus (matemático, filósofo e educador, prefeito de Bogotá por dois mandatos) que nos ensinou que o público é sagrado. Acho que problema da corrupção tem a ver com termos privilegiado os interesses privados sobre os coletivos. Aí é muito fácil ter corrupção, porque seu objetivo fundamental é o lucro individual e pessoal em cima do interesse coletivo. As cidades e nações têm de retornar ao seu princípio fundamental, que é entender que somos coletivos. O que ocorre é que nas últimas décadas nossa formação tem sido sempre direcionada a primar o individual sobre o coletivo, e claro que aí emerge a corrupção, inclusive naturalizada, e torna-se cotidiana.

PARECE QUE AS MUDANÇAS NECESSÁRIAS SÃO DIFÍCEIS DE SE FAZER.

As coisas mais importantes da vida são difíceis. Mas precisamos combater a corrupção antes que ela termine tendo um impacto ainda mais negativo sobre as culturas das sociedades.

O BRASIL VIVE UM MOMENTO DE POLARIZAÇÃO POLÍTICA. COMO SUPERAR AS DIFERENÇAS PARA CONSTRUIR UMA NAÇÃO QUE CRESÇA E ENFRENTE AS ADVERSIDADES SEM VIOLÊNCIA?

O primeiro problema não é a polarização política, mas a polarização social. Não nos demos conta que geramos sociedades extremamente segregadas. A mesma coisa acontece na Colômbia: todos acreditam que a polarização política é um problema, e é parte de uma problema maior, que é que temos gerado sociedades divididas. E o que vamos obter disso são políticas extremas, que não vão ao encontro da criação de confiança, mas de divisões e de luta para exercer o poder. É um tema delicado e complexo, que nos toma muita energia para entender, porque é muito fácil responder à polarização com o ódio. Mas é só a partir de maneiras mais afetivas de se aproximar do outro, de aceitá-lo como ele é, que vamos construir pontes que reivindiquem a integração. Temos que construir sociedades integradas. Se criamos sociedades para sentir que uns são melhores do que outros e têm mais privilégios do que outros, se nossas famílias seguem replicando que há alguns que têm mais direitos que outros, teremos sociedades divididas que jamais deixarão de ser um fracasso.

BRUNA VARGAS

24 DE NOVEMBRO DE 2018
DRAUZIO VARELLA

CIRURGIA BARIÁTRICA NO CONTROLE DO DIABETES


As técnicas progrediram das simples reduções das dimensões do estômago para as reduções associadas a "desvios" do trânsito intestinal e das secreções biliares e pancreáticas necessárias para a digestão dos alimentos. Esses procedimentos, que causavam tantas complicações até a década de 1990, hoje são realizados com índices de mortalidade comparáveis aos das grandes cirurgias abdominais.

As cirurgias bariátricas são indicadas para a redução do peso corpóreo nos casos de obesidade refratária às mudanças do estilo de vida e aos medicamentos. Para evitar indicações abusivas, as associações médicas brasileiras e internacionais estabeleceram critérios rígidos baseados no Índice de Massa Corpórea (IMC). O IMC é calculado dividindo-se o peso corpóreo (em quilogramas) pela altura (em metros) elevada ao quadrado.

O consenso inicial era considerar a possibilidade de operar apenas os pacientes com IMC igual ou maior do que 40 kg/m2. Em seguida, essa indicação foi estendida para aqueles com IMC de pelo menos 35 kg/m2, que apresentassem problemas médicos como diabetes, doença coronariana, hipertensão grave, apneia do sono, limitações ortopédicas etc.

Nos últimos 20 anos, diversos ensaios clínicos demonstraram que esse tipo de intervenção não apenas provocava perdas de peso significantes e duradouras, mas tinha grande impacto no controle da glicemia nos pacientes com diabetes do tipo 2 (o mais comum), muitos dos quais ficavam livres dos remédios que haviam tomado durante anos.

Apesar dos resultados contundentes, os médicos demoraram pelo menos duas décadas para aceitar que uma intervenção cirúrgica fosse capaz de curar diabetes. A relutância em aceitar o óbvio tem uma explicação simples: todos nós aprendemos na faculdade que diabetes é incurável.

Em 2012, foram publicados dois estudos muito bem conduzidos, nos quais ficou demonstrado que a cirurgia bariátrica é mais eficaz no controle do diabetes do que as medidas convencionais de dieta, atividade física e medicamentos. Esses resultados despertaram a curiosidade dos especialistas: se é assim, a cirurgia não deveria ser indicada mais cedo no curso da enfermidade?

Um grupo sueco acaba de publicar no The New England Journal of Medicine um estudo prospectivo iniciado em 1987, em que 1.658 pacientes obesos submetidos à cirurgia bariátrica (diversas técnicas) foram comparados com um grupo de 1.771 obesos tratados com dieta, atividade física e medicamentos.

Os participantes tinham entre 37 e 60 anos de idade. Os homens apresentavam IMC acima de 34 kg/m2, e as mulheres, acima de 38 kg/m2. No início do acompanhamento, nenhum deles tinha diabetes. Cerca de dois terços dos participantes não entraram na análise final por não terem completado os 15 anos de evolução.

Entre os que foram seguidos por esse número de anos, 502 desenvolveram diabetes: 392 no grupo controle e 110 no grupo submetido à cirurgia. A diferença em favor da cirurgia foi altamente significante: redução de incidência igual a 78%. O valor do IMC inicial não fez diferença nos resultados finais; o tipo de técnica operatória também não.

Diabetes é uma doença que progride lentamente, na qual a sensibilidade à insulina e a capacidade de produzi-la diminuem com o tempo. O estudo sueco sugere que cirurgias bariátricas podem impedir que as anormalidades do metabolismo da glicose progridam para a instalação do diabetes.

Apesar dos resultados intrigantes, é impraticável pretender prevenir diabetes por meio de cirurgia entre os milhões de obesos do mundo inteiro. No Brasil, praticamente metade da população adulta está acima do peso saudável, número que cresce a cada censo. Há 12 milhões de brasileiros com diabetes.

DRAUZIO VARELLA


24 DE NOVEMBRO DE 2018
JJ CAMARGO

QUALQUER DESATENÇÃO

A gente sabe tão pouco do que se passa na cabeça das pessoas, mesmo daquelas - ou principalmente daquelas - que supomos conhecer. E talvez o mais desafiador do convívio esteja exatamente no imprevisto que tantas vezes resulta na sensação para lá de desconfortável de que não conhecemos a criatura de quem nos considerávamos íntimos.

Estas descobertas podem ser amargas e explosivas, deixando a sensação de terra arrasada depois de nos transformarem em terra.

Muitas vezes, os mais perspicazes anteveem a notícia ruim pela linguagem corporal, mas quase sempre a palavra é o instrumento indispensável para remover o pino da desgraça. Alguns dão a notícia aniquiladora sem nenhuma emoção, o que significa uma mistura de crueldade com experiência maligna. Em escala crescente, situam-se os sádicos que não conseguem evitar um esboço de riso, que tentam conter para cumprir as recomendações do manual de demissão, mas não conseguem dissimular aquele deslumbramento que o exercício da maldade confere ao sociopata. Outros, com um leve resíduo de humanidade, desviam o olhar, porque, circunstancialmente, imaginaram-se do lado de lá.

Dar notícia ruim é tão desconfortável que, nos EUA, existem empresas com profissionais treinados na arte de demitir, que circulam pelo país cumprindo a sua trágica missão.

Na escola, é comum que o adolescente desenvolva uma palidez de morte quando a professora, com um risinho enviesado, pergunta: "Quantas matérias você supõe que ainda será possível recuperar, meu querido?".

No trabalho, as frases emblemáticas como "Precisamos rever as metas" ou "A empresa está passando por um momento difícil" põem a vítima no cadafalso, talvez ainda com a corda frouxa, mas já no pescoço. Porque nem o mais confiante dos evangélicos se animaria em pensar: "Que bom que o chefe resolveu ouvir minha opinião sobre esta crise!".

Talvez a mais benigna das utilidades de discutir a relação, esta que é, de longe, a mais chata das convocações que a mulher pode fazer no casamento, tenha esta perspectiva: reduzir o impacto de uma conversa que muitas vezes começa amistosa até o outro descobrir que sua amada está usando um colete de explosivos. Numa discussão amorosa, os especialistas confirmam que o mais confiável prenúncio de cataclismo é a surpreendente ausência de lágrimas, que, no passado, tantas vezes escorreram pela cara, sem a preocupação de borrar a pintura, porque naquele momento só pretendiam funcionar como um desesperado pedido de socorro.

Na iminência de uma tragédia afetiva real, a falta de lágrimas, alertam os experts, significa: controle emocional completo, portanto, prepare-se para o pior. De qualquer maneira, independentemente do tipo de relação, pessoal ou profissional, todo comunicado que lhe pareça absolutamente surpreendente significa apenas que você, há muito tempo, está desatento com seus afetos. E no amor, como já alertou o Chico daquela época em que ele sabia escolher as companhias: "Qualquer desatenção, faça não! Pode ser a gota d?água!".

JJ CAMARGO

24 DE NOVEMBRO DE 2018
MÁRIO CORSO

Diploma de Sientista Social

Nós, do Instituto Pykaretha (do sânscrito, aquele que persegue o caminho da luz), temos diplomado sientistas (aqueles que sentem) sociais faz anos. Nosso lema é ir aonde a sabedoria espontânea se mostra, aonde nossa verdade se revela.

Começamos reconhecendo sientistas sociais de botequim, categoria mal- afamada. Preconceituosamente, tendemos a julgar as pessoas não pela profundidade de seus argumentos, mas de onde vem o discurso e se estão, ou não - dado que nos parece irrelevante -, sob influência alcoólica.

Neste momento da história, dada a contingência da Revolução Digital, temos diplomado sábios de Facebook, do Twitter, do Instagram e, principalmente, do WhatsApp. Especialmente pessoas que têm talento nato, aquelas que não precisam de outras fontes, fora sua excelsa sabedoria, para dar opinião sobre tudo e qualquer coisa. Pessoas que nasceram sabendo, que dispensam estudo, para as quais é desnecessário saber outras línguas, conhecer bibliografias especializadas. Pessoas que são capazes de nortear-se apenas por fragmentos da realidade, porque sabem deduzir o todo de pequenas partes. Esses sábios sensitivos conseguem narrar o que nos acomete e fornecer certezas sobre os caminhos do porvir.

Nascemos para você que, sem dominar a regra de três, desfila argumentos da mecânica quântica. Quem disse que para entender a física atual precisamos de matemática? Enfim, somos para você, que sem ter lido nada de coisa nenhuma, percebe os segredos do universo e revela sua sapiência, não contaminada por estudos e dados do mundo real. Você que tem a grandeza de dividir isso com todos os que se prestam a ouvir.

Conseguiremos seu diploma certificado e emoldurado em letras douradas, em troca da denúncia, óbvia, mas sempre é bom lembrar: que os jornais só contam mentiras e cientistas são todos ideológicos. De que você divulgue que todos os que tentam desautorizar suas convicções com elementos tão fortuitos e relativos como dados e estatísticas são criptomarxistas que tendem a confundir nossa mente pura e querem envenenar-nos com pesquisas e argumentos científicos, nos quais não temos nenhum motivo para crer.

Não se deixe enganar pela turma da Ursal. Eles querem que não percebamos a força do globalismo (inclusive, tentam confundir-nos falando em globalização). Esse tipo de pensamento, que nos afasta de Cristo, da Virgem Maria e das evidências da presença de ETs, coloca nossas famílias em riscos seriíssimos de dissolução moral, ao pregar a devassidão da ideologia de gênero.

Pela módica quantia de centenas de reais, dependendo do grau (mestre, doutor, pós-doutor, MBA ou PhD - veja o catálogo), enviamos por sedex seu diploma de Sientista Social Emérito em Rede Social e Assemelhados. Aproveite, chance única!

MÁRIO CORSO

24 DE NOVEMBRO DE 2018
OPINIÃO DA RBS

O DESAFIO DA EDUCAÇÃO

As prioridades na área de ensino não estão em questões polêmicas, que só contribuem para mascarar as falhas e as soluções, mas em deficiências preocupantes nos níveis de aprendizado

Confirmado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro, o futuro ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, tem currículo intelectual alentado e boas chances de impulsionar uma área relacionada diretamente a outras das quais depende o futuro imediato do país. Entre elas, estão inovação, ética, retomada da economia e até mesmo prevenção da violência. Mas é preciso ir bem além da pauta educacional que ganhou ênfase durante a campanha e não se inclui, de fato, entre as questões emergenciais do ensino: a escola sem partido e o ensino do respeito à diversidade nas escolas. São temas relevantes, mas não prioritários.

A educação brasileira só avançará, aproximando-se dos padrões de qualidade necessários para o país crescer de forma sustentável, quando forem colocadas em prática alterações profundas na forma como é gerida hoje, privilegiando acima de tudo a formação do aluno. Filósofo e professor, mas sem maior experiência como gestor, o novo ministro será responsável por um dos maiores orçamentos do governo federal. 

Além de buscar maior eficiência no uso de verbas, precisará enfrentar também distorções crônicas, incompatíveis com uma realidade de penúria no setor público. Entre os mais desafiadores, estão as aposentadorias precoces, que vêm se mantendo ao longo dos últimos governos por falta de disposição dos gestores públicos de se confrontar com corporações.

Um dos responsáveis pelo nó na área educacional é o desequilíbrio financeiro que drena recursos preferencialmente para o Ensino Superior, deixando a Educação Básica em segundo plano. O futuro ministro precisará também valorizar os professores, não só financeiramente, mas com providências que contribuam para maior reconhecimento a essa atividade fundamental. 

É importante que o escolhido para gerir a pasta possa enfrentar saídas de imediato para o Ensino Médio, que se constitui hoje num dos principais gargalos do aprendizado. Desde já, o novo responsável pela área precisa pensar também em alternativas para o fato de menos de um terço das crianças de até três anos se encontrarem hoje em creches.

As prioridades na área de ensino não estão em questões polêmicas, que só contribuem para mascarar as falhas e as soluções, mas em deficiências preocupantes nos níveis de aprendizado. O país não pode se conformar com os níveis insuficientes de tantos alunos em leitura e matemática. Enquanto distorções como essa não forem atacadas, dificilmente a atividade econômica conseguirá registrar o crescimento necessário para gerar mais riqueza e oportunidades de emprego. 

OPINIÃO DA RBS