sábado, 29 de junho de 2013


30 de junho de 2013 | N° 17477
MARTHA MEDEIROS

Anjos

Fala-se muito em Deus, mas pouco em anjos. Acredito neles, nos zelosos guardadores, não sentados em nuvens tocando trombeta, mas aqui, no plano terreno. Um pode ser o anjo do outro. Você pode ser meu anjo, e eu o seu.

Vou compartilhar uma história que aconteceu no final de fevereiro. Recebi um convite para integrar a equipe de uma instituição britânica liderada pelo filósofo e escritor Alain de Botton, a The School of Life, que está introduzindo atividades no Brasil. Topei. No entanto, meu inglês é precário.

Consigo viajar sem pagar micos, me comunico em hotéis e restaurantes, mas não tenho fluência para manter uma conversa digna com um estrangeiro. E isso será fundamental no novo desafio profissional que me surgiu. Preciso aprender inglês pra ontem. Como? De preferência, estudando fora, fazendo um curso de imersão. Até então, isso nunca tinha passado de um sonho da juventude.

Dias depois de a The School of Life me procurar, recebi outro convite: lançar meus livros em Torres. Passei quase três horas autografando para veranistas e moradores da cidade. Quando a livraria estava fechando a porta, um homem insistiu em entrar. Um turista. Ele pediu minha dedicatória, a última da noite, e me entregou seu cartão.

Era, simplesmente, um renomado gestor de cursos de inglês no Exterior. O procurei na semana seguinte e, para encurtar a história, estou matriculada em uma das escolas mais sérias da Inglaterra, já tenho um flat alugado e estou com toda a burocracia resolvida. De quebra, fiz um novo amigo.

Esse tipo de história é recorrente na minha vida. Qualquer questão que se apresente, a solução cai do céu em dias, às vezes em horas, através de alguém que não conheço. O exemplo que dei é elitista, mas já aconteceram coisas bem mais prosaicas e milagrosas – nunca me apertei. Sempre um anjo apareceu do nada.

Pode-se chamar isso de ter sorte, ou uma boa estrela. Dá no mesmo. Estamos falando de receptividade e de doação. Você tem um anjo porque também já foi o anjo de alguém. E se tudo não passar de baboseira, que seja. Num mundo rude como o nosso, há que se flertar com o esotérico.


No momento em que você me lê, já estou em Londres. Amanhã começam minhas aulas e não vai ser moleza: serão seis horas por dia, afora os temas de casa e alguns compromissos com a The School of Life, a entidade que deu início a essa minha movimentação. Por isso, ficarei ausente do jornal durante todo o mês de julho. Prometo retornar em agosto mais inspirada e, se os anjos ajudarem, reencontrar vocês com saudades. Até breve.

29 de junho de 2013 | N° 17476
NILSON SOUZA

Cartazes com crases

Depois que os velhos começaram a entrar no Facebook, os jovens saíram para as ruas. Digo isso por mim: não paro de receber pedidos de confirmação de amizade de gente da minha idade. Em breve, tomaremos conta desse brinquedinho inventado pelo tal Zuckerberg, que no ano que vem passará para o nosso lado. Vai fazer 30 anos, a fronteira da confiabilidade. Pelo menos é o que dizia uma frase emblemática dos meus tempos de juventude, imortalizada na canção de Marcos Valle, este prestes a completar 70:

– Não confie em ninguém com mais de 30 anos.

Força, portanto, para os que ainda não chegaram lá. É animador ver a garotada envolvida com os problemas do país. Quem não se emociona ao ver tantos rostos adolescentes semiencobertos pelas máscaras da insatisfação, ou pintados de verde e amarelo, gritando por mudanças?

Para ingressar no novo mundo da consciência social, muitos levaram com eles a mesma estratégia da comunicação digital que utilizam cotidianamente. Todos querem ser vistos e ter suas mensagens comentadas. Embora o romantismo inicial já comece a ser substituído pela realidade, pelas manipulações político-ideológicas, pela violência e até pelo desencanto, ainda acredito que muita coisa boa ficará desta surpreendente revolução comandada pelo anonimato coletivo das redes sociais.

Uma delas é a reafirmação da língua portuguesa. Achávamos que a garotada só se comunicava em internetês, com palavras abreviadas e uso confuso dos símbolos gráficos do idioma. De repente, começaram a surgir cartazes com mensagens bem escritas e bem-humoradas, com verbo, predicado e complemento (como se dizia antigamente), com vírgulas no lugar certo e até com crases apropriadas.

A parte mais empolgante das manifestações, para mim, era aquele momento em que meninos e meninas chegavam cedo ao local da concentração munidos de cartolinas e canetas coloridas para redigir suas mensagens em praça pública. Muitos faziam esse trabalho em casa, pesquisando poesias, trechos do Hino Nacional ou frases de artistas e pensadores célebres. Só nisso já tivemos um ganho cultural incomensurável.


Pena que agora já comecem a prevalecer faixas e cartazes impressos em gráficas, reproduzidos em série, expressão inequívoca de grupos organizados que tentam pegar carona na espontaneidade da juventude. Dê no que der, porém, aqueles primeiros cartazes ficarão como registro dessa energia criativa que surpreendeu o país e o mundo. Em bom português.
WALCYR CARRASCO

Fé e fofoca

Um dos meus livros prediletos é Os miseráveis, de Victor Hugo, do século XIX. Creio que um dos trabalhos mais apaixonantes da minha vida foi traduzi-lo e adaptá-lo para jovens. Uma das passagens mais marcantes, descrita em detalhes no original, fala do poder da fofoca.

Fantine é mãe solteira e deixou sua filha, a menina Cosette, aos cuidados de um casal, a certa distância da cidade onde se fixou. Trabalha como operária e envia quase tudo o que ganha para o sustento da menina. Só que não sabe ler e escrever. Recorre a um profissional para redigir suas cartas e ouvir as respostas.

As colegas de trabalho desconfiam. Para quem tantas cartas, afinal? Convencem o homem que as escreve não a revelar seu conteúdo – ele é discreto –, mas a fornecer o endereço para onde são enviadas. Uma delas, então, viaja às próprias custas para apurar a história. Volta com a satisfação de “saber de tudo”. Conta o que sabe para todas.

Estigmatizada numa época em que ser mãe solteira era uma desonra, Fantine briga com as outras. É demitida por moralismo. Acaba nas ruas como prostituta. Quem leu o livro, viu algum dos filmes ou versões teatrais inspirados na obra sabe que ela vende os dentes e cabelos para depois morrer tragicamente. Onde começou toda a sua via-crúcis? Na curiosidade sobre a vida alheia.

A fofoca é a base da tese da “cura gay”: maléfica, preconceituosa, com o poder de destruir vidas

Acredito que a fofoca é maléfica. É fundamentada no preconceito. Tem o poder de destruir vidas. Em sua primeira peça de teatro, em 1934, a escritora americana Lilian Hellman (1905-1984) aborda o tema. A peça, The children’s hour, foi sucesso na Broadway e ganhou versão cinematográfica com as estrelas da época, Audrey Hepburn e Shirley MacLaine. Aqui no Brasil, o filme ganhou o título de Infâmia. (Procurem, vale a pena ver.) Narra a história de duas mulheres, sócias fundadoras de uma escola infantil nos Estados Unidos. Uma aluna as acusa de ter uma relação homossexual. Não têm, de fato.

Mas a avó da garota espalha a fofoca na comunidade. Perdem os alunos, quebram financeiramente e, finalmente, uma delas se suicida. Histórias como essa são frequentes. No mundo artístico, encontro jovens que deixaram a cidade distante onde viviam, porque não suportavam mais os falatórios.

Certa vez, em visita à pequena Bernardino de Campos, interior de São Paulo, onde nasci, conversei com um rapaz de cabelos pintados de verde, num estilo meio punk, cuja família se mudara para lá. Fazia faculdade, mas queria voltar a São Paulo, onde trabalhava como motorista. Eu me espantei:

– Prefere o trânsito de São Paulo a terminar um curso universitário, ter uma carreira?
– Aqui, meu cabelo virou até notícia na rádio – respondeu ele.

Por que falo sobre tudo isso?

Sim, sei que a proposta de “cura gay”, do deputado Marco Feliciano, já foi muito comentada. Seria chover no molhado dizer quanto isso nos ridiculariza internacionalmente, já que a Organização Mundial da Saúde não classifica a homoafetividade como doença e, portanto, não se trata de algo a curar. Mas quero olhar a questão por outro ângulo. Todo esse movimento liderado por Feliciano, entre os evangélicos, e pela deputada Myrian Rios, como católica carismática, entre outros, não pode ser confundido com fé.

É uma enorme curiosidade pela vida alheia. Como fofoca transformada em questão política. Convivo com esse tipo de comportamento não é de hoje. Tenho uma tia que frequenta a igreja Assembleia de Deus.

Nunca corta os cabelos, devido a uma interpretação do Velho Testamento, em que eles são descritos como “véu da mulher” – embora nada proíba Feliciano de depilar as sobrancelhas. Adolescente, eu morava em Marília, interior de São Paulo. Uma jovem evangélica da Assembleia deixou de ser virgem. A fofoca se espalhou no templo. A moça foi expulsa publicamente da igreja. Não é o primeiro preceito cristão acolher os pecadores?

Normatizar a vida dos fiéis é exercer poder sobre eles. Esse poder é exercido pela fofoca entre os membros da comunidade religiosa, que passam a controlar o comportamento uns dos outros. Trazer esse tema, da igreja, para a política, é um acinte para a sociedade. Quanto mais se fala em “cura gay”, mais cresce o preconceito. E o preconceito estimula a fofoca, o controle sobre o comportamento alheio. É um risco para quem acredita nas liberdades individuais. Inevitavelmente surgirão novas vítimas, como a Fantine de Victor Hugo.


sábado, 22 de junho de 2013


23 de junho de 2013 | N° 17470
MARTHA MEDEIROS

As chatonildas

Sou gamada pelos filmes Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol. Ambos, na época, me inspiraram crônicas, e não seria diferente agora com a obra que, acho eu, encerra a trilogia, Antes da Meia-Noite, a maior DR cinematográfica recente. Não tão bom quanto os filmes anteriores, mas bom também, agora o casal protagonista, Jesse e Celine, enfrenta uma crise conjugal clássica.

Qualquer pessoa que tenha vivido uma relação de mais de um ano - vá lá, dois anos - já protagonizou cenas quase idênticas. Somos todos iguais, o que me estarrece, visto que a charmosa Celine, que conquistou aquele guapo no primeiro filme da série e o fez perder o rumo de casa no segundo, se transformou na Maior Chata da História, assim mesmo, com maiúsculas. E o que é pior: essa Maior Chata da História, ai, é meio parecidinha conosco.

Celine pira. Faz perguntas inibidoras para o marido, numa tentativa de encurralá-lo nas próprias palavras. Busca sempre alguma entrelinha por trás do que o coitado do marido ousou falar.

Tira conclusões estapafúrdias pela própria cabeça, faz drama por qualquer bobagem, não sabe se vai ou se fica. É o capeta travestido de mulher. Se você já assistiu ao filme, duvido que não tenha se identificado com pelo menos 10 minutos da histrionice da personagem, e estou sendo generosa, poderia tranquilamente falar aqui em identificação de meia-hora - ainda sendo generosa.

Não que os homens sejam santos. Eles azucrinam. São os garotos de 12 anos que não crescem, como admitiu semana passada o David Coimbra, que sabe tudo. Ainda assim, nada justifica nossa aporrinhação. Mulher é bicho tremendamente chato. Umas mais, outras menos. Rogo a Deus que eu esteja entre as menos. Por via das dúvidas, não perguntem aos meus ex.

O que nos absolve (um pouco) é que a intenção é das melhores: só queremos limpar a área, clarear os problemas. Falamos, falamos, falamos, mas no fundo sonhamos com a paz do entendimento. Por isso, não nos cobrem, não nos façam de tolas, não nos sobrecarreguem: entendam que a paciência esgotou, não somos as mães universais, as eternas boazinhas e compreensivas, isso já deu. Mas precisamos transmitir esse nosso “deu” com menos verborragia, concordo.

Pra não terminar essa crônica ressaltando apenas a chatice feminina, destaco uma frase do filme que aponta uma saída. Diz um personagem secundário: “o amor que sentimos por alguém não é o mais importante, o que interessa é o amor que sentimos pela vida”. Sábias palavras. Se o casal concorda que a vida é breve e merece ser apreciada com alegria e generosidade, sem valorização das encrencas, sem perpetuar traumas de infância, sem pensamentos estreitos, sem nenhuma espécie de rigidez, a relação poderá vir a ser um passeio no campo. Ame a vida, e meio caminho andado para um romance leve.


Mas, claro, ajudará muito se nós, gurias, controlarmos a nossa doidice nata.

23 de junho de 2013 | N° 17470
ARTIGOS -Flávio Tavares*

Recado aos surdos

O mudo recuperou a voz e grita aos ouvidos do surdo eis a síntese do histórico 20 de junho. Desde as manifestações dos anos 1967-68-69 contra a ditadura militar, nada foi tão espontâneo e autêntico quanto os protestos em que o aumento das tarifas de transporte foi só o detonante de uma explosão maior e até grandiosa. Nem a campanha das Diretas Já, de 1984, ou o Fora Collor, de 1992, se equiparam à revolta pacífica atual.

Nas Diretas, parte do poder político e dos partidos comandava tudo, com os governadores de São Paulo, Rio e Minas (Montoro, Brizola e Tancredo) à frente. No Fora Collor, a ideia inicial veio da imprensa, dos partidos e do parlamento. Agora, é como se a energia de 1968 ressuscitasse, cansada dos embusteiros que (na democracia) se apossaram da política e do poder.

Moças e moços de 20 anos iniciaram tudo. Não contaminados nem corroídos pelo poder político ou econômico, identificaram a falsidade. Longe do conluio “política & negócios” que rege o poder entre nós, definiram-se pelos cartazes das passeatas – contra a corrupção, a mentira, a orgia de gastos em estádios, a Fifa mandando nas cidades, o descaso pela saúde e educação! E contra a imoral PEC 37.

Mesmo assediados pelos badulaques do consumo, os jovens não perderam o tino. Enxotaram das passeatas as bandeiras dos partidos políticos, na melhor mostra do desencanto atual. Dirigidos por oportunistas que prostituíram a política, os partidos têm se interessado apenas em táticas para captar votos.

Desde que o conluio PT-PMDB (com sua ampla “base alugada”) assumiu o poder, diluíram-se os movimentos sociais. As centrais sindicais, cooptadas. A UNE não representa os estudantes. Os partidos tornam-se degraus para negociar ministérios e empresas estatais, num derrame geral de corrupção.

Querem nos fazer fantoches, bonequinhos que falam e pulam, manipulados detrás duma parede?

Num desafio a essa impostura, jovens e não jovens saíram às ruas em centenas de grandes ou pequenas cidades, convocados uns aos outros pela internet. A espontaneidade mostra a falência das estruturas formais, que já nada representam. Senadores, deputados, vereadores, prefeitos, governadores e a própria presidente da República, ausentes de tudo – atônitos, isolados nas salas do poder em que tudo é artificial. Até o ar.

Vivemos o absurdo de que é preciso sair à rua para que o poder político “aceite dialogar e debater” com quem o elegeu. Na onda espontânea, a boçalidade da polícia de São Paulo (que, entre outras proezas, quase deixou cega uma jornalista) transformou o protesto num movimento nacional muito além dos 20 centavos das passagens. E a rua vomitou a indignação geral!

E os vândalos que saqueiam comércios ou destroem prédios públicos? Eles não são manifestantes, apenas marginais, como os que nos estádios (ou nos velórios e enterros) batem carteiras e roubam. Aproveitam-se da situação, imitando os políticos corruptos.

Ninguém melhor do que a presidente Dilma explicou o sentido dos protestos: “A mensagem direta das ruas é para influir nas decisões dos governos, em repúdio à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público”, disse em Brasília, na solenidade de lançamento do marco regulatório da mineração. Os mais eminentes figurões da corrupção, ali presentes, aplaudiram, fingindo que não era com eles. Ela própria mais parecia a jovem coerente de 1968-69 e não a presidente da República, que entendeu o recado das ruas.

Agora que o povo mudo recuperou a voz, resta esperar que Dilma se liberte dos surdos – dos cortesãos alugados que fingem tudo, até a surdez. Será o caminho para que o grito de agora reconstrua o que a mentira destruiu!


*JORNALISTA E ESCRITOR
Richard Abel - Con Te Partiro

Richard Abel - Amours Lointaines

Richard Abel - Danube Bleu


Richard Abel - Automn Butterflies
RUTH DE AQUINO

Desespero de causa

Diante de mais de 1 milhão de brasileiros nas ruas contra tudo e todos na quinta-feira, em 120 cidades, o sentimento comum entre estudiosos era a “perplexidade”. Estavam perplexos com o tamanho dos protestos, a temperatura da indignação, a falta de lideranças claras, a nuvem difusa de reivindicações. Minha perplexidade sempre foi outra. Não entendia como ninguém saía às ruas contra a calamidade nos serviços essenciais e no baixíssimo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) brasileiro. Era como se fôssemos impotentes para mudar as prioridades do país – já que, pelo voto, só conseguiríamos mudar o ruim pelo menos pior.

Se o movimento começou com foco em passagens mais baratas – ou gratuitas – de ônibus, terminamos a semana numa catarse anárquica. Manifestantes e policiais perderam o controle. Hoje, se uma causa pudesse unir todos os manifestantes, ela seria: “Hay gobierno? Soy contra”. O passe livre passou a ser o passo livre. A adrenalina tomou conta de jovens que se sentiam à margem do processo histórico e político do país, sem voz, sem ilusões, em busca de ideais. Pouquíssimos conhecem de verdade o que significa a palavra “ditadura”.

O protesto atual é perigoso para a paz social? Sim. Mas era mais previsível que a sucessão de estações do ano. Uma hora o brasileiro cordial estouraria – e seria convocado pelas redes sociais... porque foi assim em todos os países, independentemente das bandeiras. Não é isso que nós, profissionais da imprensa, prevíamos?

Há anos temos denunciado escândalos na educação, na saúde, no transporte, na habitação, na infraestrutura, nos Três Poderes. Há anos nos indignamos com os impostos escorchantes, a falta de representatividade dos partidos, a corrupção, a impunidade e o mau uso do dinheiro público. E nos revoltamos com as alianças espúrias que permitem a um odioso Marco Feliciano cuidar de direitos humanos e apoiar a “cura gay”.

O passe livre passou a ser o passo livre. A adrenalina tomou conta de jovens em busca de ideais

É triste e assustador ver a ação de vândalos e arruaceiros que depredam equipamento público, picham, invadem prédios do governo, quebram lojas, saqueiam, incendeiam. É triste e assustador ver a ação de policiais de choque que espirram pimenta numa senhora dentro de uma clínica para ela parar de falar, que jogam bombas em jovens de mãos ao alto voltando para casa pacificamente com a bandeira brasileira, que encurralam manifestantes em lanchonetes e jogam gás dentro, que lançam gás lacrimogêneo dentro de hospitais. Isso é receita de guerra alimentada por ódio. Quando a revolta escapa ao controle, só favorece extremistas.

É inadmissível que protestos pacíficos descambem para a intolerância às diferenças. Mesmo que a maioria dos jovens se diga apartidária, eles não têm o direito de incendiar bandeiras. Nem têm direito de hostilizar jornalistas ou queimar carros de empresas de comunicação. Esse comportamento é fascista.

Faz seis anos que escrevo uma coluna semanal para ÉPOCA. Uso a arma possível: as palavras. Condenei tantas vezes Renan Calheiros e a votação secreta, que o alçou ao lugar de seu padrinho José Sarney, com a bênção de Dilma. Sugeri a criação da Contribuição dos Corruptos Municipais, Estaduais e Federais, a CCMEF. Listei “10 razões para se indignar”, no fim de 2010 e de 2011. Fiz campanha contra o voto compulsório.

Perguntei ao leitor “Quando vamos moralizar o Poder?”. Revoltei-me com a informação de que 13 milhões de brasileiros, ou 7% da população, não têm banheiro. Defendi que “precisam sair do escuro as relações entre as autoridades e as empresas de ônibus”. Afirmei que “não há vergonha na cara de um país que mata e despreza seus velhos por negligência” nas filas e corredores de hospitais.

E, depois de escrever tudo isso com liberdade, não posso vestir a camisa da Editora Globo para cobrir os protestos. Corro o risco de ser linchada por um grupo minoritário de jovens ignorantes que confundem tudo, uns desmemoriados que desrespeitam o trabalho de tantos jornalistas investigativos, entre eles Caco Barcellos. Ou, então, corro o risco de levar uma bala de borracha na testa ou no olho, disparada por um policial de choque com sede de sangue.


Posso relevar todos esses atos de estupidez, de lado a lado, sob um único argumento: a verdadeira democracia pressupõe um exercício ativo da população, uma vigilância perene sobre as instituições, uma participação atuante de jovens comprometidos com nossa história. E o Brasil enferrujou em anos de pasmaceira e populismo. Está na hora de aprender não só a cantar o hino, mas a respeitar as cidades. Está na hora de as forças da ordem honrarem sua farda e seu poder. Não ataquem inocentes – os senhores estão sendo filmados.

sábado, 15 de junho de 2013


16 de junho de 2013 | N° 17463
MARTHA MEDEIROS

A mesa da cozinha

A mesa da cozinha é o local sagrado das conversas durante a madrugada, quando os irmãos chegam da balada com fissura por um gole de Coca-Cola e com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou não ficaram, o trajeto que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e aí as amenidades evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida uma essência, a tentativa de escapar da insignificância, até que o dia começa a clarear e o cansaço avisa que é hora de ir para a cama.

Para alguns casais, a mesa da cozinha já serviu de cama, aliás. A mesa da cozinha ouviu confissões de amigas que juraram guardar segredo, mas não conseguiram. O amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A mesa escuta e não espalha, reconhece a inocência das fraquezas alheias e se sente honrada por ser confidente de tantas vidas.

A mesa da cozinha escutou o que os convidados não comentaram na sala, viu estranhos abrirem a geladeira atrás de algo mais substancial que canapés, suportou o peso de quem resolveu sentar sobre ela para fumar um cigarro antes de voltar para o burburinho da festa.

A mesa da cozinha já foi cenário de toda espécie de solidão.

Mas também de encontros. Viu o casal de namorados preparar, sem receita, seu primeiro salmão ao molho de manga, viu o menino nervoso abrir sua primeira garrafa de vinho para uma menina não menos nervosa, viu um beijo secreto entre primos, cuja família comemorava o Natal em torno da árvore, viu o marido se declarar para a esposa viciada em grifes ao surpreendê-la com um simples avental amarrado em torno da cintura.

A mesa da cozinha viu a mãe esquentar a primeira mamadeira às três da manhã, com cara de sono e felicidade. E o pai da criança, a caminho da área de serviço, segurando uma fralda suja com expressão de nojo, mas também de orgulho.

A mesa da cozinha viu a funcionária sentar no banquinho e, durante uma trégua entre um suflê e um pavê exigido pela patroa, acariciar sua primeira carteira de trabalho.

A mesa da cozinha viu o cachorro xeretar a lata de lixo e o gato lamber os restos que sobraram na louça do jantar. A mesa da cozinha viu a dona da casa tentar escrever um diário, coisas que ela sente e que não tem com quem dividir, a não ser com a luz amarelada do abajur.

A mesa da cozinha testemunhou lágrimas que foram secadas com o pano de prato. A mesa da cozinha possui manchas que contam histórias. A mesa da cozinha tem um pé frouxo que ninguém se lembra de aparafusar.


A mesa da cozinha já amparou carteados, velas acesas em dia de temporal, cinzeiros abarrotados, a roupa passada e dobrada antes de ir para as gavetas. A mesa da cozinha viu tudo.

quarta-feira, 12 de junho de 2013


12 de junho de 2013 | N° 17460
ARTIGOS - Marisa Faermann Eizirik*

Por que dói o amor?

Por que dói o amor? Porque implica encontro e união e, também, desencontro e desunião. Não pode aprisionar, nem ser aprisionado. É de sua natureza ser fluxo, estar sempre pronto a se desfazer e refazer. O amor só é eterno enquanto dura, diz Vinicius de Moraes. Só a duração é eterna.

Falar sobre o amor é abordar um dos temas mais recorrentes da vida humana e que todos experimentamos em alguma de suas formas. Difícil de ser conceituado, encontramos sua ambiguidade já na Grécia Clássica, em que o amor aparece em três vocábulos (eros, philia e agapè) que enfatizam não o que se ama, e sim, o tipo de relação que se estabelece.

Eros designa o amor acompanhado de desejo. Já a segunda palavra (philia) se refere ao amor por algo com o que nos associamos – podendo ser tanto amor a uma pessoa, como na relação de amizade, como amor a uma ideia ou valor, como na filosofia. Por fim, há a agapè, que se encontra relacionada a um valor específico, talvez próximo da “renúncia”. Seria um amor da ordem da ternura, sem reciprocidade, uma espécie de amor puro, como o amor ao próximo pregado pela tradição cristã da caridade.

Eros se relaciona diretamente com o desejo, que se apresenta como falta, na tradição platônica, ou como força, produção, na versão nietzschiana. Na primeira, surgem as questões: pode-se amar aquele que já se tem ou só o que nos faz falta? Como poderia alguém desejar o que já possui? Como se pode prescindir do que já se tem?

O amor em relação a algo (ou alguém) parece nascer de sua falta. Instala-se, assim, no imaginário coletivo, por séculos, a ideia do desejo como falta e, portanto, do amor como algo sempre oscilante entre a fartura e a saciedade, em uma busca constante.

Mas o amor não é imune ao tempo e, nas flutua- ções da história e das revoluções que marcam a existência humana no Ocidente, vemos mutações nos modos de amar, com múltiplas práticas eróticas e formas amorosas se desenhando, a partir do exercício do amor como produção, energia, força, sempre em conflito, pois essa é a característica básica do amor enquanto fluxo – abundância e carência.

Na experiência contemporânea, vivemos a velocidade como um valor em si mesmo, com sutis e profundas repercussões no plano das relações e das práticas amorosas. Órfãos de nossas certezas, seguimos em busca de um chão menos escorregadio, de vínculos, se não estáveis, pelo menos intensos em seu significado afetivo. E não importa a dor, amar e se apaixonar é tudo porque a vida vale a pena.


*PSICÓLOGA, MESTRE E DOUTORA EM EDUCAÇÃO – UFRGS

12 de junho de 2013 | N° 17460
MARTHA MEDEIROS

O amor mais que romântico

Quando era criança, assistia a filmes e novelas românticas e pensava: será que um dia escutarei “eu te amo” de alguém? É bem verdade que ouvia todo dia da minha mãe, mas não era do mesmo jeito que o Francisco Cuoco dizia para a Regina Duarte. Eu sonhava com o “te amo” apaixonado, dito por um homem lindo, e com a voz um pouco trêmula, para deixar sua emoção bem evidente. Será que era invenção do cinema e da tevê, ou essas coisas poderiam acontecer mesmo?

Passou o tempo. Cresci, ouvi e retribuí. Clichê? Que seja, mas não há quem não se emocione ao escutar e ao dizer, ao menos nas primeiras vezes, em pleno encantamento da relação, quando a declaração ainda é fresca, pungente, verdadeira, a confirmação de algo estupendo que se está experimentando, um sentimento por fim alcançado e que se almeja eterno. Depois ele entra no circuito automático, vira aquele “te amo” dito nos finais dos telefonemas, como se fosse um “câmbio, desligo”.

O tempo seguiu passando, e me encontro aqui, agora, descobrindo que há outro tipo de “te amo” a ser escutado e falado, diferente dos que acontecem entre pais e filhos e entre amantes. É quando o “te amo” não é dito a fim de firmar um compromisso, para manter alguém a par das nossas intenções ou experimentar uma cena de novela.

Ele vem desvinculado de qualquer mensagem nas entrelinhas, não possui nenhum caráter de amarração e tampouco expectativa de ouvir de volta um “eu também”. É singular. Estou falando do amor declarado não só quando amamos com romantismo, mas também de outra forma.

Explico: tenho dito “te amo” para amigas e amigos e escutado deles também. Uma declaração bissexual e polígama, que resgata esse sentimento das garras da adequação. Volta a ser o amor primitivo, verdadeiro, sem nenhuma simbologia, puro afeto real. Amor por pessoas que não conheci ontem num bar, e sim por quem já tenho uma história de vida compartilhada.

Amor manifestado espontaneamente àqueles que não me exigem explicações, que apoiam minhas maluquices, que fazem piada dos meus defeitos, que já tiveram acesso ao meu raio X emocional e sabem exatamente o que levo dentro – e eu, da mesma forma, tudo igual em relação a eles. Mais do que nos amamos – nos sabemos.

É um “te amo” que cabe ser dito inclusive aos ex-amores, ao menos aos que nos marcaram profundamente, aos que nos auxiliaram na composição do que nos tornamos, e que mesmo nos tendo feito sofrer, foram fundamentais na caminhada rumo ao que somos hoje. E indo perigosamente mais longe: esse ex-amor pode ainda ser seu marido ou sua mulher, mesmo já não fazendo seu coração saltar da boca. Pelo trajeto percorrido, e por ter alcançado o posto de um amigo mais que especial, merece uma declaração igualmente comovida.

É quando o “eu te amo” deixa de ser sedução para virar celebração.

Linda quarta-feira pra vc leitor ou leitora deste blogger. Feliz Dia dos Namorados pra você...


sábado, 8 de junho de 2013


09 de junho de 2013 | N° 17457
MARTHA MEDEIROS

O telefone no corredor

Dos seis aos 11 anos, morei num apartamento onde havia um único telefone, localizado em um nicho da parede do corredor. Ele era preto, e o nicho era alto, eu não conseguia discar sozinha sem a ajuda de um adulto, mas isso não chegava a ser um grande problema porque naquela idade eu não fazia nem recebia tantas ligações assim pra falar a verdade, quase nenhuma.

Até aqui, nesse primeiro parágrafo, já devo ter deixado alguns adolescentes perplexos. Um único telefone na casa? Para uso coletivo? Preso a uma parede? E você não recebia muitas ligações? Coitada, deve ter sido megatraumático!

Depois dos 11 anos, mudei para outro apartamento com a família. Também só havia um telefone, no corredor, preso à parede por um fio, porém ao menos este ficava em cima de uma mesinha baixa. O problema é que vivi nesse apartamento até os 24 anos, ou seja, uma época em que eu recebia um número significativo de ligações das amigas, de namorados, de colegas de trabalho. Tudo era discutido no corredor, para quem quisesse ouvir. Uma lavanderia.

É bem verdade que, por volta dos 20, meus pais trouxeram do Exterior um aparelho de telefone sem fio, o que já facilitou bastante a vida de todos, era o primeiro passo rumo à privacidade, mas só funcionava dentro de casa – na rua, não pegava. Antes disso, repito: era um único telefone para a família toda. Sem subterfúgios: não havia torpedos, e-mails, nenhum outro jeito de se comunicar com o mundo que não fosse pelo telefone, aquele, o do corredor.

Bom, ninguém impedia que cartas fossem escritas. O correio era bem ágil naquela época.

Na prática, funcionava desse modo: trimmmmm. Alguém atendia. E depois se ouvia um grito: “Martha, é pra ti, um tal de Breno”!

“Um tal de” revelava que quem tinha atendido estava fingindo não dar importância ao fato de que, sendo um homem do outro lado da linha, havia esperança: talvez eu desencalhasse. O grito no corredor entregava que eu estava em casa, só que eu não queria falar com o tal Breno, ao menos não na frente do pai, da mãe, do irmão e da empregada.

“Alô”. Enquanto eu dizia alô, todos evaporavam ao redor, muito educados. Seria perfeito se vivêssemos num castelo com 23 quartos e oito salas, o que não era o caso. “Não, não posso ir ao cinema no sábado, é aniversário da minha avó”.

“Martha, tua avó só faz aniversário em dezembro!!” Essa era minha mãe, que jurava de pés juntos que não escutava nada, nadinha.

“Não, Breno, na outra semana também não vai dar, tenho prova todos os dias no colégio”.

“Vai ficar pra tia, depois não diz que não avisei!” Essa era a empregada.

Nem sempre dava tempo de tapar o bocal do telefone com a mão, para a criatura do outro lado não ouvir os comentários da torcida.

“Se não vai sair com esse pateta, desliga de uma vez que estou esperando o Ayrton ligar para confirmar o jogo”. Esse era meu irmão saindo do banheiro.

“Não, Breno, imagina. Pateta é o nome do cachorro aqui de casa”.

Crianças, vocês não imaginam como era divertido viver na idade da pedra.

sábado, 1 de junho de 2013


02 de junho de 2013 | N° 17451
CLAUDIA TAJES

Na cama com a insônia

Foi matéria nos jornais: estamos dormindo menos e mal. O celular, sempre à mão para olhar os e-mails e o Facebook entre uma virada e outra na cama, é uma das razões para isso. O barulho da rua, coisas por fazer e a cabeça que não desliga quando a luz apaga, situação típica dos quadros de estresse, são outros dos motivos. Parece que o brasileiro dorme hoje uma hora a menos do que há 40 anos.

E que a média nacional é de seis horas e meia por noite, bem distante das ideais oito horas de descanso das modelos para ter a pele fresca e a aparência louçã. Os homens são os mais afetados pela falta de sono. E a falta de sono causa vários tipos de mazelas, como alterações na memória e no humor, interferências no metabolismo, propensão a diabetes e impotência. Não se espante, pois, se a sua senhora aparecer com um chazinho de camomila todas as noites. O seu sono também é do interesse dela.

Na literatura, a insônia já deu assunto para muita história boa. Existem insones em obras de Proust, Tchekcov, Borges, Dostoievski e muitos mais autores que ou não lembro, ou não li. A insônia confere dignidade a um personagem. Já eu durmo tão fácil que chega a ser constrangedor. Em situações de tristeza extrema, de pindaíba absoluta, de solidão completa, de desilusões variadas, de hecatombe no trabalho, de desavenças familiares, mesmo assim eu durmo.

Pode passar a errônea impressão de que não sei sofrer, mas juro que sei. A questão é que durmo fácil. Em compensação, a maioria das pessoas das minhas relações frita na cama todas as noites. Sem remédio, muitas preferem nem deitar. Conheci um rapaz que não dormia há quatro anos. Era o que ele dizia. Faz tempo que não o vejo. Espero que tenha conseguido pregar os olhos ou que, pelo menos, vire personagem de livro. Nem que seja o Guinness Book.

Para quem não consegue dormir de noite, existe o recurso dos pequenos sonos reparadores. A sesta na cadeira do escritório ou sob a mesa de trabalho é um deles. Quando meu filho era bebê, desenvolvi o método de dormir de pé durante o minuto em que o leite da mamadeira esquentava no micro-ondas. Era reconfortante e eu até sonhava. O cansaço de uma mãe recente deveria ser sintetizado por um laboratório e receitado aos insones.

Derruba qualquer um. Sobre sonos de emergência, li certa vez que, após algumas horas em uma festa, a atriz Tônia Carrero ia ao banheiro e tirava uma soneca de 20 minutos. Depois disso, ficava pronta para varar a madrugada dançando. O único senão é que, se o cochilo passasse dos 20 minutos, a Tônia emendava a noite dormindo. Imagino o susto da moça da limpeza ao abrir a porta e encontrar uma diva roncando na privada.

Quem também nunca dorme são os adolescentes, não por insônia, mas porque não concordam que a noite foi feita para descansar. Diferente das manhãs de aula, o horário preferido deles para dormir. O esforço de uma mãe para tirar um adolescente da cama deveria ser sintetizado por um laboratório e receitado aos fracos. Não há nada, mas nada mesmo, que exija mais força, superação e determinação de alguém.

Elena reconta a história de Elena Andrade, atriz em início de carreira que se suicidou aos 20 anos, quando sua irmã e diretora do documentário, a Petra Costa, tinha apenas sete. Aos 29, Petra narra o filme como se fosse uma carta para a irmã.


Elena deixa uma impressão tão forte que o cineasta Jorge Furtado, em debate com a Petra e com o escritor Peninha Bueno, perguntou o que a guria vai fazer agora que já realizou um filmaço como este. O bate-papo está disponível em podcast na radioeletrica.com. E para ver o trailer e mais informações. Depois é pensar em Elena até dormindo.

02 de junho de 2013 | N° 17451
MARTHA MEDEIROS

A secretária e a patroa

Estreou semana passada o filme francês A Datilógrafa, que ainda não vi e possivelmente não verei em função do meu pouco tempo livre. Minha patroa anda cada vez mais ocupada, e quem segura o rojão sou eu, claro.

Mas seria ótimo assistir a um filme onde, finalmente, sou protagonista. Pelo que ouvi dizer, a história se passa em 1958, quando as mulheres estavam começando a colocar as manguinhas de fora. Uma garota de 21 anos recebe de presente uma máquina de escrever e resolve aventurar-se no excitante mercado de trabalho, esforçando-se para ser uma boa secretária, que era a atividade adequada às moças daquela época.

Depois o filme parece que vira uma competição, e daí por diante não sei mais nada, mas o resumo inicial me fez lembrar de quando ganhei, aos 13 anos, uma Olivetti Lettera 32. Tirei-a do estojo com o maior cuidado e suspirei: estava ali o passaporte para a profissão que eu sempre havia sonhado exercer.

Fiz um curso de datilografia e passei a praticar todo dia. Comecei a escrever poemas só para exercitar os dedos no teclado, eu que até então me atrevera apenas aos diários escritos à mão. Vinha um verso, vinha outro, e eu ali, treinando, fazendo de conta que era poeta, até que tivesse idade suficiente para virar a secretária que eu desejava ser.

Num acesso de loucura, acabei mandando uns poemas para uma editora e, pra encurtar a história, publicaram um livro meu. Já trabalhava como redatora publicitária nessa época, porque tinha que ganhar algum dinheiro, mas lembro que, quando faltava uma secretária na agência, eu me oferecia para ficar no lugar dela. E tive meu dia de telefonista também.

O tempo passou e lancei outro livro, e mais outro, e depois da poesia veio a crônica, abandonei a propaganda, fui apresentada ao computador, comecei a escrever para vários jornais, meus textos passaram a ser adaptados para o teatro, iniciei na ficção e aí aconteceu: virei secretária de mim mesma.

Hoje, realizada, passo 80% do dia atendendo ligações, respondendo toneladas de e-mails, avaliando contratos, agendando entrevistas, negociando prazos de entrega, indo ao cartório para reconhecer firma, ao correio para remeter livros, ao súper para fazer as compras da casa, negociando cachês com revistas, trocando mensagens com a contadora, marcando sessões de fotos, providenciando vouchers de hotéis e passagens aéreas para os compromissos fora do Estado, autorizando publicações de textos em livros didáticos, avaliando novas propostas de trabalho e me desculpando em nome da minha patroa por ela não conseguir atender todos os pedidos de leitura de blogs.


Não sei o que seria dela se não contasse comigo para esse serviço de secretariado, se bem que hoje a madame abusou: me botou para escrever sua coluna. Espero que não acostume, só me falta ter que assumir os seus 20% restantes de tempo.

01 de junho de 2013 | N° 17450
NILSON SOUZA

Impressões digitais

A historinha contada em forma de diálogo é tão engraçada quanto perturbadora. O homem telefona para encomendar uma pizza e descobre que a pizzaria foi comprada pelo Google.

A partir daí, é o atendente que comanda a conversa, antecipando a preferência do cliente, sugerindo o melhor alimento para a sua saúde, lembrando-o de que não está tomando o seu remédio regularmente e mostrando que sabe tudo sobre ele, pois possui um banco de dados com todos os seus gostos e hábitos. É tamanha a intromissão em sua vida, que lá pelas tantas o sujeito explode:

– Estou farto da internet, de computadores, do século 21, da falta de privacidade, dos bancos de dados e deste país...

E cancela o pedido, avisando que no dia seguinte mesmo vai viajar para bem longe, talvez para uma ilha desabitada na Oceania. Depois de um silêncio constrangedor, o atendente avisa:

– Seu passaporte está vencido.

O Grande Irmão, profetizado por George Orwell, venceu a parada. Programas de computador cada vez mais sofisticados mapeiam não apenas o perfil de consumo das pessoas, mas também detalhes inimagináveis de sua personalidade e de seu comportamento.

Cadastros são comercializados a preço de ouro. Lojas e bancos sabem quanto você ganha, se você é bom pagador, se gosta de comer sagu, se viaja sozinho ou acompanhado. Antigamente só o padre sabia isso, porque perguntava. E não contava para ninguém. Agora todos sabem e todos revelam.

Temos um pouco de culpa, certamente, pois vamos deixando impressões digitais por onde passamos. Mas as armadilhas são muitas e irresistíveis. Você ganha um brinde aqui, concorre a um prêmio ali, aproveita uma oferta de ocasião, recebe um cartão de fidelidade, mas em troca tem que informar seu CPF, o nome do seu avô, o gênero de literatura preferido, a geleia que consome no café da manhã.

Aí não pode se surpreender quando estiver percorrendo uma zona comercial da cidade e receber um alerta pelo celular: “Aquela centrífuga que você procura está em liquidação na loja da frente”. Isso, porém, é o de menos. O risco maior é o da discriminação: ao saber que você costuma pesquisar preços antes de comprar, o lojista deduz que seu poder aquisitivo é baixo e dificulta o seu crédito ou oferece produtos de segunda linha.

O homem ama e respeita o homem enquanto não consegue julgá-lo, escreveu certa vez Thomas Mann. Na era da informática, estamos sendo avaliados e julgados o tempo inteiro. E, para sermos amados e respeitados, talvez tenhamos mesmo que viajar para as ilhas Fiji.

Bom, pelo menos o meu passaporte está em dia.

01 de junho de 2013 | N° 17450
CLÁUDIA LAITANO

O sermão do médico

A discussão sobre o aborto é uma gigantesca placa tectônica sobre a qual o Brasil repousa como se fosse esplêndido – e não instável e mal resolvido – o berço de alheamento em que estamos precariamente assentados.

Todos sabem que o problema está lá: uma legislação perversa que, na prática, oferece o olhar condescendente às mulheres com dinheiro e a dureza da lei para quem não tem. Os números gritam. Estima-se que no mundo todo são realizados 46 milhões de abortos por ano, 20 milhões de forma clandestina – em países como Haiti, Somália e Iraque, para citar apenas alguns dos que preferem proibir a discutir o problema. No Brasil, as estimativas chegam a 1,2 milhão de abortamentos/ano.

Ainda assim, fala-se muito pouco sobre o assunto por aqui. Políticos, em geral, não querem nem saber do debate – a não ser perto de eleição, quando candidatos ligados a grupos religiosos aproveitam-se da ocasião para pressionar adversários a se posicionar, o que, em vez de enriquecer a discussão, costuma rebaixá-la ainda mais.

Nós, brasileiros favoráveis à revisão da legislação sobre o aborto, estamos relativamente acostumados ao silêncio cínico, interrompido aqui e ali por vozes isoladas como a do médico Drauzio Varella (“Não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de família de baixa renda no Brasil”), que trata o assunto como uma questão de saúde pública que não pode ser varrida para baixo do tapete. O resto é (quase sempre) silêncio.

E quando nada parecia pior do que ignorar o assunto, eis que a novela Amor à Vida (o título não era tão anódino quanto se imaginava, afinal) mostra que tratar o tema de forma rasa e moralista pode ser um desserviço maior ainda. Em capítulo exibido esta semana, o médico interpretado por Antonio Fagundes trai a ciência, o bom senso e o dever profissional aproveitando uma consulta para dar um banho de moral e pregação religiosa na pobre paciente que o procurou para pedir ajuda diante de uma gravidez indesejada.

É compreensível que um médico se recuse a realizar um procedimento ilegal. É compreensível que esse médico seja contra o aborto por convicções íntimas. O que não é admissível, nem na novela das oito, é um médico dar um sermão em uma paciente. Sem contraponto ou chance de debate, a posição contrária ao aborto foi jogada na cara do espectador. Como um tijolo.

Para quem acredita que é impossível falar sobre esse assunto na TV, o desmentido pode estar logo ali, alguns canais adiante. O Canal Viva está exibindo aos sábados, desde o início de maio, a reprise do seriado Malu Mulher, que, entre outros temas polêmicos ainda atuais, tratou o aborto de forma espantosamente aberta e sem preconceitos. Em 1979. Em pleno governo Figueiredo. No horário nobre da Globo.


O episódio Ainda Não É Hora, com a jovem Lucélia Santos contracenando com Regina Duarte, está disponível no DVD da série. Recomendo fortemente aos mais jovens, que não assistiram na época, e também aos mais velhos, que, como eu, mal conseguem acreditar que, em condições tão adversas, pudesse se produzir no Brasil algo tão lúcido e arejado quanto Malu Mulher.
RUTH DE AQUINO

Não enlouqueça com os preços

O consumidor não gosta de se sentir otário. Está na hora de boicotar quem mete a mão no nosso bolso. Quando o brasileiro médio começa a viajar ao exterior para fazer compras sem se sentir roubado, é porque nossa economia desandou. Felizmente, ainda não perdemos a referência de preços, como nossos hermanos na Argentina, onde os índices são todos maquiados, e a presidente Cristina Kirchner restringe o direito de ir e vir do cidadão. Mas tudo fica mais caro de um dia para outro – de alimentos a serviços e passagens. E bem acima dos salários.

Fiz um teste com uma lista de supermercado. Grãos, legumes, frutas, carnes, peixe, legumes, verduras, laticínios, produtos de limpeza. Mínima quantidade de cada mercadoria. No mercado Zona Sul do Leblon, paguei R$ 452. No mercado Mundial, da Barra da Tijuca, R$ 345. Mesmas marcas, mesmos pesos. E uma diferença de 30% no preço total. Só 12 quilômetros separam os dois estabelecimentos. Pesquise sempre em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é atestado de loucura.

Muitos bares e botequins do Rio de Janeiro e de São Paulo aprenderam a lucrar o máximo, tirando proveito da crise real e psicológica. Reduzem as porções – e o tamanho dos salgados – e cobram R$ 5 a unidade. Em botecos cariocas recomendados por guias, como Jobi ou Chico e Alaíde, os croquetes e bolinhos de aipim ficaram raquíticos, viraram umas bolinhas. E mais caros. Parece que R$ 5 passou a ser o valor mínimo de qualquer coisa. É quanto os quiosques da praia cobram por uma água de coco que pode acabar em três goles. Absurdo!

O quiosque Palaphita Kitch, com bela vista na Lagoa Rodrigo de Freitas, se define como uma “experiência mística”, onde você “entra um e sai outro” – bem mais pobre e revoltado com os preços e o serviço. Uma caipirinha de cachaça “especial” custava ali R$ 26 até pouco tempo atrás! Em Búzios, na costa norte do Rio, um picolé na Praia de Geribá chega a custar R$ 13. Não, obrigada. Vou direto ao fornecedor para satisfazer o desejo por sorvetes.

Jovens resolveram contra-atacar a carestia desenfreada lançando sites úteis. O www.riomaisbarato.com.br dá dicas de opções culturais gratuitas e lugares para comer e beber que não provoquem indigestão na hora da conta. Em São Paulo, quatro amigos criaram o www.boicotasp.com.br para alertar sobre as armadilhas. Os usuários denunciam o grau de exploração do lugar, de 0 a 5, e podem publicar foto do que consumiram com o preço ao lado.

Pesquise sempre, em qualquer cidade. Rasgar dinheiro é um atestado de loucura 

A remarcação abusiva de preços é um duplo tiro no pé. Primeiro, afasta o cliente. O consumo das famílias brasileiras caiu drasticamente no primeiro trimestre de 2013. Todos pensam duas vezes antes de comprar. A inadimplência aumentou. Uma pesquisa da Fecomércio do Rio em nove regiões metropolitanas mostrou que os brasileiros passaram a parcelar compras de alimentos com cartão de crédito. É a primeira vez que isso acontece nos últimos sete anos.

Não somos o povo mais culto do mundo. Mas a classe média não é desinformada. Os gastos de turistas brasileiros no exterior se multiplicam. Nos Estados Unidos, o que gastamos em compras só perde para japoneses e britânicos. Em Paris, as ruas estão coalhadas de conterrâneos. Não é só porque o poder aquisitivo da classe média aumentou no Brasil. É porque nosso país está caro demais, impraticável. Gasolina, transporte, restaurante, shows.

Uma tendência atual é viajar para Nova York ou Miami para fazer o enxoval do bebê. Compra-se pela metade do preço, ou um quinto do preço às vezes, uma mercadoria de mais qualidade que a oferecida no Brasil.

Nosso país e o governo Dilma não fazem o menor esforço para estimular o turismo e o consumo domésticos, com preços competitivos. Não temos ferrovias, e as passagens de avião são um escândalo no Brasil. Na Europa, há promoções incríveis com hospedagem. Barato para o padrão nacional.

No bairro de Saint-Germain, em Paris, é possível comer direito em restaurante chinês, japonês ou francês por 8 euros (entrada, prato e sobremesa). Restaurantes sofisticados oferecem menus de almoço em conta, numa relação custo-benefício inexistente no Brasil.

E os vinhos? Um chileno de média para baixa qualidade custa, no Brasil, o mesmo que um bom Bordeaux em Paris. Nos Estados Unidos, compra-se um Mouton Cadet por menos de US$ 10. Resultado: turistas brasileiros têm comprado lá fora caixas de vinho.

O vilão são os impostos, as taxas? Está na hora de adequar tudo aos salários. O consumidor não é masoquista. Ninguém está disposto a enlouquecer com os preços. Esperamos que Dilma não imite a viúva Kirchner. A Argentina pune as vítimas de sua política econômica e não os malfeitores. Podemos fazer melhor.