sábado, 28 de março de 2020



28 DE MARÇO DE 2020
LIA LUFT

O bom combate

No exílio voluntário do Bosque, a vida seria bucólica e poética se não fossem as horrendas notícias do mundo. Estados Unidos, o novo centro da doença, Nova York irreconhecível, com médicos e enfermeiras já usando aventais de sacos de lixo.

Nós aqui neste rabinho do mundo que é o RS (no senso geográfico...) parece que – talvez – podemos escapar da tragédia apocalíptica de outros lugares do mundo.

Mas ainda não temos certeza. Desta vez quem comanda é o vírus, que pegou despreparado o mundo inteiro. Há quem reclame que dou notícias negativas. Desculpem: inimigo ignorado ou adoçado vai me derrubar bem mais depressa.

Sim, sou ficcionista, poeta, divago e sonho, mas sou também prática e com olhos bem abertos: quero conhecer o perigo, avaliar a ameaça. Pois, se afinal for menor do que se pensava, melhor pra mim, pra nós.

Frases doces e teatrinho alegre podem amenizar na hora, mas servem para acalmar criancinhas. Os adultos precisam saber para proteger. Gritinhos, lágrimas, desmaios pouco adiantam; raiva, xingamentos de venda nos olhos, pior ainda.

Somos adultos enfrentando algo perigoso, dramático e real, nossa arma é prudência, calma, cuidados. Xingar o fato de que, sim, temos de ficar em casa, é negativo e tolo.

Reclamar que então não teremos comida nem remédio, é infantiloide: serviços essenciais funcionam.

Aí reclamam que esses profissionais se arriscam: sim, senhores. Como profissionais da saúde.

Talvez espernear menos ajude a ter os necessários equilíbrio e sensatez para superar essa pandemia que, sinto muito, não é uma armação internacional diabólica nem uma gripezinha.

Se estamos numa guerra, vamos lutar com inteligência e bravura. Não é hora de birra, burrice, negação.  Aqui entre árvores e paz, vizinhos amigos e sossego, também quero voltar pra minha casa, família, e menos preocupação.

Antes que a noite chegue é bom acender luzes de informação, sensatez, coragem e calma.  Aí quem sabe, ela chegue mansa e cuidadosa.

LYA LUFT

28 DE MARÇO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Enfim sós

Ela mora sozinha há muitos anos. Gosta, pois leva a vida do jeito que quer, não há ninguém em volta fiscalizando suas manias. Mas sente uma ponta de inveja de lares ocupados por muita gente, famílias numerosas. Preferiria ser mais requisitada, já que são longos os seus momentos sem companhia. Já a ouvi reclamar de passar um dia inteiro sem escutar a própria voz. Até que veio o coronavírus e obrigou o isolamento de todos. Deixou de ser uma escolha, e sim um ato compulsório. E, para minha surpresa, ela não reclama mais, está adorando seus dias de leitura, introspecção e silêncio. Mas se sua rotina já era desse jeito, o que mudou?

É que agora não é só ela que está em casa, mas toda a cidade. Ela já não é diferente da maioria de seus amigos. A solidão deixou de ser um problema apenas seu.

É um assunto que sempre me atraiu. Acredito que ter uma relação cordial com a solidão é a saída para evitar perturbações mentais. Quem encara a solidão como uma terrível ameaça acaba comprometendo suas experiências afetivas. Os vínculos se tornam asfixiantes em vez de naturais. As relações sociais tornam-se mais obrigatórias do que espontâneas. É difícil aceitar que as pessoas chegam, ficam e um dia vão embora de nossas vidas. Essa dinâmica inevitável nos obriga a passar por momentos de resguardo eventual ou prolongado, o que conduz a um encontro profundo com a gente mesmo. Para alguns, é assustador.

Não sou nenhuma ermitã e considero que ter amigos é sagrado. Lamento pelos que se encarceram numa existência sem vínculos - essa, sim, uma solidão corrosiva. Bem diferente de quem pode se dar ao luxo de passar temporadas sem contato, pois sabe que não existe distância entre os que preservam laços vitalícios.

Muitas pessoas moram sós. Quando a pandemia passar, voltarão a caminhar pelas ruas, ir a bares, ao cinema, encontrarão pessoas e continuarão sós, e não há vergonha nenhuma nisso. Sei que conviver é fundamental, um hábito que até ajuda a imunizar: ficamos mais saudáveis ao sermos tocados, abraçados, beijados. Mas não precisamos ter nossa vida testemunhada 24 horas por dia.

Sozinhos, agimos como anjos. Não mentimos, não julgamos os outros, não agredimos ninguém. "Sozinha não há céu que me rejeite" - verso de um poema que escrevi 25 anos atrás, quando me parecia interessante esse benefício da solidão: impedir que fôssemos uns malas. Hoje se mente, se julga e se agride pelo Twitter, pelo Facebook. Meu verso caducou. Então aproveitemos o cativeiro para valorizar as demais vantagens da solidão: autoconhecimento, paz de espírito, concentração, relaxamento. E, se conseguirmos ignorar o celular (como há 25 anos, quando ele não existia), a vantagem sublime de não sermos atazanados e de não atazanar ninguém.

MARTHA MEDEIROS


28 DE MARÇO DE 2020
CARPINEJAR

Há outros pássaros cantando na janela

Para conservar a esperança, temos que defender os ouvidos, não somente escutar os grasnidos de urubus e corvos. Há outros pássaros cantando lá fora e dentro de nossa memória.

Precisamos revezar a audição com o curió, o canário, o sabiá, o pardal, o rouxinol, o mateiro, o pintassilgo pelas janelas de nossa alma. Todo amigo é uma ave cantando diferente.

Que usemos o tempo sozinhos para melhorarmos as nossas relações, corrigirmos as omissões e os lapsos pelo excesso de trabalho, dedicarmos com mais afinco à educação de nossas crianças, revisando os seus desenhos e jogando juntos algum tabuleiro da nossa infância.

Como disse padre Fábio de Melo, não estamos isolados, mas protegidos.

A proteção é ninho aquecido de afeto, uma chance de reabastecimento emocional para retornarmos à labuta mais convictos de nossas aspirações. Cuidar dos ouvidos é evitar o bombardeio pessimista da atualidade. Não ser alienado, mas alternar os fatos tristes com ações edificantes presentes no nosso cotidiano.

Não permanecer exclusivamente no celular assistindo e partilhando vídeos apocalípticos, soma de infectados e mortos, numa contagem regressiva até chegar a um familiar ou a um conhecido. Que retiremos o pânico da pandemia. Não há como ser feliz sob ameaça constante.

O jeito de apequenar o medo é procurar interagir com as melodias caras de nossa vida: a voz dos pais, dos filhos, da esposa, dos amigos. Fazer perguntas de como eles nos enxergam, se estamos sendo presentes ou não. Ouça como os demais o percebem, é importante o ponto de vista externo para construir a nossa imagem.

Aproveite a quarentena para autocrítica, para o trabalho permanente de se aperfeiçoar, de ser gentil sem segundas intenções. Gargalhe com bobagens, faça mais piadas e memes com aqueles que estão próximos de você.

Regue as plantas e reorganize as roupas no armário, para voltar a vestir as peças que andam esquecidas pela pressa.

Como não há como ir ao salão, por que não brincar de manicure e cabeleireiro com o pessoal de casa?

Ler um livro para soltar a âncora da realidade imediata e viajar para distintas épocas e contextos.

Improvisar um karaokê com a sua playlist preferida. Cozinhar receitas da avó, para recuperar sabores perdidos. Não se sentir culpado por se divertir. Especialmente isso. Não sofrer de modo desnecessário é respeitar quem está realmente sofrendo.

Ocupar a imaginação positivamente, combatendo premonições assustadoras é o remédio para a saúde mental. Não se prender ao "se", abolir o "se" do vocabulário, não penar por antecipação.

Palavras amáveis são fáceis e ficam para sempre. O canto dos pássaros é o nosso despertador interior.

CARPINEJAR


28 DE MARÇO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O VENTRE DO VERBO

Domingo da anunciação: faltam nove meses para o Natal. Para muitos cristãos, hoje é a data em que o Arcanjo Gabriel apareceu a uma jovem em Nazaré e trouxe uma ideia revolucionária: ela seria mãe por força do Espírito Santo. A adolescente terminaria o dia carregando o aguardado Messias prometido pelas escrituras.

Pela tradição, era fim da tarde, por volta das 18h. Os textos das escrituras apresentam detalhes distintos. O Evangelho de Mateus apenas se ocupa das dúvidas de José. Sua noiva engravidara. Como proceder? Os avisos dos anjos se voltam a ele e suas angústias. José é orientado dormindo.

Sonha que tudo estava de acordo com os planos de Deus. O Jesus do Evangelho de Marcos, o mais antigo de todos, já surge com 30 anos. Nada sabemos da infância por ele. O último Evangelho na ordem e no tempo, João, começa narrando a origem de tudo em prólogo teológico. Lá, o Verbo sempre existiu e se fez carne, referência indireta ao dia de hoje. Porém, ao entrar na narrativa da vida do filho de Maria, já o encontramos como ser poderoso. 

Lucas, meu preferido, dedica-se a detalhes sublimes. Sem o terceiro evangelista, a narrativa da infância e do Natal seria empobrecida. Lucas, padroeiro de médicos e de pintores, fala da saudação do Arcanjo em frase repetida milhares de vezes entre católicos: Ave, cheia de graça. Ele conta que a jovem conceberá um menino. Mais: o enviado informa que a prima Isabel, que fora chamada de estéril, está grávida de seis meses. A novidade familiar vem por mensageiro celeste.

A Maria de Lucas é quase silenciosa, ainda que disponível. Seu espanto é mais técnico do que teológico: como ela poderá trazer ao mundo o Emanuel se é virgem? A parte central é o sim: livre-arbítrio de uma jovem diante do mistério que a excede. São Jerônimo traduz o sim por fiat, latim para "faça-se". O que antecede a anuência da jovem judia é valorizado como humildade pelos cristãos e submissão pelos islâmicos: "Eis aqui a serva do Senhor". Para quem não sabe, o texto sagrado muçulmano descreve Maria e a anunciação também. No Corão, ela está associada a Zacarias, pai do profeta João Batista, que serve no Templo de Jerusalém. 

Ela é piedosa e se prostra para o Todo-Poderoso. A tradição oral árabe diz que todos que nascem são tocados por Satanás e choram, com exceção de Jesus, o filho de Maria. Em todo o livro sagrado islâmico, Maria é a única mulher que recebe nome próprio. Outras mulheres recebem atenção, porém ganham títulos e não nomes próprios. A tradição diz que o Profeta purificou a Caaba de todos os falsos ídolos que ali eram adorados, mas ordenou que se conservassem as imagens de Jesus e de Maria no local sagrado. O último concílio católico, o Vaticano II, elogia o respeito dos islâmicos a Maria.

Judia religiosa, cristã exemplar e islâmica submetida de coração aos desígnios do Altíssimo: eis o poder da figura de Maria. Anterior a polarizações teológicas, ela é exemplo de atitude para muita gente. Seu comportamento é exemplar e modelo de fé. Assim como Abraão aceita a promessa e sai da casa do pai sem titubear, Maria não entende, entretanto se entrega a um plano que muda toda a sua vida. A fé é entrega e aceitação, ainda que livre. Abraão vai, Maria diz sim, ambos geram fatos importantes para o futuro. Abraão é pai de três religiões. Maria é mãe de Jesus nas duas maiores fés do mundo. Ambos recebem a mensagem e a aceitam.

Abraão ouve o próprio Deus, Maria recebe um mensageiro (sentido grego da palavra "anjo"). Em hebraico, a solenidade de Deus faz Abraão mudar de vida sem sequer uma palavra, como mudo ficará quando o Todo-Poderoso exigir a vida do seu filho Isaac. Em grego, um mensageiro abaixo da grandiosidade de Deus permite que a jovem ainda faça uma pergunta antes do sim. No futuro, o silencioso e obediente Abraão negociará longamente com o Criador sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. A autora da única pergunta, Maria, nunca mais demonstrará dúvida técnica. Abraão aprendeu a dialogar e Maria aceitou a entrega total e as dores que Simeão anunciou que atravessariam seu coração.

Nossa Senhora torna-se a Maria do silêncio, sem dúvida, aquela que guarda e medita as palavras "no seu coração", porém, cresce como a Maria da ação. Soube, pelo anjo, da prima grávida e idosa Corre para auxiliá-la. É também ela que fala a Jesus quando o reencontra no Templo, aos 12 anos.

Considerando a família patriarcal da Palestina do século 1º, tomar a iniciativa na frente do pai não foi pouco para uma jovem mulher. É ela que pede a interferência no primeiro milagre, as bodas de Caná. É ela que acompanha o filho até a cruz, quando os homens, com exceção do quase adolescente João, tinham debandado com medo. É ela que está com os discípulos na festa de Pentecostes, nascimento formal da Igreja. Mulher do silêncio, do sim, da meditação; porém, sempre a mulher da ação corajosa.

A face feminina da salvação é fascinante. José, tão importante no início de Mateus, submerge na escuridão narrativa seguinte. Maria cresce até os Atos dos Apóstolos e, metaforicamente, no próprio Apocalipse, 27º e último livro do Novo Testamento. É a mulher vestida de sol, ostentando uma coroa de 12 estrelas e com a lua debaixo dos seus pés. A tradição católica identifica a mulher do Apocalipse com Maria. A humilde serva do Senhor do Evangelho de Lucas vira a gloriosa dama coroada do livro da Revelação. O feminino de Maria será sempre um terno mistério para as pessoas de fé. Como ela, é preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL

28 DE MARÇO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

AS PESTES

Há 2.450 anos, Atenas viveu uma peste horrenda, no segundo ano da guerra com Esparta (431-404 a.C.). Os atenienses estavam na condição oposta de nós brasileiros em 2020, pois tinha em seu líder, Péricles, um aristocrata muito culto, com espírito científico e devoto da causa democrática. A epidemia foi descrita por Tucídides no segundo livro (47-54) de A Guerra do Peloponeso. O próprio historiador sofreu com a peste e a examina com olhos e vocabulários de médico - pois a medicina, como a história, trata de perceber os sintomas para identificar as causas. A peste ensina a compreender o corpo, o mundo e a sociedade.

Naquela peste, desoladoramente, morreram os altruístas que foram prestar assistência e solidariedade, então médicos, ora todos os profissionais de saúde. A peste ceifou também a vida de Péricles, celebrado por Tucídides nos capítulos anteriores (35-46), na Oração Fúnebre, propaganda do esplendor moral da democracia ateniense. O autor caprichou no contraste entre apogeu e queda, pois, com a peste, debilitou-se Atenas e preparou-se o colapso da cidade luz do mundo antigo, ao final do século V a.C., um dos principais pontos de mutação da história. A cidade e o mundo mudam depois da peste.

A descrição de Tucídides é assombrosa: "Corpos moribun­dos se amontoavam e pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes, em ânsia por água. Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos de cadáveres dos que ali morriam; a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que sucederia, tornavam-se indiferentes (a quaisquer leis), sagradas ou profanas. (...) Alguns aproveitavam as piras dos outros (...), jogavam nelas seus próprios mortos e lhes ateavam fogo; outros lançavam os cadáveres que carregavam em alguma pira já acesa e partiam" (II, 52). 

A seguir, analisa a dimensão cultural e política: "A peste introduziu pela primeira vez em toda a pólis a plena anomia" (II, 53). A palavra anomia, aqui em seu primeiro uso, diz do abandono de todas as leis e convenções, sociais ou religiosas, e da entrega à urgência vital: "Todos resolveram gozar rapidamente todos os prazeres e deleites, considerando os corpos e as riquezas como efêmeras". A peste revelava o poder fundamental de Eros, sufocado pelas convenções diurnas, soberano quando assomam a noite e a pulsão urgente dos desejos.

Freud complementou essa espantosa visão de Eros em meio à peste com a percepção da força de Thânatos: a morte, ou, como se lê em Mal-estar na Cultura (1929/30), pulsão de morte - o desejo de matar. Compreende-se assim o apelo mórbido de corpos infectados que querem matar, dos necrogovernos e da necropolítica. Não sabem e não conseguem amar, agregar, unir. Com discurso economicista, promovem o desdém à vida e temem, covardes, as mudanças econômicas necessárias e urgentes. Agrava nosso quadro o desamor ao conhecimento científico e à cultura da solidariedade. Mas nós queremos sobreviver, e será contra as duas pestes e com amor, ciência, cultura, resistência e uma política pela vida.

FRANCISCO MARSHALL


28 DE MARÇO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

LAVAI AS MÃOS!

De todas as recomendações maternas, a de lavar as mãos talvez seja a mais desobedecida. Parece pirraça. Na agitação de hoje, lavar as mãos antes de pegar nos alimentos virou luxo, esquisitice de gente cismada, mania de hipocondríaco.

É só entrar numa lanchonete da cidade, botequim de bairro ou restaurante caro e contar quantos tomam tal precaução higiênica antes de atacar o hambúrguer, a batata frita ou o pãozinho com patê. Na hora das refeições, a mão suja é universal, irmana trabalhadores braçais, moças bonitas e senhores de gravata.

No entanto, se todos lavassem as mãos com água e sabão (qualquer sabão) antes de manipular os alimentos, muitas doenças seriam evitadas. Perderíamos o medo de comer empadinha em padaria, pastel de feira, espetinho de camarão na praia e os tradicionais salgadinhos expostos em todos os bares brasileiros, que a religiosidade do povo houve por bem batizar de "Jesus me chama".

Nada ilustra melhor a eficiência das mãos na disseminação de infecções do que as gripes e resfriados. A pessoa chega na festa e avisa: "Não me beijem que estou gripada" - e sai apertando a mão de todos os convidados. Seria muito melhor que desse o rosto a beijar; na face, o vírus não está. Em compensação, as mãos estão repletas dele: quem fica gripado assoa e coça o nariz o tempo todo. Como consequência, os incautos que apertaram a mão infestada, ao coçar o nariz ou os olhos semearão as partículas virais diretamente nas mucosas.

É possível que sejamos tão renitentes em lavar as mãos porque vírus, fungos e bactérias são seres tão minúsculos, que, no fundo, não acreditamos na existência deles. Fica um pouco chato, entretanto, manter essa descrença mais de 300 anos depois da descoberta do microscópio.

Quando os ingleses aprenderam a acoplar lentes de aumento e construir microscópios rudimentares, ficaram interessados em enxergar o que era pouco visível: a cabeça dos mosquitos, a boca das abelhas ou os buracos existentes num pedaço de cortiça (de onde surgiu a palavra célula).

Em 1683, na Holanda, Antony van Leeuwenhoek, um dono de armarinho que se distraía montando lentes quando não havia fregueses, focalizou o microscópio para investigar o que nenhum cientista havia procurado. Em vez de usá-lo para magnificar pequenos seres conhecidos, Leeuwenhoek decidiu explorar o invisível: o que haveria no interior de uma gota de chuva?

O que seus olhos viram deixaram-no tão maravilhado, que escreveu uma carta para a Sociedade Real de Londres, a mais importante associação científica daquele tempo: "No ano de 1675, descobri pequenas criaturas na água da chuva colhida numa tina nova pintada de azul por dentro? esses pequenos animais, a meu ver, eram mais de 10 mil vezes menores do que a pulga d?água que se pode enxergar a olho nu?".

Essa demonstração cabal de que em ciência fazer a pergunta certa, às vezes, é mais importante do que buscar respostas, abriu as portas para o mundo das bactérias.

Duzentos anos depois de Antony van Leeuwenhoek, um cientista francês que não era médico, Louis Pasteur, visitou necrotérios para estudar por que tantas mulheres que davam à luz morriam de febre após o parto. Nas amostras de sangue e de secreções colhidas no útero dessas mulheres, identificou as pequenas criaturas descritas pelo holandês.

Uma noite, em 1879, numa reunião da Academia de Paris, um obstetra descartou com desprezo a hipótese de que a febre pós-parto fosse provocada por bactérias. Pasteur interrompeu: "A causa dessa doença são os médicos, que levam germes da paciente doente para a sadia".

Mais recentemente, a importância de esfregar as mãos com água e sabão foi bem caracterizada nas unidades de transplante de medula óssea. Nesse tipo de transplante, as defesas imunológicas ficam arrasadas por vários dias e o doente se torna vulnerável aos germes que o cercam.

Quando surgiram as primeiras unidades de transplante nos Estados Unidos, nos anos 80, para entrar no quarto do paciente era preciso colocar luva, gorro, máscara, avental e proteção para os pés. Além disso, de uma das paredes vinha um fluxo de ar contínuo que passava pela cama do doente e saía pela porta permanentemente aberta. Todos os que entravam no quarto eram proibidos de ficar entre a cama e essa parede, para impedir que a corrente de ar levasse os germes do visitante para o doente.

A experiência mostrou que tais medidas eram dispendiosas e descabidas. Hoje, nas unidades de transplante, pode-se chegar com a roupa da rua, mas é obrigatório lavar as mãos ao entrar e sair do quarto do transplantado, não importa o que o visitante tenha ido fazer lá dentro.

Uma medida tão simples como a lavagem das mãos tem grande importância em saúde pública. Por exemplo, se fosse possível convencer todos os que trabalham nos hospitais - principalmente médicos e enfermeiras - de que antes e depois de pegar numa pessoa doente as mãos precisam ser lavadas, estaria decretado o fim das infecções hospitalares. Se conseguíssemos ensinar as mães a tomarem o mesmo cuidado antes de tocar em qualquer coisa que vá à boca do bebê, talvez acabasse a mortalidade por diarreia infantil no país.

DRAUZIO VARELLA


28 DE MARÇO DE 2020
J.J. CAMARGO

A ESTRANHA IDEIA DE HEROÍSMO

Até os egoístas e os que não estão nem aí, se tivessem oportunidade e tempo de descobrir a euforia de ajudar, se revelariam. Alguns tolos, infelizmente, se consideram autossuficientes, mas são minoritários, além de incuráveis.

Estar exposto numa emergência e receber um paciente que teme estar com o coronavírus é conviver, mais do que com a ameaça do vírus, com um duplo medo do paciente: o de confirmar o diagnóstico e o de não ser aceito para tratamento, porque muitos são mesmo mandados para casa, diante de um quadro que o médico tem condições técnicas de reconhecer como leve ou moderado, sem vantagem de internação, mas que o paciente nunca entenderá assim, porque, ora, a doença é dele. É quando se descobre que, medo por medo, o do abandono é maior.

Sai paciente e entra paciente, o ritual se repete, confirmando que a maioria da população ainda não entendeu que, com sintomas leves de uma virose qualquer, correr para uma emergência, onde estão pessoas aglomeradas, algumas delas, de fato, doentes, é só aumentar o risco de realmente adoecer.

Por outro lado, quem envelheceu trabalhando como médico não consegue disfarçar uma chispa de orgulho ao ver aquela garotada que até a semana passada, pressionada pelo mercado claudicante e desvalorizada pelas políticas de saúde, incertas e depreciadoras, ainda estava insegura sobre seu futuro profissional; agora, colocada na linha de frente, descobriu a maravilha de ser médico e, não importa quanto seja falso, sentir-se mais forte do que o perigo.

O encanto e o deslumbramento de ajudar, definidos há muito como a mais primitiva expressão de civilidade, se revela, como nunca, em momentos de crise.

Os tipos que ao longo da história dedicaram suas vidas ao exercício da solidariedade marcaram suas trajetórias pela associação de generosidade e empatia, com aversão total a qualquer forma de popularidade ou ostentação.

A melhor prova da intensidade da energia que os impulsiona sempre foi o aumento da determinação quando foram colocados em situação de risco para si. Só a gratificação de fazer o bem é capaz de gerar força e coragem para manter alguém atuante e disponível quando mais fácil seria renunciar. Então, por ora, queremos apenas cuidar de quem realmente precisa, e do nosso jeito, discreto, compenetrado e silencioso. E, por favor, esqueçam os discursos de heroísmo, não somos heróis, somos profissionais, com avós, pais, filhos e netos, e precisamos, como todos, continuar vivos para cuidar deles nos intervalos do nosso trabalho.

E depois que tudo passar e o medo tiver escorrido, e o abraço ressuscitar, será recomendável que alguns tipos sigam usando máscaras, para esconder a cara da vergonha de terem depreciado esses abnegados capazes de resgatar todas as vidas possíveis, porque é só isso que sabemos fazer. E apesar de termos sido comparados ao sal ("branco, barato e existente em qualquer lugar"), vamos seguir adiante, sem bater boca com a dialética da retroescavadeira.

Só confiamos que os envolvidos não entendam este recado como predisposição ao esquecimento. Porque, podem crer, este arquivo é implacável.

P.S.: eu gostava da Mariana Kalil, nos gostávamos, muito. A inteligência debochada, o senso de humor, a espontaneidade de gostar de gente. A sensação de peso desses tempos difíceis só vai agravar com a falta da leveza do sorriso da Mariana.

J.J. CAMARGO

28 DE MARÇO DE 2020
DAVID COIMBRA

Coma alho!


Na sexta, eu passei pelo Zé, que trabalha numa portaria aqui perto de casa, e brinquei:

- Cuida, Zé, que o corona vai te pegar! Ele desdenhou: - Eu, o corona não me pega...

Parei. Finquei as mãos na cintura: - Por quê? - Porque eu como alho. Ergui uma sobrancelha. - Eu também como alho! - Mas tem de ser cru.

Ah, pois é... Conheço essa fama do alho. Nos tempos amenos da gripe A, diziam até que o alho era melhor remédio do que o Tamiflu. Uma vez, entrei em um táxi e cometi o erro de sentar ao lado do motorista. Mal ele fechou a porta e um cheiro nauseabundo e quente me envolveu. Era um odor azedo, que descia do nariz e grudava na garganta. Olhei para o motorista:

- Me desculpa te dizer, mas o teu carro está com um cheiro estranho... - Ah, não é o carro - respondeu ele, sem tirar os olhos do trânsito. - Sou eu.

- Hein?

- É que eu como alho - confessou, e então se virou na minha direção, abriu a boca e mostrou, sobre a língua vermelha, dois dentes de alho meio amarelecidos.

Aquela visão me deixou ainda mais mareado. Só não pedi para descer ali porque a corrida era curta.

- Por que tu faz isso? - perguntei. - Assim eu nunca pego gripe!

- Mas será que não é melhor pegar gripe? - questionei, e ele ficou me encarando com o olhar vazio típico de um chupador de alho.

Outro desses adeptos do alho cru nadava na mesma piscina em que eu ia me exercitar, tempos atrás. Era uma piscina grande, semiolímpica, de 25 metros. E, quando ele nadava, deixava toda a água com cheiro de alho, como se não fosse água, fosse molho. Cristo.

O alho é mesmo poderoso.

Deveria aderir a tal prática, por causa da ameaça do corona? Devo pagar o preço? Será que as pessoas que me cercam entenderiam o meu novo status olfativo?

***

Enquanto não tomo essa decisão radical, permaneço recolhido, aproveitando para fazer coisas de que gosto. E, a propósito disso, a Redação de ZH pediu que desse dicas para as pessoas que também estão confinadas e procuram algo a fazer com seu tempo.

Fiquei pensando. Quem sou eu para dizer o que as pessoas devem fazer com seu tempo? Posso contar o que EU gosto de fazer com o meu. Ultimamente, ler e jogar xadrez. Se você também é enxadrista amador, inscreva-se no site chess.com. Você vai gostar. Tenho melhorado o meu ranking, inclusive. Se passar de 2 mil pontos, faço uma festa quando o corona deixar.

Quanto aos livros, vou fazer uma lista de cinco autores imperdíveis do Rio Grande amado. Esses você tem de ler com urgência. Se já leu, leia de novo. Aí vai:

Os Ratos, de Dyonélio Machado.

Fiz com que o Magro Lima, estrela singular da Atlântida e do podcast Era Uma Vez no Oeste, comprasse Os Ratos e ORDENEI que lesse. Ele ainda não leu, desobediente que é. Quando ler, vou ORDENAR que faça uma resenha a respeito. Estou curioso para conhecer a opinião de um lídimo representante da pós-modernidade sobre esse clássico da Porto Alegre europeia dos anos 40.

O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo.

Esse é o fundador da imagem que o gaúcho usufrui no resto do país e nos seus próprios devaneios. Todos nós queríamos ser o Capitão Rodrigo. Meu sonho seria chegar num bar, dar um tapa sonoro no balcão e lançar o desafio:

- Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!

Contos Completos, do Sérgio Faraco.

Esse é o melhor contista brasileiro, talvez empatado com João Antônio, que, como o Faraco, era da sinuca. Diz o Faraco que jogou sinuca com o João Antônio e ganhou. Então o Faraco é de fato o melhor contista brasileiro.

Os Varões Assinalados, de Tabajara Ruas.

Se você quer aprender com gosto sobre a Guerra dos Farrapos, leia essa preciosidade. O Taba o escreveu como um folhetim, na Zero Hora dos anos 1980. Tornou-se um épico. Vou ler de novo qualquer dia desses.

Para fechar minha lista de cinco gaúchos imperdíveis, vou dar um brinde, vou citar mais dois livros, porque é difícil deixar um desses de fora: Os Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães, e Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto.

Todos os que relacionei são livros de gaúcho, entende? Gaúcho! Mas, como toda alta literatura, são também universais. Aproveite o confinamento lendo esses que são o que de melhor o Rio Grande produziu, enquanto estiver tomando um mate e mastigando dois dentes de alho.

DAVID COIMBRA


28 DE MARÇO DE 2020
VARIANDO

Como não se deprimir na quarentena

O primeiro passo é entender o golpe que recebemos. Vivemos um momento duríssimo, um teste para esta geração. Pandemia sempre houve e voltará a acontecer. Esta é a que nos tocou. Não há culpados, é um dos preços da caminhada humana. A natureza tem suas surpresas. A impotência sobre as causas não justifica a inépcia frente à catástrofe.

Segunda questão: sair da negação, despertar e assimilar. Vai ser amargo, você vai perder algo, todos vão perder. Lucro será perder menos. Perderemos tempo, dinheiro, oportunidades, empregos, encontros e, o pior, entes queridos. Alguns ainda negam, para não admitir que vão perder.

Terceiro ponto: ser proativo. Aparentemente a missão seria passiva: ficar em casa. É difícil por não ser heroico. Como se existisse um incêndio e não fizéssemos nada. Mas existe, sim, um grande desafio: manter o moral da tropa. Salvo os profissionais da saúde, que estão no front trabalhando como nunca, nosso dever é para com a retaguarda. Nossa parte é cuidar dos mais frágeis neste momento de desalento. Ajude com decisões, providências, console, ampare os que esmorecem pelo isolamento social.

Quarto mandamento: não iludir-se com a jornada "livre". Alguns ganharam tempo, mas a maioria perdeu. Estão cuidando da casa, dos filhos e/ou dos pais, e ainda trabalhando remotamente. Enfim, mais cansados do que nunca, sem fim de semana, sem trégua e sem ajuda.

Quinto conselho: mantenha a rotina. Se todo dia fosse domingo, não existiria domingo. É no contraste que os dias ganham sentido. Acorde cedo, tire o pijama e faça a cama. Planeje os horários para começar e encerrar as tarefas. Imponha uma disciplina viável para a situação, que seja o mais próximo da vida normal.

Sexta prescrição: sem desespero. Informação é tudo, mas o excesso de informação vira o fio. Grudar no noticiário é uma maneira equivocada de assimilar o golpe e deprime. Mude de assunto, não deixe o vírus colonizar seu cérebro.

Sétima sugestão: não faça das suas redes sociais a grama verde que entristecerá o vizinho. Poste material empático. Não é hora de mostrar que estamos gozando a vida, nem de impor o próprio modo de lidar com o desamparo, ou de negá-lo. As pessoas isoladas estarão pendentes de notícias umas das outras. Nossas casas agora são públicas, nossa privacidade deve ser inspiradora, acolhedora a distância.

Quesito luxo: para quem ganhou tempo livre na crise, invente um projeto. Não precisa ser grandioso, mas factível, ler um clássico, aprender novas receitas, ver uma série, consertar um objeto, retomar um amigo distante. Se sobrar muito tempo, pensar um projeto para dar uma guinada na vida, estudar algo que nunca conseguiu.

Um dia acaba, vamos tentar sair maiores do que entramos.

MÁRIO CORSO


28 DE MARÇO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

A ALUCINAÇÃO

Vivemos uma crise desafiadora e incomparável, maior, até, que a peste bubônica da Idade Média, quando a propagação era lenta, sem a azáfama atual, num tempo de crendices absurdas, sem consciência de vírus ou de bacilos nem de contágio. Não havia as concentrações urbanas de hoje nem automóveis, navios e aviões facilitando a proliferação.

O coronavírus gerou uma consciência planetária sobre o novo perigo, superior ao que a ciência conhecia. A maior crise sanitária da humanidade impacta em tudo. Na economia e emprego, nos hábitos familiares e até no humor individual ou no amor. Está em jogo a vida.

O mundo inteiro está consciente disso, menos o presidente Jair Bolsonaro, para quem tudo é só uma "gripezinha", um "resfriadinho". Como perturbado pela fantasia inventada, Bolsonaro nega a ciência e a realidade. Preferindo a bruxaria palavresca, "negou" a possibilidade de amplo contágio no mesmo dia em que a Olimpíada de Tóquio era suspensa em função do vírus. Logo, reiterou o absurdo.

A "gripezinha" lembra a "marolinha" com que Lula classificou a crise de 2008, que desarticulou a economia mundial. Fingindo-se de cegos, ambos se destacam pelo exótico do ridículo.

No caso de Bolsonaro, a alucinação foi adiante. Disse absurdos e falsidades em cadeia nacional de rádio e TV e se atreveu, até, a "prescrever" cloroquina contra a covid-19, como se fosse médico virologista. Usado contra malária, o remédio (em altas doses, caso servisse) afeta rins, olhos e audição.

Nada explica a visão alucinada do presidente ao atacar os meios de comunicação por alertarem sobre a peste. Ou chamou de "histeria" as informações sobre o horror por não saber, sequer, o significado da palavra?

A ignorância pode virar crime se propalada por quem tem poder de mando. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (conservador, mas lúcido) e o ex-presidente Fernando Henrique chegaram a insinuar isso, agora, sobre a postura de Bolsonaro.

No RS e no país, a população entendeu o alerta e vive a crise solidariamente, em mútua ajuda. As raras exceções são resquícios do mito que se esvai pelo ralo, como água usada. Prevenção e higiene evitarão ter, aqui, o desfile fúnebre da Itália, onde (sem prevenção, para "não afetar o turismo") a peste mata a esmo, agora.

O "fica em casa" é novo lema da "pátria amada, Brasil" do hino.

Não basta só lavar as mãos. Aqui, o vírus afetou, por igual, os presidentes do Grêmio e do Internacional. Em Brasília, o presidente do Senado e ministros ou assessores de Bolsonaro. Na Inglaterra, o príncipe Charles. Nenhum deles deixou de lavar as mãos.

É preciso ir além e viver o real, não a alucinação.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES


28 DE MARÇO DE 2020

OPINIÃO DA RBS


O VÍRUS NÃO TEM IDEOLOGIA


O Brasil mal começou a vivenciar as agruras do primeiro round da maior crise da história recente mundial e já sofreu um duro golpe: a tentativa tacanha de ideologizar o combate ao coronavírus. Diante da compreensível angústia pela queda abrupta de renda e receita de trabalhadores avulsos e empresas de todos os portes, a inquietação com as normas para o isolamento passou a ser instrumentalizada politicamente, em uma divisão artificial e irreal entre aqueles que defendem as vidas em primeiro lugar e aqueles que não suportam mais as consequências das restrições à economia.

Na prática, o abismo que se forma no país, com indisfarçável apoio do Palácio do Planalto, põe perigosamente, de um lado, os que acreditam no potencial letal do vírus para os seres humanos e à economia por um tempo ainda maior do que o período de restrições e, de outro, aqueles alinhados a correntes que desdenham dos efeitos do vírus na maioria da população e acreditam que o desemprego produzirá mais vítimas do que a doença em si.

A ideologização e o amadorismo em um tema técnico e científico, tanto na medicina e na economia quanto nas relações humanas, são extremamente danosos à missão de todos de combater e derrotar o vírus. Um país dividido durante a guerra contra a doença confunde-se a si mesmo e baixa a sua imunidade para fazer frente aos muitos sacrifícios e desafios adiante.

Infelizmente, a divisão que tomou forma no Brasil tem origem naquele que deveria ser o primeiro responsável por unir a nação em um momento de emergência. O desprezo do presidente Jair Bolsonaro e de seu entorno mais fanatizado pelas recomendações unânimes da Organização Mundial da Saúde e das autoridades sanitárias das principais nações da Terra não o isola apenas de grande parte do país: hoje, o presidente brasileiro é a voz mais destoante entre todos os chefes de Estado do G20, a ponto de a conservadora revista The Economist tê-lo definido como "BolsoNero". Até o presidente Donald Trump vem se mostrando bem mais cauteloso e responsável diante da pandemia do que seu discípulo brasileiro.

É notória a disposição presidencial em promover incêndios políticos para atiçar suas bases nas redes sociais, como foi o caso do pronunciamento em rede nacional na terça-feira passada. Agora, porém, não se trava uma luta planetária em arena ideológica. O coronavírus não distingue bandeiras ou correntes políticas, como comprova a contaminação de 25 pessoas da própria comitiva de Bolsonaro aos EUA. A barreira que impede o vírus de contaminar o organismo de um país é a unidade em torno da sensatez, da convicção científica e de uma liderança confiável. Na ausência desses atributos no Planalto, resta à sociedade depositar sua esperança nos ministros, governadores e prefeitos que tentam de todas as formas, inclusive com eventuais prejuízos políticos, conter o avanço do vírus.

OPINIÃO DA RBS


28 DE MARÇO DE 2020
DUAS VISÕES

Reflexões à beira do caos

Idealmente, se o isolamento de cada pessoa fosse possível, a pandemia se transformaria imediatamente em um mosaico de surtos localizados que, tratados, se resolveriam em poucas semanas, essencialmente pela própria capacidade imunológica dos afetados. O impacto humano seria mínimo, o impacto social e econômico também.

No outro extremo, o não isolamento leva à ampliação geométrica do número de pessoas contaminadas, que, em pouco tempo alcança a população como um todo. Duzentos milhões de brasileiros contaminados geram 20 milhões de pessoas hospitalizadas (10%) e 4 a 8 milhões de óbitos diretos (2% a 4%). O impacto econômico se torna gigantesco, o impacto humano e organizacional é comparável a uma grande guerra e, com certeza será sucedido por uma profunda reorganização política e social.

O isolamento estrito, no nível que for possível, é certamente a única opção e foi finalmente compreendido por todos. Temos exemplos claros de como a demora nesse reconhecimento leva ao caos.

Estamos vivendo exemplos claros dos ensinamentos dos mestres de todos os tempos e linhagens desde o Buda. A impermanência é visível e atinge todas as manifestações das nossas vidas. Todas as tradições espirituais apontam para a verdade da natureza profunda em nós, lúcida e luminosa, que não flutua, que não é afetada pelo tempo, está além das identidades e de vida e morte. Nossa fonte verdadeira paira além do conteúdo das aparências. A desconexão com essa natureza é a fonte verdadeira da nossa aflição. Dessa desconexão surgem as bolhas de realidade, a destruição ambiental, a disparidade social, étnica e econômica, a violência, a drogadição. Surge a política do ódio e exclusão. Quando o que pensamos como progresso afeta a própria vida, este é o tempo em que o futuro dos jovens se torna nebuloso, sombrio, impreciso.

Estamos aprendendo a meditar e a pensar em conjunto. A vida está a se reinventar.

O paradigma econômico se revela incapaz de lidar com as circunstâncias. Com as atividades econômicas se reduzindo, os entes financeiros se transformam em pedintes. As pessoas, os governos, as organizações lúcidas e empresas compassivas abandonam as prioridades antigas e as substituem por solidariedade, criatividade, compaixão e visão ampla.

Ainda que as escolas e universidades tenham se fechado, e os templos, seguimos aprendendo como nunca, e ficamos mais inteligentes. Essa energia logo se transferirá para a construção de uma civilização sustentável e equilibrada. Nada será como antes.

LAMA PADMA SAMTEN, ALFREDO AVELINE

28 DE MARÇO DE 2020
ACERTO DE CONTAS

Situação da saúde deve ser resolvida antes da economia


Presidente do Conselho de Administração das Lojas Renner e agora investidor também em outras áreas, José Galló mostrou bastante experiência e lucidez nas suas falas nos últimos dias, seja em artigos, conversando com investidores e também em entrevista para a coluna. Sinalizou inconformidade, mas com serenidade, lembrando as outras crises pelas quais passou, como a época da hiperinflação. E mais: defendeu o isolamento no Brasil para combater o coronavírus.

- Itália e Espanha se descuidaram, a doença recrudesceu. Se não resolvermos a crise da saúde, teremos de pagar uma conta muito mais dura ali adiante - alertou.

Galló entende que a primeira crise que tem de ser resolvida é a da saúde. Depois, parte-se para a solução econômica. No entanto, observa que a economia não está totalmente parada. Cita a indústria de alimentos, de medicamentos, os portos e as rodovias, que seguem funcionando. Isso facilitará a retomada depois que a pandemia for contida.

Falou também sobre qual deveria ser o papel de cada um nessa crise. Sobre o governo federal:

- Na área da saúde, temos um líder (o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta) que está falando, que está dizendo as coisas com clareza. Na economia, ninguém está falando. A população quer cronogramas, programação.

Sobre os governos estaduais:

- Os governadores deveriam ter um protocolo econômico. Dizer o que vão fazer em termos de logística, por exemplo.

E, claro, falou também do lado empresarial, conclamando as entidades a agirem e não só pedirem:

- Entidades empresariais têm de entrar em campo. Mas não entrem para pedir. É para entrar lá com solidariedade. Nossos líderes têm de se juntar. Dizer o que podem fazer, com contribuições. Tem de começar a coisa.

GIANE GUERRA


28 DE MARÇO DE 2020
CORONAVÍRUS

Confinamento trouxe novos hábitos para antigas tarefas

Não poder contar com comércio aberto tem levado a adaptações na rotina que, em alguns casos, talvez venham para ficar

Se ficar em casa para simplesmente descansar era o momento mais esperado depois de um dia de trabalho, a situação agora mudou. A pandemia de coronavírus e as medidas tomadas por governantes para evitar que a doença se dissemine muito rapidamente por aqui, sobrecarregando o sistema de saúde, fizeram com que a maior parte da população atendesse aos apelos de só sair de seus lares em caso de muita necessidade.

Com isso, as atividades realizadas no mundo lá fora parecem ter ganhado um gostinho especial. A reclusão impõe diversas mudanças de comportamento, que têm muito a ensinar sobre criatividade, adaptação, empatia, parceria, solidariedade. E diversos desses novos hábitos, mais do que serem tomados como forma de passar o tempo em meio à quarentena, podem ter vindo para ficar.

Convívio

Famílias estão mais próximas, convivendo mais. Empresas têm visto que o teletrabalho pode, sim, funcionar muito bem. Estudantes estão aprendendo a se concentrar melhor sozinhos ao assistir aulas online. Profissionais de Educação Física têm ensinado que não é preciso equipamentos de última geração e ambiente todo adaptado para que as pessoas se exercitem com regularidade. Tudo isso, passado o surto, tem condições de permanecer como grande aprendizado a ser mantido por anos e mais anos.

Talvez a principal das descobertas até agora tenha sido algo que não parece, assim, tão revelador, mas ganhou outra dimensão a partir do isolamento social: o quanto as pessoas de que gostamos são importantes, e como apreciamos tê-las por perto. Mesmo as possibilidades abertas pela tecnologia - com troca de mensagens, fotos, chamadas em vídeo, até jogos online em grupo para desopilar - não bastam para substituir o calor humano. Em momentos como este, quem mora sozinho percebe que a companhia de seus entes queridos é importante, e quem habita em família ou entre amigos tem um tempo extra para aprimorar a relação.

- Estamos em família! Em nenhum momento da vida tivemos uma oportunidade como essa, só os quatro! Por tanto tempo e sem interferências externas na educação dos nossos filhos. Desde a alimentação até a ajuda a lidar com os sentimentos. Tem de ficar um ensinamento. Tem de ficar uma memória afetiva desse momento! - explica a odontopediatra Renata Franzon, 40 anos, referindo-se ao marido, o advogado Eduardo Fonyat, 42 anos, e aos filhos Júlia, 6 anos e Lucas, 4 anos.

- As crianças se uniram mais, estão muito amigos, inventaram brincadeiras novas e reencontraram brinquedos que não usavam há tempos. Estamos dividindo tarefas e conseguindo mostrar para as crianças o valor de cada coisa que é feita por elas - conta Renata.

Mas nem tudo são vantagens nessa nova rotina. A secretária Luciana Cambruzzi Cortes relata que o filho Francisco, 4 anos, sente falta das atividades extra que costumava praticar, como tênis, judô e natação. Quer ver os colegas do colégio, os amigos. Casada com o pediatra Cléber Pinto Saffi, Luciana explica que o médico mantém a rotina de plantões, enquanto ela cuida do filho mais de perto e também das tarefas domésticas.

- Meu dia começa com os afazeres da casa, pois dispensamos a ajudante. Estou fazendo tudo, cuidando da casa, do Francisco, do consultório via telefone, das atividades da escola via aplicativos - lista Luciana. - O ponto mais difícil é perceber que não podemos aproveitar o que a nossa cidade tem, ficar longe de amigos e familiares.

Para Renata, essas mudanças representam um desafio para as famílias, especialmente aquelas com crianças mais novas.

- O mais difícil é manter a calma e a serenidade. Quem tem filho pequeno sabe que eles consomem todo o nosso tempo. Isso sobrecarrega o emocional. Além de dar atenção, moderar as brigas e disputas pelos brinquedos, tem todas as tarefas domésticas. Tento relaxar e ter pensamentos positivos e me consolo quando escuto outras mães que estão em reunião por home office quase o dia todo ou que têm filhos com aulas domiciliares e precisam de atenção para fazer tudo isso ao mesmo tempo.

Luciana, mãe de Francisco, explica que as alterações de rotina também têm um lado bom: a nova percepção da vida em sociedade que tem tudo para continuar quando a pandemia passar.

- Vejo esse momento da quarentena como importante para darmos valor às coisas simples da vida: não ter pressa para fazer as coisas, viver um dia de cada vez. E notar que não precisamos de muito para sermos felizes - conclui ela.

GUILHERME JUSTINO E JÉSSICA REBECA WEBER

28 DE MARÇO DE 2020
+ ECONOMIA

Socorro tem pulo do gato e uma falha

Veio mais curto do que se esperava o programa de socorro do Banco Central (BC) e do Tesouro Nacional para financiar folha de pagamento. Havia expectativa de que cobrisse até quatro meses de salário, alcançará dois. O pulo do gato é o fato de o Tesouro Nacional assumir 85% do risco desse crédito. Isso significa, em bom português, que se quem tomou emprestado não pagar, quem banca é o caixa da União. Serão R$ 36 bilhões de dinheiro público. Essa é a maior virtude do socorro, sobretudo quando há dificuldades nos bancos devido ao aumento do risco no mercado financeiro (leia abaixo). Como descreveu o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, é o Tesouro que "arca com os ganhos e as perdas da operação".

Também são positivos a taxa de juro, igual à Selic, de 3,75% ao ano, o prazo de carência de seis meses - quando se imagina que a crise terá ficado para trás - e pagamento em até 36 meses.

No entanto, o maior problema do anúncio é sua concepção: ao que tudo indica, será a resposta para o impasse na suspensão dos contratos de trabalho por até quatro meses - daí a expectativa de que o tempo coberto pelo financiamento fosse de igual duração. Outra preocupação veio da resposta do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sobre o tempo de implementação: "algumas semanas". 

O pagamento de salários tem de ser feito até 7 de abril. Como cumprir esse prazo se a liberação levar "algumas semanas"? Havia chance de injetar dinheiro público na veia do sistema produtivo, Responder com financiamento a uma situação de calamidade, como decretada pela União, é endividar mais as empresas em momento de interrupção de receita, cancelamento de pedidos e extrema incerteza sobre o futuro.

Telentrega para os pequenos


Para ajudar pequenos estabelecimentos, a agência de tecnologia Be220 Digital lançou o aplicativo Delivery para Todos. Permite que os comerciantes exibam seus produtos e serviços de forma gratuita, e o consumidor também não paga pelo serviço. Pagamento e entrega, porém, têm de ser feitos por conta: o usuário deve entrar em contato com o fornecedor e combinar os detalhes.

Diretor-executivo da agência, Diego Vilela relata que a ideia surgiu há pouco mais de uma semana. Ele e os sócios Rafael Abreu e Rodney Silva focaram no desenvolvimento da plataforma e no cadastro dos empreendedores.

Até sexta-feira, a agência havia registrado 30 estabelecimentos. A prioridade foi colocar no ar, por isso a solução ainda não é completa, mas pode avançar com o tempo.

Já está na loja da Apple e em uma semana deve estar disponível para dispositivos que usam Android.

Nos bares, happy hour virtual e combo

Para tentar manter o caixa enquanto as portas estão fechadas, cervejarias de Porto Alegre inventam. A Distrito Brewpub (foto), na Avenida Amazonas, criou um happy hour virtual. Os interessados reservam uma mesa virtual, com ao menos mais três pessoas. Fazem seu pedido e recebem, cada um no seu endereço, na mesma hora.

O custo da entrega é revertido em créditos para consumir no bar depois de passado o período de isolamento social.

A cervejaria Macuco, no Centro Histórico, montou um combo com a vizinha Praia Burger PoA. Fazem entrega conjunta de cervejas e hambúrgueres. Deu tão certo que vai continuar quando tudo voltar ao normal.

MARTA SFREDO

28 DE MARÇO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Saúde e economia

Quando vamos ao médico, normalmente ele nos dá inúmeras recomendações para nossa saúde que restringiriam bastante aquilo que julgamos vantajoso para nossa qualidade de vida.

É normal: o médico tem apenas um foco, nossa saúde, e sempre vai pecar por excesso de cautela e prudência. Já nós, pacientes, temos outros objetivos em mente para além de nossa saúde “perfeita”, e aceitamos correr certos riscos para viver melhor (não necessariamente mais).

O coronavírus traz desafios enormes para vários países e impõe dilemas terríveis. Não dá para salvar todo mundo, e existem grupos de risco, idosos com doenças prévias, que correm mais perigo. Por outro lado, a economia não pode parar, e é falsa e sensacionalista a dicotomia entre “vidas ou lucro”.

Estamos falando de gente que, sem trabalhar, pode passar fome, ter inúmeras doenças causadas pelo estresse ou má alimentação, e até morrer.

O médico vai focar no primeiro aspecto: salvar aquelas vidas diretamente ameaçadas. Mas com frequência vai ignorar outros campos e os efeitos a médio prazo de suas decisões emergenciais para conter a pandemia. O ministro Mandetta, que tem se mostrado mais um quadro técnico e preparado deste governo, representa bem essa postura. Já Bolsonaro está de olho na floresta toda, não só nessa árvore.

É verdade que a postura do presidente em nada ajudou. Ele errou feio ao desmerecer o risco do vírus e chamar de “gripezinha” aquilo que tem colocado o mundo de joelhos e os sistemas de saúde em colapso. Mas ele está certo em chamar a atenção para os terríveis impactos econômicos das medidas drásticas de quarentena. O povo vai sofrer, e muito. Há trabalhadores informais sem qualquer reserva que precisam produzir para viver.

As divergências entre ministro e presidente, portanto, são naturais, e vale lembrar que existem divergências entre os especialistas também. Quem cobra de Mandetta uma renúncia ou aposta em sua demissão está torcendo contra o país, e o faz por oportunismo. Cantam a queda de Paulo Guedes e Sergio Moro desde o começo do governo, por supostas intrigas com o chefe. Mas eles seguem em seus postos. Ninguém precisa concordar o tempo todo num mesmo governo. Ao menos não num governo democrático...

RODRIGO CONSTANTINO


28 DE MARÇO DE 2020
POLÍTICA +

Sinais contraditórios que vêm do Planalto

Sem a presença do ministro da Economia, Paulo Guedes, o governo do presidente Jair Bolsonaro anunciou um pacote de medidas que poderiam acalmar os ânimos dos empresários que pregam a volta às atividades a qualquer custo, não fosse o sinal contrário que vem do próprio Palácio do Planalto. No mesmo dia em que Bolsonaro anunciou o esperado socorro emergencial, viralizou nas redes sociais um vídeo com a assinatura da Secretaria de Comunicação reforçando a mensagem de que "o Brasil não pode parar".

O tom é o mesmo da campanha lançada em 26 de fevereiro pelos empresários de Milão e endossada pelo prefeito Giuseppe Sala, que agora se arrepende do que fez. "Milão não para", dizia o slogan. Um mês depois, a Itália inteira está parada e, na sexta-feira, bateu novo recorde de mortes em 24 horas: 919. Desde fevereiro, são 9.134 mortos, a maioria na Lombardia.

Coube aos presidentes do Banco Central, Roberto Campos Neto, da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, e do BNDES, Gustavo Montezano, anunciar o pacote de R$ 40 bilhões para socorrer empresas e trabalhadores nos próximos dois meses. É o reconhecimento da área econômica de que abril e maio serão meses críticos, como já alertou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O que está fora de sintonia é o aval do Planalto à pressão pela retomada da atividade econômica, que significa dar fim ao isolamento recomendado pelas autoridades sanitárias antes que se tenha conseguido achatar a curva dos casos de contaminação.

Ainda que sejam tímidas, as medidas de proteção social anunciadas pelo governo trazem alguma tranquilidade aos milhões de brasileiros que ficarão sem renda enquanto durar o isolamento e às pequenas e médias empresas que não têm como bancar a folha de pagamentos. O empréstimo subsidiado para pagamento dos salários até o limite de dois mínimos está condicionado ao compromisso de não demitir. Para evitar que seja desviado para outras finalidades, o dinheiro cairá diretamente na conta do trabalhador.

O Brasil não tem dinheiro para despejar na economia como os Estados Unidos estão fazendo, mas terá de deixar de lado o desejado ajuste fiscal para socorrer os desassistidos nesse período de calamidade. Passada a emergência, o mundo terá de se reinventar. Agora, a prioridade é salvar vidas e evitar o colapso no sistema de saúde.

ALIÁS

Ao questionar o número de mortos, insinuando que os governadores estariam inflando os dados para fazer uso político, Jair Bolsonaro dá razão ao jurista Miguel Reale Júnior, que sugeriu exame de sanidade mental.

ROSANE DE OLIVEIRA


28 DE MARÇO DE 2020
INFORME ESPECIAL

UFRGS na vanguarda do novo normal

Um protótipo de uma máscara facial completa, de plástico, levaria bem mais de seis meses para ficar pronto. A Engenharia e o Design da UFRGS conseguiram passar por todo processo - do projeto à aprovação, incluindo testes com profissionais da saúde - em uma semana. O tempo recorde não é obra do acaso, mas sim de um dos grandes aprendizados gerados pela pandemia de coronavírus: trabalhar em rede e de forma cooperativa é muito mais eficiente do ponto de vista econômico e humano.

O sucesso da Engenharia da UFRGS começa com a criação de grupos virtuais e plurais de trabalho, bem mais ágeis nesse tipo de situação. A partir deles, as peças da máscara foram sendo projetadas. A velocidade dos contatos possibilitou que médicos e empresas se somassem à iniciativa. Já há pelo menos três interessadas na produção em grande escala da máscara desenvolvida pela universidade, que conseguiu encurtar o processo de fabricação e encontrar as matérias-primas mais baratas. O custo por unidade fica ao redor de R$ 10 para as impressas em 3D e de R$ 5 para as injetadas.

Esse tipo de máscara, que cobre integralmente o rosto, é um item escasso nos países com estágios mais avançados de contaminação. Por isso a escolha pela sua produção, adiantando uma pressão de demanda que virá ainda maior nas próximas semanas. Ela é usada por profissionais da saúde na hora de intubar pacientes graves. É comum haver respingos durante o procedimento, o que exige maior proteção para médicos e enfermeiros. Os projetos e especificações serão disponibilizados gratuitamente para outras instituições e empresas através do site www.ufrgs.br/lamef.

Outro fator decisivo para a agilidade do processo foi a flexibilização da burocracia pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Exigências e procedimentos que só criavam obstáculos inúteis foram retirados, encurtando caminhos para pesquisadores e empreendedores.

Chama a atenção também a integração entre universidade pública e empresas privadas, que trabalharam juntas em fases diferentes do projeto. A distância entre a academia e setores econômicos da sociedade é um tabu inventado pelo ranço ideológico que a crise está nos ajudando a superar. - Quando existe um objetivo comum, o engajamento aumenta muito - observa o professor da Engenharia da UFRGS Marcelo Favaro Borges. Também o reitor, Rui Oppermann, apoia o envolvimento integral da instituição no esforço de combate à pandemia.

O próximo desafio do Laboratório de Metalurgia Física da Escola de Engenharia da UFRGS, já em andamento, é bem mais difícil. Respiradores estragados e sem possibilidade de conserto foram doados pelo Hospital de Clínicas. Os equipamentos foram desmontados e cada peça mapeada, um processo conhecido como engenharia reversa. A partir daí, a ideia é buscar componentes da indústria nacional e desenhar soluções criativas, de baixo custo e aplicáveis para a fabricação desse equipamento, cada vez mais necessário daqui para frente.

Em uma semana, a UFRGS já avançou nessa frente mais do que conseguiria em meses de trabalho nas chamadas "condições normais". Ao que parece, existe um novo normal na sociedade brasileira, bem mais ágil, cooperativo e focado em resultados.

TULIO MILMAN