sábado, 27 de fevereiro de 2010



Sorte madrasta

Trinta e oito gaúchos acertaram na Mega-Sena, mas não ganharam nada. A lotérica não registrou a aposta

Igor Paulin - Miro de Souza/Ag. RBS/Ag. O Globo
AZAR NO JOGO

Apostadores protestam na lotérica Esquina da Sorte. Parte deles irá à Justiça para receber o prêmio

Trinta e oito moradores de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, dedicaram a comemorações a noite do sábado 20 de fevereiro. Eles haviam comprado cotas de um bolão feito pela lotérica Esquina da Sorte para a Mega-Sena – e acertaram as dezenas sorteadas.

Depois de conferir o resultado, Roberto Hoffman, um corretor de seguros de 52 anos, beijou a mulher, prometeu dar um imóvel a cada um de seus cinco filhos, quitar sua casa e comprar um carro com ar-condicionado. Como o prêmio total chegava a 53 milhões de reais, Hoffman calculou que receberia 1,3 milhão de reais.

Mesmo com uma aposta alta, de 440 reais, como a feita no bolão, a chance de acerto na Mega-Sena é ínfima: 1 em 758 000. "Acordei milionário no domingo", lembra Hoffman.

Mas então Eliana, sua mulher, resolveu visitar o site da Caixa Econômica Federal. Percebeu que havia algo errado ao constatar que o banco não assinalara acertadores e que o prêmio havia acumulado.

"Fui à lotérica reclamar e encontrei uma cambada de gente na minha situação", disse o corretor. A Esquina da Sorte não havia registrado os bilhetes. O dono do estabelecimento, José Paulo Abend, tornou-se suspeito de estelionato.
Ag. RBS/Ag. O Globo

ESQUINA DA URUCA

O dono da lotérica, José Paulo Abend, comprou três cotas, perdeu o prêmio e é suspeito
de estelionato

A polícia investiga se ele vendia bolões sem inscrevê-los nos computadores da Caixa, para embolsar o dinheiro dos fregueses. Abend diz ter comprado três das cotas do bolão e que, portanto, foi o maior prejudicado. O empresário atribui o erro a sua funcionária Diane Samar da Silva, que teria se esquecido de registrar os bilhetes.

Para provar sua versão, ele entregou à polícia um vídeo feito pela câmera de segurança da loja. O filme mostra Diane, que também entrou no bolão, indo à casa lotérica para conferir o jogo logo depois da realização do sorteio. Lá, ela constatou seu descuido.

Uma parte dos lesados exige que a Caixa lhes pague o prêmio. "Vou à Justiça", avisa Josmari Peixoto, que advoga para 22 apostadores. Ela argumenta que as lotéricas funcionam como extensões do banco, já que nelas é possível fazer operações como depósitos, saques e pagamentos de contas.

Em sua defesa, a Caixa afirma que as lotéricas não estão autorizadas a vender bolões, ainda que essa seja uma prática disseminada. Três dias depois da confusão, a sorte voltou a Novo Hamburgo.

Na quarta-feira, um apostador acertou cinco das seis dezenas da Mega-Sena e recebeu 21 000 reais. Ele comprou o bilhete em outra lotérica. A Esquina da Sorte foi fechada pela Caixa.

Lya Luft

Alegres e ignorantes

"Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares"
Ilustração Atômica Studio

Há fases em que, inquieta, eu talvez aponte mais o lado preocupante da vida. Mas jamais esqueço a importância do bom humor, que na verdade me caracteriza no cotidiano, mais do que a melancolia. Meu amado amigo Erico Verissimo certa vez me disse: "Há momentos em que o humor é até mais importante do que o amor".

Eu era muito jovem, na hora não entendi direito, mas a vida me ensinou: nem o amor resiste à eterna insatisfação, à tromba assumida, às reclamações constantes, à insatisfação sem tréguas. Bom humor zero. Desperdício de vida: acredito que, junto com dinheiro, sexo e amor, é a alegria que move o mundo para o lado positivo. Ódio, indignação fácil, rancores e inveja – e nossa natureza predadora – promovem mediocridade e atos cruéis.

Quando, seja na vida pessoal, seja como cidadãos ou habitantes deste planeta, a descrença e o desalento rosnam como animais no escuro no meio do mato, uma faísca de bom humor clareia a paisagem. Mas há coisas que nem todo o bom humor do mundo resolveria num riso forçado. Como senti ao ler, numa dessas pesquisas entre esclarecedoras e assustadoras (quando vêm de fonte confiável), que mais de 30% da nossa chamada elite é de uma desinformação avassaladora.

Aqui o termo "elite" não tem a ver com aristocracia, roupa de grife, apartamento em Paris ou décima recostura do rosto, mas com a gente pensante. A que usa a cabeça para algo além de separar orelhas. Pois, segundo a pesquisa, entre nós a imensa maioria dos ditos pensantes não consegue dizer o nome de um só ministro desta nossa República. Senadores, nem falar.

A turma que completa o 2º grau, que faz faculdade, que tem salário razoável, conta no banco, deveria ser a informada. Essa que não precisa comprar carro em noventa meses e deixar de pagar depois de quatro. A elite que consegue viajar conhece até algo do mundo, e poderia ter uma pequena biblioteca em casa.

Em geral, não tem. Com sorte, lê jornal, assiste a boas entrevistas e noticiosos daqui e de fora, enfim, é gente do seu tempo. Para isso não se precisa de muita grana, acreditem. Mesmo assim, essa elite é pouco interessada numa realidade que afinal é dela.

Resolvi testar a mim mesma: nomes de ministros atuais desta nossa República. Cheguei a meia dúzia. São quase quarenta. Então começo a bater no peito, em público, aliás. Num país onde mais da metade dos habitantes são analfabetos, pois os que assinam o nome não conseguem ler o que estão assinando, ou vivem como analfabetos, pois não leem nem o jornal largado na praça, os que sabem ler deveriam ser duplamente ativos, informados e participantes. Não somos.

Nossos meninos raramente sabem o título de seus livros escolares ou o nome dos professores (sabem o dos jogadores de futebol, dos cantores de bandas, das atrizezinhas semieróticas). Agimos como se nada fora do nosso pequeno círculo pessoal nos atingisse.

Além das desgraças longe e perto, vindas da natureza ou do homem, estamos num ano eleitoral. Inaugurado o circo de manobras, mentiras e traições escrachadas ou subliminares que conhecemos. Precisamos de claridade nas ideias, coragem nos desafios, informação e vontade, e do alimento dos afetos bons.

Num livro interessante (não importa o assunto) alguém verbaliza velhas coisas que a gente só adivinhava; um filme pode nos lembrar a generosidade humana; uma conversa pode nos tirar escamas dos olhos. Estar informado e atento é o melhor jeito de ajudar a construir a sociedade que queremos, ainda que sem ações espetaculares.

Mas, se somos desinformados, somos vulneráveis; se continuarmos alienados, bancaremos os tolos; sendo fúteis, cavamos a própria cova; alegremente ignorantes, podemos estar assinando nossa sentença de atraso, vestindo a mordaça, assumindo a camisa de força que, informados, não aceitaríamos.

Alegria, espírito aberto, curiosidade, coisas boas desta vida, todos as merecemos. Mas me poupem do risinho tolo da burrice ou da desinformação: o vazio por trás dele não promete nada de bom.

Lya Luft é escrito


Chico Xavier e a alma do Brasil

Oito anos depois de sua morte, o mito do médium mineiro está vivo, forte e será renovado por uma onda de filmes que celebram o centenário de seu nascimento. O que explica essa popularidade?

Martha Mendonça, de Pedro Leopoldo e Uberaba. Com Leopoldo Mateus, Mauricio Meireles

Ique Esteves - PSICOGRAFIA

O ator Nelson Xavier como Chico, em cena do filme que será lançado no mês que vem. O espiritismo ganha as telas

Como se explica que um homem pobre, doente e semi-instruído, nascido mulato no início do século passado, em um rincão distante de Minas Gerais, viesse a se tornar, ao longo de seus 92 anos de vida, e sobretudo depois dela, uma espécie de mito brasileiro – um nome capaz de emocionar, motivar e organizar as pessoas em torno de uma fé e do trabalho filantrópico que ela inspira?

O que havia na personalidade e nas ideias daquele homem careca, estrábico, sempre de peruca e óculos escuros, que se expressava com a fala pausada e amanteigada dos mineiros, capaz de sobreviver a sua morte em 2002 e transformá-lo em objeto de culto, de estudo e de interesse crescente dos meios de comunicação?

Por que o celibatário ao mesmo tempo doce e obstinado, que se dizia capaz de conversar com os mortos e foi perseguido e ridicularizado por isso, conseguiu expressar tão bem a alma brasileira a ponto de tornar-se, ele mesmo, um ícone popular e uma figura respeitada mesmo entre aqueles que não compartilham de suas polêmicas convicções?

As respostas a essas perguntas, se elas existirem, talvez surjam no decorrer deste ano, quando se celebra, com uma onda de filmes, o centenário de nascimento de Chico Xavier, o médium mais conhecido do mundo e uma das personalidades mais queridas dos brasileiros.

No dia 2 de abril, data de seu nascimento em 1910, estreará Chico Xavier – O filme. Baseado no best-seller de Marcel Souto Maior, As vidas de Chico Xavier, e dirigido pelo blockbuster Daniel Filho, o longa-metragem vai ocupar 300 salas, promete lotar os cinemas e apresentar ao grande público (sobretudo aos jovens)uma história que, se fosse roteiro de ficção, seria classificada de inverossímil.

Ou, no mínimo, exagerada. Garoto pobre do interior perde a mãe aos 5 anos, é maltratado na infância e começa a ver espíritos; escreve livros que seriam ditados por grandes nomes da literatura já mortos e ganha projeção nacional ao psicografar mensagens de pessoas que já morreram para parentes inconsoláveis.

Lança mais de 400 obras literárias, que vendem 50 milhões de exemplares – mas doa tudo para a caridade. Sem boa saúde, trabalha sem parar e vive de seu salário do Ministério da Agricultura até morrer. Sem ser católico, vira quase um santo.


27 de fevereiro de 2010 | N° 16259
CLÁUDIA LAITANO


Carta aberta ao futuro governador

Caro futuro governante. Antes de mais nada, parabéns pela eleição. Seja quem for o senhor (ou a senhora), desejo sinceramente que encontre entre seus adversários políticos boa vontade e “fair play” suficientes para que possa trabalhar da melhor forma possível nos próximos quatro anos. Por ter recebido o voto de confiança da maioria dos eleitores gaúchos, saiba que conta desde já com o meu respeito.

Imagino que sua agenda esteja cheia de compromissos nesses primeiros dias depois da eleição – e que os assuntos mais urgentes envolvam questões administrativas e financeiras, além de conversas com os partidos que o apoiaram para decidir quem vai comandar esta ou aquela secretaria estratégica. Percebo que, na prática, nem sempre a pessoa que mais entende de uma determinada área é aquela que acaba sendo nomeada para ocupar o cargo de secretário de Estado.

Há casos em que, dentro de uma mesma equipe de governo, uma pessoa cheia de qualificações em uma determinada área é deslocada para outra, considerada mais importante, porque os arranjos políticos assim o determinam, o que é uma pena.

Esta cartinha antecipada de boas-vindas inclui um único e singelo pedido: em meio às muitas negociações para decidir quem será o secretário do Planejamento, da Segurança Pública ou da Educação, tire alguns minutos para pensar com carinho na escolha do próximo secretário de Cultura do Rio Grande do Sul.

Você (me perdoe a informalidade, mas, fazer o que, nasci nos anos 60...) pode não dizer em voz alta, mas talvez pense que a Secretaria de Cultura não é prioridade em um Estado tão cheio de problemas como o nosso.

Em um raciocínio mais pragmático ainda, pode calcular que, mesmo diante dos cenários mais desoladores na área cultural, dificilmente se verá uma passeata pela Borges de Medeiros ou uma concentração na Praça da Matriz exigindo uma política mais eficiente na área (ou “alguma” política que seja, algum ensaio de reflexão interna sobre o papel do Estado na Cultura, concordemos ou não com essa visão).

Essa apatia não é culpa sua ou dos governadores que o precederam, mas da sociedade gaúcha como um todo, que foi se acostumando com um cenário cultural cada vez mais minguado até chegar ao ponto em que nem sequer mais sabemos o que perdemos – olhe para os outros Estados, os ricos e os nem tanto, e vai perceber o quanto estamos em defasagem.

Seja quem for, o futuro secretário estadual de Cultura vai encontrar um orçamento limitado para trabalhar, é verdade. Mas é exatamente quando falta o dinheiro que mais se sente falta de um líder, alguém com habilidade para eleger prioridades e investir nelas, buscando apoio na sociedade civil e na iniciativa privada para desenvolver os projetos que o Estado não tem condições de bancar sozinho.

O secretário de Cultura, como o de qualquer outra área, deve ser um gestor competente, mas não basta nomear um sujeito com PhD em administração se ele não souber a diferença entre o Iberê Camargo e um certo Zezé com o mesmo sobrenome.

O secretário de Cultura deve gostar de ler bons livros, de ir ao teatro, de frequentar museus – e não por “exigências do cargo” mas por uma necessidade visceral de alimentar o espírito com algo além dos balancetes ou da seção de Política do jornal. Na Cultura, mais do que em qualquer outra área, deve valer a velha máxima do Barão de Itararé: de onde nada se espera, daí é que não sai nada.

Você tem a chance de ser lembrado no futuro como o governador que ajudou a reerguer a autoestima intelectual e cultural do Rio Grande do Sul. Não esqueça disso, e os seus eleitores também não vão esquecer.


Os cavalos do mar

27 de fevereiro de 2010 | N° 16259
NILSON SOUZA


A maior crueldade que já cometi com um animal foi ter obrigado uma égua a atravessar uma pinguela tão estreita que até o equilibrista do Cirque du Soleil hesitaria antes de dar o primeiro passo.

Não alego inocência, mas tenho atenuante: eu era menos que adolescente e fui intimado por um tio a buscar o bicho no campo. Parecia fácil, a égua era mansinha, mas estava do outro lado da sanga. E o único caminho que eu conhecia passava pela prancha que servia de ponte entre as duas margens.

Não tive dúvidas: passei primeiro e puxei com força a corda que prendia o pescoço da cavalgadura até que ela deixou de resistir e veio ao meu encontro, cruzando as patas como uma top model na passarela. Passou. Mas com tanto medo que quase me atropelou do outro lado. Foi aí que percebi que eu é que tinha sido a verdadeira cavalgadura por não ter procurado um local mais apropriado e seguro para a travessia.

A inteligência humana – que nem sempre funciona de forma satisfatória, como se vê no caso que acabei de relatar – nos faz senhores dos demais animais do planeta.

Éramos na pré-história da humanidade talvez o mais frágil deles, não tínhamos os dentes do tigre, nem as garras da águia ou as presas do mamute. Mas um dia acendeu-se uma luz no cérebro daquele serzinho que se esgueirava pelas sombras e se escondia nas cavernas.

E ele passou a desenvolver estratégias para dominar os grandes animais, para abatê-los e para submetê-los à sua vontade e aos seus interesses. Talvez esta luz seja, na verdade, apenas o dedo oponente, que nos permite empunhar armas, manejar cordas e construir armadilhas, mas preferimos ainda hoje acreditar que somos o gênio da lâmpada, mesmo nesta era digital em que os dedos parecem ter mais importância do que os neurônios.

A verdade é que dominamos e domesticamos a bicharada. Somos capazes de montar touros bravios e de fazer gato e sapato com os cavalos, que se tornaram verdadeiros escravos dos homens nesta parte do planeta.

Em outras paragens, camelos e elefantes também são usados como meios de transporte ou como máquinas de carga. Usamos e abusamos da paciência destes bichões, que parecem desconhecer a força que têm.

Acabei de ler A Viagem do Elefante, do português José Saramago, que relata a travessia de meia Europa por um paquiderme presenteado pelo rei de Portugal ao arquiduque da Áustria.

Mas a história mais interessante do livro é o causo de uma vaca que se perdeu no campo com sua cria e foi atacada por uma matilha de lobos. Durante 12 dias, conta o contador, ela enfrentou bravamente os agressores com chifradas e patadas, protegendo o filhote, até que conseguiu escapar.

Quando os homens a encontraram e a levaram para a aldeia, continuou bravia, não deixava ninguém se aproximar. E seus donos, não entendendo que ela aprendera a lutar por sua vida e por seu destino, mataram-na em dois dias.

Já os cavalos do mar estão morrendo de mansidão. Dá para entender o bicho homem?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010



23 de fevereiro de 2010 | N° 16255AlertaVoltar para a edição de hoje
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

O retrato perfeito

O outro dia contei aqui que volta e meia sou obrigado a submeter minha biblioteca a uma dieta, doando livros a escolas e instituições. Foi num desses regimes de emagrecimento literário que me desfiz, naturalmente sem querer, de O Apanhador no Campo de Centeio e Nove Estórias, duas obras-primas de J.D. Salinger.

Mas Deus ajuda os distraídos. Na Feira seguinte achei em um balaio, algo machucados, é verdade, os dois volumes. Arrematei na mesma hora. Tenho ambos agora à minha frente, devidamente restaurados, enquanto componho esta crônica. Já reli meus trechos preferidos: gosto de interromper ao perceber que, se não paro, acabo percorrendo cada vírgula, linha e parágrafo de tudo o que J.D. Salinger produziu.

Pois é essa sua grande singularidade. No zênite de seu poder criativo, aplaudido pela crítica, idolatrado por milhares e milhares de leitores, ele abandonou a sedutora agitação de Nova York para se refugiar entre os altos muros de uma mansão em Cornish, New Hampshire. Mais: limitou sua obra a quatro escassos livros.

Numa de suas raríssimas entrevistas – e também a última, concedida em 1974 – disse ao jornalista: “Há um enorme paz em não publicar. Publicar é uma terrível invasão de privacidade. Gosto de escrever. Mas escrevo para mim mesmo e para meu prazer”.

Ou seja: Salinger não deixou o ofício, que exerceu até morrer, há três semanas. Só não queria dividir seu poder de criação.

Nisso se parece com outro gigante da literatura. Stendhal confessou que escrevia apenas “para cem leitores, e desses seres infelizes, amáveis, encantadores, nada hipócritas, nada morais, aos quais gostaria de agradar, conheço apenas um ou dois.”

O autor de O Vermelho e o Negro e daquele inesquecível A Cartuxa de Parma não se preocupava também em dividir seus romances e ensaios, tanto que escrevia apenas para cem pessoas e não conhecia senão uma ou duas.

Morto depois de quase cinco décadas de solidão e de silêncio, é certo que Salinger deve ter deixado outros livros prontos, além do quarteto que lançou. Se apenas um deles tiver a densidade de O Apanhador no Campo de Centeio e a magnífica complexidade do personagem Holden Caulfield, estará enriquecida a ficção universal. Pois é esse o mais perfeito retrato que já se traçou de um adolescente.

Uma linda terça-feira ainda que com chuva conforme previsão do tempo

domingo, 21 de fevereiro de 2010



O tabu da masturbação resiste

Maioria diz que se masturbar é "saudável e natural", mas não assume a prática; dificuldade com o tema é mais gritante entre as mulheres

EDITORA DO VITRINE

Inacreditável. Sessenta por cento da população do país não se masturba. A maioria dos brasileiros pesquisados reconhece que a prática é "saudável e humana", mas não a admite, na hora de preencher o questionário sobre os próprios costumes.

As mulheres elevam a taxa da população brasileira que supostamente não se toca: 78% disseram não ter o hábito. Entre os homens, metade afirmou o contrário.

"Esse resultado só mostra que a mulher ainda não pode falar no tema", diz a antropóloga Mirian Goldenberg. A psicanalista Regina Navarro Lins acrescenta: "Embora elas se masturbem menos que os homens, não é nessa proporção que aparece na pesquisa".

Pelo menos nas regiões mais desenvolvidas do país, as mulheres estão se masturbando mais, "ainda com muita culpa", fala a psicanalista. No raciocínio dela, um termômetro é o crescimento do mercado de sex shops, "que têm muito mais objetos para as mulheres".

Na última década, o homem deixou de ser o maior alvo dos sex shops -talvez por isso muitas lojas adotem agora a classificação de "butique erótica". Nesse negócio, que cresce 15% ao ano, o público feminino já responde por mais de 70% das vendas, segundo a Associação Brasileira do Mercado Erótico.

"As brasileiras compram esses produtos para a masturbação. Poucas têm coragem de usá-los com o companheiro, porque ele compete com o vibrador, acha ofensivo. São tantas que não têm coragem de potencializar seu prazer nem sozinhas, quanto mais com parceiros", diz Navarro Lins.

Os números acanhados da masturbação feminina impressionam até o psiquiatra Joel Rennó Júnior, coordenador do Pró-Mulher do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. "É surpreendente perceber que, apesar das conquistas dos últimos anos, o tabu persiste." Ele diz ainda ver, na prática clínica, homens chocados ao descobrir que suas parceiras também se divertem sozinhas.

A dificuldade de admitir a masturbação é a dificuldade de admitir a importância do prazer na vida, na tradução didática da educadora Maria Helena Vilela, do instituto Kaplan -Centro de Estudos da Sexualidade Humana. "Para a mulher que não se estimula sozinha, é mais difícil aprender a gozar numa relação a dois", lembra.

A mulher não pratica ou não assume a masturbação porque não pode mostrar que gosta de sexo. "É evidente que a mentalidade mudou muito, mas a mudança de comportamento é bem mais difícil. Predomina ainda a crença do século 19 de que mulher séria não gosta de sexo", diz a psicanalista.

É por isso também, segundo ela, que algumas não transam no primeiro encontro, ou não telefonam para o homem do seu interesse. Agem por condicionamento e estratégia, para não ""assustar" o homem com sua autonomia sexual, para evitar o julgamento e o descarte. "Algumas fingem tanto que acabam se convencendo de que não gostam de sexo", afirma.

Rennó reforça: "Mesmo que não se dê o direito ao prazer, toda mulher saudável, tenha a idade que tiver, gosta tanto de sexo quanto o homem".

Dar e receber

Pode ser. Mas eles gostam muito mais de sexo anal do que elas. Embora 57% das mulheres afirmem praticar essa variação, mais da metade dessas declaram não gostar. Entre os homens, 72% praticam, 22% dos quais dizem não gostar.

"Homens têm fixação no ânus, relatam que é mais apertado e quente que a vagina, por isso a relação seria mais prazerosa", diz Vilela. Segundo a educadora, a resistência maior da mulher está ligada ao fato de que essa prática exige dela um nível muito alto de excitação, para ultrapassar o desconforto.

Outro problema para a mulher é que o sexo anal ainda tem conotação pejorativa, socialmente. "É mais sacana. Exatamente por aí que estimula mais o homem", analisa Vilela.

Os homens também se divertem muito mais fazendo sexo oral nas parceiras, do que elas, neles. A pesquisa mostrou que 81% deles praticam a modalidade e que só 14% desses não gostam. Entre as mulheres, 72% praticam, mas 24% dessas disseram não gostar. Por que fazem, então? "Porque é dando que se recebe", brinca Maria Helena Vilela.
HELOÍSA HELVÉCIA

sábado, 20 de fevereiro de 2010



21 de fevereiro de 2010 | N° 16253
MARTHA MEDEIROS


O direito ao sumiço

Aos 20 anos, saí pelo mundo sozinha para tentar entender o real significado de “estar” sozinha. Hoje, a tecnologia não deixa mais ninguém sumir por uns tempos

São poucos os adolescentes que não sonham, um dia, em passar uma temporada fora do país.

Nem todos realizam, obviamente não é um sonho barato. Mas juntando umas economias aqui, um fundo de garantia ali, se inscrevendo num programa de intercâmbio ou simplesmente munindo-se de coragem e uma mochila, muitos conseguem embarcar num avião: hora de dar um tempo pro Brasil, aprender outro idioma, meter a cara lá fora.

Eu tive essa oportunidade aos 20 e poucos anos. Poupei dinheiro, acumulei férias não vencidas na empresa onde trabalhava e saí para o mundo sozinha, interessada em conhecer vários lugares mas, principalmente, interessada em entender o que significava, afinal, esse “sozinha”.

Que delícia. Ninguém saber onde estou, o que comi no almoço, quais os meus medos, quem eram as pessoas com quem eu cruzava. Olhar para os lados e não reconhecer nenhum rosto, direcionar meus passos para onde eu quisesse, sem um guia, sem um acordo prévio, liberdade total.

Desaparecida no mundo. Isso me conferia uma certa bravura, fortalecia minha autoestima. Claro que eu telefonava para casa de vez em quando e escrevia cartas, fazendo os relatos necessários e tranquilizando o pessoal, mas eu estava sozinha da silva com meus pensamentos e emoções novas.

Aí veio a tecnologia, com seus mil olhos, e acabou com essa história de sozinha da silva. Hoje ninguém mais consegue tirar férias da família, dos amigos e da vida que conhece tão bem.

Antigamente era uma aventura fazer um autoexílio, sumir por uns tempos. Mas isso foi antes do Skype. Do MSN. Do e-mail. Hoje, nem que você vá para outro planeta consegue desaparecer.

Claro que só usa essa parafernália tecnológica quem quer. Você pode encontrar uma dúzia de cybercafés em cada quarteirão da cidade em que está e passar reto por eles, fazer que não viu.

Mas sua mãe, seu pai, sua namorada, sua irmã, seu melhor amigo, todos eles sabem que você está vivendo coisas incríveis e querem que você conte tudinho, em detalhes. Não custa nada mandar um sinal de vida, pô. Todos os dias, claro! Dois boletins diários: às 11h da manhã e no fim da noite, combinado.

Sei que quando chegar a hora de minhas filhas sumirem no mundo vou rezar uma novena para abençoar a sagrada internet, mas não quero esquecer jamais da importância de se respeitar o distanciamento e o prazer que o viajante sente ao estar momentaneamente fora de alcance, sem rastreamento, sem monitoração.

Para os que ficam, é um alívio poder sentir próximo aquele que está longe, mas aquele que está longe tem o direito ao sumiço – e o dever até.

Quem não desfruta do privilégio de deixar uma saudade atrás de si e curtir o “não ser”, “não estar” e “não ser visto”, perde uma das sensações mais excitantes da vida, que é se sentir um estrangeiro universal.

Claudio de Moura Castro

Sucesso tem fórmula

"Serve para toda competição: qualidade valorizada, seleção dos melhores, prática obsessiva e persistência. Quem aplicar essa receita terá os mesmos resultados"

Durante séculos, a Inglaterra dominou os mares e, dessa forma, muito mais do que os mares. Para isso tinha os melhores navios. E, para tê-los, precisava de excelentes carpinteiros navais.

Com a tecnologia do ferro, os navios passaram a ter couraça metálica. Impossível manter a superioridade sem caldeireiros e mecânicos competentes. Uma potência mundial não se viabiliza sem a potência dos seus operários.
Ilustração Atômica Studio

A Revolução Industrial tardia da Alemanha foi alavancada pela criação do mais respeitado sistema de formação técnica e vocacional do mundo. Daí enchermos a boca para falar da "engenharia alemã". Mas, no fim das contas, todos os países industrializados montaram sistemas sólidos e amplos de formação profissional. Para construir locomotivas, aviões, naves espaciais.

Assim como temos a Olimpíada para comparar os atletas de diferentes países, existe a Olimpíada do Conhecimento (World Skills International). É iniciativa das nações altamente industrializadas, que permite cotejar diversos sistemas de formação profissional. Compete-se nos ofícios centenários, como tornearia e marcenaria, mas também em desenho de websites ou robótica.

Em 1982, um país novato nesses misteres se atreveu a participar dessa Olimpíada: o Brasil, por meio do Senai. E lá viu o seu lugar, pois não ganhou uma só medalha. Mas em 1985 conseguiu chegar ao 13º lugar. Em 2001 saltou para o sexto. Aliás, é o único país do Terceiro Mundo a participar, entra ano e sai ano.

Em 2007 tirou o segundo lugar. Em 2009 tirou o terceiro, competindo com 539 alunos, de sete estados, em 44 ocupações. É isso mesmo, os graduados do Senai, incluindo alunos de Alagoas, Goiás e Rio Grande do Norte, conseguiram colocar o Brasil como o segundo e o terceiro melhor do mundo em formação profissional! Não é pouca porcaria para quem, faz meio século, importava banha de porco, pentes, palitos, sapatos e manteiga! E que, praticamente, não tinha centros de formação profissional.

Deve haver um segredo para esse resultado que mais parece milagre, quando consideramos que o Brasil, no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), por pouco escapa de ser o último. Mas nem há milagres nem tapetão. Trata-se de uma fórmula simples, composta de quatro ingredientes.

Em primeiro lugar, é necessário ter um sistema de formação profissional hábil na organização requerida para preparar milhões de alunos e que disponha de instrutores competentes e capazes de ensinar em padrões de Primeiro Mundo. Obviamente, precisam saber fazer e saber ensinar. Diplomas não interessam (quem sabe nossa educação teria alguma lição a tirar daí?).

Em segundo lugar, cumpre selecionar os melhores candidatos para a Olimpíada. O princípio é simples (mas a logística é diabolicamente complexa). Cada escola do Senai faz um concurso, para escolher os vencedores em cada profissão.

Esse time participa então de uma competição no seu estado. Por fim, os times estaduais participam de uma Olimpíada nacional. Dali se pescam os que vão representar o Brasil. É a meritocracia em ação.

Em terceiro lugar, o processo não para aí. O time vencedor mergulha em árduo período de preparação, por mais de um ano. Fica inteiramente dedicado às tarefas de aperfeiçoar seus conhecimentos da profissão. É acompanhado pelos mais destacados instrutores do Senai, em regime de tutoria individual.

Em quarto, é preciso insistir, dar tempo ao tempo. Para passar do último lugar, em 1983, para o segundo, em 2007, transcorreram 22 anos. Portanto, a persistência é essencial.

Essa quádrupla fórmula garantiu o avanço progressivo do Brasil nesse certame no qual apenas cachorro grande entra. Era preciso ter um ótimo sistema de centros de formação profissional.

Os parâmetros de qualidade são determinados pelas práticas industriais consagradas, e não por elucubrações de professores. Há que aceitar a ideia de peneirar sistematicamente, na busca dos melhores candidatos. É a crença na meritocracia, muito ausente no ensino acadêmico.

Finalmente, é preciso muito esforço, muito mesmo. Para passar na frente de Alemanha e Suíça, só suando a camisa. E não foi o ato heroico, mas a continuidade que trouxe a vitória.

A fórmula serve para toda competição: qualidade valorizada, seleção dos melhores, prática obsessiva e persistência. Quem aplicar essa receita terá os mesmos resultados.

Claudio de Moura Castro é economista - claudiodemouracastro@positivo.com.br


Guarda-roupa de gente grande

Difícil resistir: toda mamãe que tem queda por roupas e recursos para bancar caprichos, próprios ou filiais, cultiva em sua filhinha um estilo Suri de ser

Cristiane Sinatura - Lailson Santos


ARMÁRIO COMPLETO
Maria Eduarda, 6 anos: bolsinhas de grife e cinco pares de óculos para combinar com as roupinhas nunca repetidas de cada dia

The Grosby Group
COPIADINHA

Suri Cruise, 3 anos: saltinho, batom e estilo da menina mais imitada do mundo

Mãe que é mãe dificilmente resiste a comentar as roupinhas cheias de estilo, as bolsas graciosas e os sapatinhos de salto do guarda-roupa de, calcula-se por alto, 3 milhões de dólares de Suri Cruise, 3 anos, a encantadora filha de Tom Cruise e Katie Holmes.

Pode ser para falar mal - onde já se viu botar salto em criança? -, mas geralmente é para se derreter de vontade de encontrar alguma coisa igualzinha para as próprias filhas. Guardadas as proporções entre gente normal e um poderoso casal hollywoodiano, toda mulher que tem pendor para comprar roupas para si mesma simplesmente adora entupir de coisas lindas o armário das filhas desde o momento em que vêm ao mundo, e até antes.

Quando a menininha começa a andar e a apreciar os modelos tão lindos que parecem tecidos de imagens arquetípicas da graciosidade infantil, mamãe se descontrola de vez. "Falta ocasião para a Luna usar o tanto de roupa que tem", confessa a paulistana Juliana Gheler, 34 anos, sobre o armário recheado da filha de 1 ano e 8 meses, que tem metade da idade mas o dobro de trajes do irmão Ariel, de 4.

Juliana segue uma espécie de sistema de compensação filial: equilibra com brinquedos novos para Ariel as quantias gastas nas pilhas de vestidinhos para Luna. Os quais não se limitam à faixa etária da filha. "Ela tem roupinhas para crianças de 4 anos. Quando dá, ajusto. Se não, guardo e espero o dia em que sirva", diz Juliana, que acaba de voltar de uma viagem aos Estados Unidos com a mala cheia de tesouros da linha infantil da inglesa Stella McCartney.

Seguindo a mesma vertente, estilistas como Marc Jacobs e Giorgio Armani também passaram a criar peças para os filhos que sejam irresistíveis para os pais. Grifes nacionais de gente grande, e abonada, como Isabela Capeto, Mixed, Farm, Fit e Le Lis Blanc, abriram seções para crianças. A ideia é manter o espírito da marca, e não simplesmente miniaturizar a linha adulta.

"Se uma roupa para a mulher adulta tem uma estampa que pode cair bem nas menininhas, desenvolvemos uma peça parecida, mas sem perder a cara de roupa de criança", explica Traudi Guida, sócia da Le Lis, que começou a atender o público infantil em agosto e, entre outubro e dezembro, contabilizou 16 000 roupinhas vendidas, ao preço médio de 100 reais. "Esta temporada serviu de teste. A aceitação foi maior do que se esperava, e agora vamos expandir", planeja.

Há cinco anos organizando desfiles infantis, a consultora de imagem Ana Cury constata o mais do que evidente: o capricho no visual das pequenas Suris está diretamente ligado ao perfil das mães. "São mulheres que têm uma carreira, sabem da importância da imagem e deixaram para ter filhos mais tarde. Quando engravidam, querem que sua posição social se transmita para toda a família", analisa.

A empresária Ana Cristina Bonfim, 33 anos, mãe de Sofia, 2, se encaixa perfeitamente no perfil. Sempre atenta às novidades, não passa semana sem comprar alguma roupinha para a filha. O entusiasmo supera amplamente as necessidades. Sofia tem dez novos pares de sapatos para o inverno que ainda nem começou.

"Eu sempre quis ter uma menina justamente para enfeitá-la toda", explica Ana Cristina, explicitando um desejo universal. As duas muitas vezes saem combinando a estampa de vestidos comprados na mesma loja. Mãe de Gabriela, 6 anos, e Julia, 3, a dona de casa Denise Lintz, 36, é outra que se orgulha de compor o visual das filhas com minúcias de stylist - o assessor de guarda-roupa que veste as famosas.

Denise gasta cerca de 1 500 reais por mês com mimos variados, inclusive sapatos de salto alto à moda de Suri. "Na verdade, um saltinho", releva. Seguindo pelo mesmo rumo do alto de seus 3 aninhos, Luana, filha única da secretária carioca Márcia Otero, 40, faz coleção: de seus 28 pares de sapatos, sete são de saltinho.

"Nós fizemos um acordo: se ela largasse a chupeta, ganhava um sapato de saltinho. Agora, ela não quer saber de outro tipo", diz Márcia, que gasta cerca de 3 000 reais por mês com roupas e acessórios infantis, com pleno apoio do marido, Edgard Moraes, 55 - "Ele é até pior que eu."

Do tipo que não sai de casa sem abrir seu kit de maquiagem infantil e passar batom (no momento, favorece o vermelho), Luana fez a mãe ir de loja em loja atrás de um vestidinho preto para seu aniversário. Para dormir, usa camisola de seda. "Não medimos esforços porque achamos que vaidade tem de vir desde pequena", afirma Márcia.
Fotos Lailson Santos e Ernani D'Almeida


VAIDADE QUE VEM DO BERÇO

Sofia, 2 anos, combina vestido e sapato com a mãe, Ana Cristina, que sempre quis ter menina "para enfeitá-la toda"; Luana, 3, tem 28 pares de sapatos, sendo sete de saltinho, que ganhou em troca de largar a chupeta

Vaidade muitíssimo bem informada. "Com 6 anos, minha filha sabe melhor que eu o nome dos estilistas que usa", diz a farmacêutica Renata Berardocco, 39, sobre Vittoria, dona de um armário repleto de roupinhas Ronaldo Fraga e Isabela Capeto, que custam em média 300 reais.

Dona de uma grife infantil, a estilista carioca Neusa Farina, 38, faz da caçula Maria Eduarda, 6, modelo de prova das roupas que desenha. "Ela adora sapato de salto, sai desfilando com os meus pela casa", conta Neusa. Também tem bolsinhas de marcas que mulheres adultas às vezes passam a vida para conseguir, como Prada e Louis Vuitton.

Óculos de grau, por enquanto, são cinco pares em cores diferentes, para combinar com o resto do visual. Segundo a psicopedagoga Ana Cássia Maturano, a vontade de parecer gente grande faz parte da psique infantil desde que o mundo é mundo, e cabe aos pais dosar os excessos, de acordo com os próprios valores morais - sem falar nos materiais mesmo.

"Toda menina quer pegar a roupa da mãe para brincar. Isso é saudável, mas os pais têm de tomar o cuidado de não reduzir o filho a um boneco nem transformá-lo em um pequeno adulto", explica. Tomado esse cuidado, convenhamos: tem coisa mais fofa do que uma pequena Suri?


Existe “jeito feminino” de trabalhar?

Pesquisas tentam mostrar como as mulheres lidam com a carreira, a família e o dinheiro
Daniella Cornachione
sxc.hu


Cinco anos depois de abrir uma assessoria imobiliária no Rio de Janeiro, Edvan Costa convidou a irmã, Églima da Costa Rodrigues, para assumir a gerência financeira e tornar-se sócia do negócio. "Ele diz que eu trouxe um toque feminino para a empresa.

Pensei mais nos detalhes, do uniforme dos funcionários ao jeito como eles deveriam tratar os clientes", diz Églima. Mulheres dedicarem atenção a detalhes parece clichê, mas haverá fundamento real para esse tipo de expectativa em relação ao comportamento delas?

As novas análises mostram, entre outros aspectos, que as mulheres tendem a não ser tão obsessivas com a carreira como os homens. Isso acontece porque elas têm outras prioridades que podem ser tão ou mais importantes do que o trabalho.

Segundo um estudo publicado em 2009 pelo National Bureau of Economic Research (ONG americana que realiza pesquisas no campo da economia), entre trabalhadores com alto nível de educação, elas ganham menos por trabalharem menos horas e por interromper a carreira mais vezes, por causa da família.

Se a dedicação ao emprego for maior do que aos filhos e ao marido, a tendência é de que a mulher se sinta culpada por isso. Sônia Alcântara, de 49 anos, comanda junto com o marido, Roberto, uma empresa de produtos odontológicos, em Londrina.

A dedicação do casal ao negócio é tanta que Sônia já se sentiu dividida entre o trabalho e os três filhos. "Eu achava que não dava atenção o bastante para eles", afirma. O jeito foi deixar bem claro que, em casa, a prioridade é estar com a família. "Quando os meus filhos estão presentes, eu largo tudo", diz Sônia.

Sônia também faz parte de outra estatística, que diz respeito às mulheres no comando de empresas. O Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP) estima que 40% dos micro e pequenos empreendimentos hoje são gerenciados por elas. Apesar de dividir o comando com o marido, é Sônia quem cuida da administração da empresa, enquanto ele se ocupa com a criação dos produtos.

Durante o Fórum Econômico Mundial 2010, em Davos, na Suíça, foi apresentada a última edição do ranking que mede a desigualdade entre mulheres e homens no mercado de trabalho. O estudo "Global Gender Gap Report" ("Relatório Global sobre a Diferença entre os Gêneros") é feito em 134 países. Neste ano, o Brasil perdeu nove posições e ocupa o 82º lugar. A queda na classificação representa a discriminação, explícita ou velada, que permeia as relações de trabalho no país.

As diferenças salariais é uma forma de medir o tamanho da desigualdade entre homens e mulheres nas empresas. As trabalhadoras ainda ganham menos. De acordo com um levantamento do banco Goldman Sachs, no mundo, elas ganham 57% do que eles ganham.

Essa porcentagem cai para 48% em onze grandes países em desenvolvimento. No Brasil, a remuneração das mulheres que têm nível superior completo representou 57,9% da que os homens com o mesmo grau de escolaridade. O dado é referente ao ano de 2008 e foi divulgado pelo governo na Relação Anual de Informações Sociais.

Apesar de ganhar menos do que os homens, as mulheres são tão indisciplinadas quanto eles quando o assunto é poupar. É o que mostra uma pesquisa exclusiva encomendada à Sophia Mind, consultoria recém-criada cuja especialização é o mundo feminino. O levantamento foi feito virtualmente com mais de 2 mil mulheres que moram em seis capitais brasileiras.

Pouco menos que a metade, 40%, disseram não pensar na aposentadoria ainda. O número é ligeiramente menor entre a faixa dos 31 a 40 anos de idade - 33% ainda não dedicaram algum tempo ao assunto. Entre as mulheres que têm entre 41 e 50 anos, 43% ainda estão avaliando como vão se preparar para a aposentadoria.

Flora Conceição Nogueira tem 47 anos e admite não ter pensado no assunto ainda. "A renda que eu terei como aposentada deverá ser parecida com a de hoje, mas quero ter um dinheiro de sobra para viajar", diz. Formada em Letras, Flora mantém dois empregos: secretária de uma escola de inglês e tutora de pedagogia à distância.

Como elas agem

As mulheres gostam mais de trabalhar em grupo. Entre altos executivos, elas são muito mais assíduas a reuniões de conselho e tendem a participar mais de comitês de monitoramento, controle e fiscalização. Com a presença de mulheres nessas instâncias, os homens também se tornam mais assíduos, concluiu um estudo publicado em 2009 no Journal of Financial Economics da Universidade Rochester, nos EUA. Ou seja, um comportamento positivo das executivas contagia os colegas de trabalho.

Entretanto, o resultado não é bom se a inclusão de mulheres no alto escalão for forçada. O mesmo estudo alerta que os indicadores não melhoraram nas empresas em que elas são colocadas em determinados postos por meio de sistema de cotas.

As mulheres parecem trabalhar para buscar algo mais do que dinheiro. Em "The sexual paradox", a jornalista e psicóloga Susan Pinker diz que elas querem recompensas não apenas financeiras, mas também "intrínsecas" (como satisfação, bem estar e sensação de colaborar com algo importante). Elas têm interesses mais amplos, gostam de ser úteis e se preocupam com o efeito que causam nos outros.

Fiona Greig, cosultora da McKinsey e PhD em Políticas Públicas pela Universidade de Harvard, analisou o comportamento de um grupo de jornalistas e concluiu que as mulheres estão menos inclinadas a negociar o salário com a chefia em busca de aumento. No grupo de executivos estudados, o hábito de negociar, mais masculino, reduziu em média 17 meses o tempo de espera até o próximo aumento ou promoção.

Susan Peters, diretora de aprendizado da empresa General Electric, disse à revista BusinessWeek que mulheres quando avisam que estão saindo, estão saindo. Homens esperam uma contraoferta.

Quando trabalham como profissionais autônomas, as mulheres criam vínculos mais longos com seus clientes. Elas trocam de clientes com menor frequência do que seus concorrentes homens, de acordo com uma pesquisa publicada no ano passado pela London Business School.

No entanto, são nas trocas que surgem os aumentos de remuneração. Por isso, os homens profissionais autônomos são mais propensos a trocar de clientes e ganham mais.

Os estudos mostram que há, sim, um jeito de trabalhar feminino. Apesar de ser uma tarefa mais árdua para mulheres conciliar a vida pessoal e profissional, as jovens acreditam cada vez mais que isso é possível.

Segundo pesquisa realizada pela Accenture, com mil mulheres entre 22 e 35 anos, 94% afirma que creem poder atingir uma vida profissional satisfatória e pessoal gratificante. E há exemplos de que elas estão certas.


20 de fevereiro de 2010 | N° 16252
NILSON SOUZA


Sermão aos pássaros

Sempre que saio a caminhar pela manhã, converso com os passarinhos. Na verdade, com um pássaro específico que se aproxima de mim na hora da ginástica. Às vezes é uma pomba-do-mato, em outras ocasiões pode ser um bem-te-vi, um joão-de-barro, um sabiá, ou mesmo uma cambaxirra, que aprendi na infância a chamar de corruíra.

É uma conversa mística, confesso. Naquele lugar estive pela última vez com um amigo que já voou para outra dimensão.

Então, gosto de imaginar que seu espírito vem me dar um alô nas asas de um daqueles pássaros. Bobagem, meu predominante lado cético sabe disso. Mas é a minha forma de lembrar e de reverenciar a memória de uma pessoa que foi muito especial para mim.

Os pássaros nem ligam para a minha fala, que nada mais é do que uma oração silenciosa. Eles apenas a inspiram. Acredito que também não ouviram São Francisco de Assis, embora a lenda do santo conte que o bando de aves ficou em silêncio até que ele terminasse a sua pregação.

Pois o homem que falava com os animais parece ser a inspiração, também, desta Campanha da Fraternidade que acaba de ser lançada pelas igrejas cristãs do país. Os religiosos sugerem que as pessoas deem menos valor ao dinheiro, renunciem ao lucro e ao consumismo, deixem a ganância de lado. Ou seja: que todos passemos a agir, digamos, mais franciscanamente. Com todo respeito à proposta bem intencionada, pregam aos pássaros.

Ninguém vai parar para ouvir. O mundo gira em torno do dinheiro, as pessoas só querem saber de serem ricas, bonitas e famosas. Nem vou gastar o tempo dos leitores enfatizando esta verdade, que todos conhecem.

Até mesmo porque, como disse Balzac com muita propriedade para o tema abordado, o tempo é o único capital das pessoas que tem como fortuna apenas a sua inteligência.

Em tese, muita gente vai concordar com a ideia de frear o consumismo, semear a solidariedade e preservar o planeta.

Na prática, porém, nem as próprias igrejas renunciarão aos dízimos que as permitem viver com algum conforto, algumas até com inexplicável ostentação. Acho que era por isso que São Francisco pregava a sua filosofia de privações aos animais. Os homens jamais o ouviriam.

Pois o santo que me inspira na minha fantasia afetiva de todas as manhãs e que provavelmente inspirou também a campanha anticonsumo deixou entre seus legados uma das orações mais bonitas da história do cristianismo, de onde extraio uma frase que adotaria de bom grado como slogan profissional, se não parecesse demasiado pretensioso: “Onde houver erro, que eu leve a verdade”.

É o que direi amanhã para o primeiro pássaro que encontrar.

Um lindo sábado para você e um gostoso fim de semana


20 de fevereiro de 2010 | N° 16252
CLÁUDIA LAITANO


Vida (mais ou menos) real

O Globo publicou na semana passada uma curiosa troca de e-mails entre três repórteres da área de Cultura do jornal sobre o assunto mais comentado do verão (deste como dos nove anteriores): Big Brother Brasil.

De um lado, o crítico de cinema Rodrigo Fonseca como porta-voz da minoria apaixonada que costuma se referir ao programa usando os três bês para soletrar palavras como boçal, banal, bestial – ou outras menos publicáveis.

Do lado da maioria que garante a audiência, o crítico de música Leonardo Lichote, defendendo a tese (polêmica, em se tratando de um diálogo entre críticos) de que o Big Brother Brasil apresenta uma trama multifacetada, com uma estrutura dramática, baseada na edição e no desempenho dos integrantes “para as câmeras”, que supera, por exemplo, a desgastada e repetitiva fórmula da teledramaturgia nacional. Na posição de mediador, o escritor e jornalista Arnaldo Bloch.

É sintomático que um debate com pretensões intelectuais sobre Big Brother ganhe esse formato inusitado de uma troca de e-mails.

E não apenas porque a sensação de quem lê mensagens alheias acaba sendo um pouco parecida com a de quem espia a rotina de desconhecidos em um reality show, mas porque defender o programa costuma ser encarado como uma capitulação ao mau gosto e à indigência mental – ou seja, não é muito bem visto tirar o assunto da mesa de bar para de alguma forma “legitimá-lo” com um debate intelectual público.

E há várias razões para isso. Uma delas é a sensação de saturação criada pela cobertura convencional, que, somada aos comentários de amigos, vizinhos, conhecidos, estabelece um ambiente monotemático (e monótono) em que uma gota a mais de conversa sobre o assunto sempre soa além da conta (corro um sério risco aqui, portanto).

Some-se a isso o fato de que o programa se tornou uma espécie de emblema da cultura da celebridade, o leviatã preferido de boa parte da intelectualidade deste início de século. No mundo todo, a ascensão dos realities shows coincide com esse milagre midiático moderno que é o surgimento de pessoas que são famosas apenas porque são famosas. (Categoria em que Paris Hilton, não por acaso egressa de um reality show, reina absoluta.)

Ou seja: sobejam (para usar uma palavra que transborda sobriedade e distinção) motivos para fugir da sala quando começam as digressões sobre quem disse o que no BBB de ontem.

Mas é preciso reconhecer que há algo ali que propõe ao espectador uma experiência que pode ir além do mero teatro de trivialidades – aspecto mais visível de todo esse circo armado em torno de dinheiro, intrigas e romances editados.

Comparado com as novelas, o reality show é humanamente mais rico, como bem apontou o crítico Leonardo Lichote.

Enquanto a teledramaturgia parece repisar os mesmos temas há mais de 40 anos, o reality show convoca o público a acompanhar uma trama imprevisível, baseada em reações de pessoas de verdade (e, portanto, mais complexas do que os rótulos que colocamos sobre elas) e ainda estabelecer juízos sobre sua honestidade, seu caráter, seu carisma.

Ainda não inventaram nada melhor do que um bom romance para iluminar as nuanças mais sutis da experiência humana, mas mesmo a narrativa contemporânea tem embaralhado cada vez mais os limites entre ficção e vida real – o que parece ser um traço inescapável da nossa época.

No caso específico da televisão brasileira, não há dúvida: a vida (mais ou menos) real do BBB é muito mais interessante do que qualquer novela que está no ar.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010



16 de fevereiro de 2010 | N° 16248
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A vida era uma festa

Tem gente que quer ir a Paris, suavemente envolta em neve. Tem gente que sonha com a Grande Barreira de Corais e seu eterno verão. Tem gente que aspira por New York, New York, onde se encontram todos os climas do mundo. Já eu gostaria de retornar ao ano de 1962.

Eu teria então 16 anos e um hábito: abrigar felicidade no coração.

Por então aconteciam episódios adversos em minha vida. Em pleno centro de Porto Alegre, sem motivo ou razão, uma tarde sim e outra não faltava água em meu apartamento – que ficava a duas quadras do Palácio do Governo.

Por um desses mistérios da natureza, surgiu uma discromia em minha testa, que afastava as garotas e confundia os médicos. E como se isso não bastasse, uma comportada miopia, que vinha das épocas do curso primário, principiou a evoluir como se eu fosse condenado à cegueira.

Sabem de uma coisa? Nada disso me abalou. Uma estação elevadora instalada na Rua Fernando Machado devolveu à Rua João Manoel 24 horas de água por dia.

A discromia da testa, que os doutores soturnamente chamavam de vitiligo, de início tratada com a prestimosa ajuda de remédios americanos, sumiu mais tarde, espontânea e repentinamente. E a miopia cedeu com o tempo, graças a uma segunda cirurgia que ouso classificar de milagrosa.

Mas se nada disso houvesse sucedido, ainda assim eu gostaria de voltar ao ano de 1962.

Vejo ainda agora na TV que bairros inteiros estão submersos – e ainda assim sem água e luz. Acompanho nos noticiários que doenças sem nome atacam adultos e crianças. E acabou de aparecer na tela a face angustiada de um menino que perdeu provisoriamente a visão.

É isso que há de importante em 1962.

Em 1962 todos os caminhos estavam abertos diante de ti.

Tu poderias ser mago, filósofo ou marinheiro.

Bastava escolher.

Em 1962 todas as profissões estavam à tua espera

Tu poderias ser médico, engenheiro ou adivinho.

Em 1962 todas as mulheres te esperavam. Tu poderias escolher a loira, a morena, ou a desconhecida.

Pois eras jovem e a vida era uma festa.

sábado, 13 de fevereiro de 2010



14 de fevereiro de 2010 | N° 16246
MARTHA MEDEIROS


Os complacentes e os devotos

Eu gosto de futebol, desde que o jogo seja uma decisão do meu time ou da Seleção. Mas gostar desse jeito complacente é o mesmo que não suportar futebol, porque futebol não se gosta, apenas – se venera. É o que faz homens plantarem-se em frente à tevê toda semana para babar diante de dezenas de gols que se repetem e repetem e repetem. Ou não se repetem?

Perguntei outro dia para um exemplar da espécie masculina: os gols dessa rodada não parecem iguais aos gols do ano passado, e aos gols de 1999, e aos de 1987? Ele, depois de rugir, explicou que cada gol no mundo é único. Não entendi, eu disse. Ele sugeriu que eu nem tentasse.

Mas tentei, e deduzi o óbvio: tudo que nos parece insano é justificado pela paixão. Quem tem no futebol uma de suas razões de viver consegue enxergar magia e novidade em detalhes para os quais os complacentes não são capacitados.

Alucinados por futebol podem passar 120 anos em frente à tevê todos os domingos e em todos os domingos eles verão um festival de gols absolutamente inéditos.

Para quem não é obcecado por basquete, todas as cestas são iguais. Para quem não é um entusiasta do tênis, uma partida é de um marasmo irritante.

Para quem não é viciado em ler, um livro pode se equiparar a um aparelho de tortura. Para quem não é fã de novela, viu uma, viu todas. E para quem não enlouquece com o Carnaval, se reprisarem o desfile do ano passado dará na mesma.

Andei lendo a respeito do dia a dia de algumas pessoas que não apenas gostam de Carnaval, e sim o reverenciam, e fiquei surpreendida com o grau de envolvimento que essa festa invoca.

Tem gente que dorme, come, respira Carnaval o ano inteiro. Assim que uma edição termina, começa-se a planejar a próxima, e nada, absolutamente nada se repete. Os sambas-enredos não são iguais, apesar de se parecerem.

As fantasias não são similares as dos outros anos, como um distraído poderia julgar. Não ouse dizer que já não há mais o que inventar nos carros alegóricos: só um ranzinza se atreveria a afirmar tal disparate. Nem a Luiza Brunet é a mesma de outros carnavais. Todo Carnaval é único, todo Carnaval é inédito, todo Carnaval é um gol que está por ser feito.

Como até aqui eu sempre fui uma fria admiradora do ziriguidum, claro que também nunca entendi tamanha devoção, mas estou prestes a me converter.

Pela primeira vez, irei assistir ao vivo a um desfile de escola de samba no Rio de Janeiro. Nesta segunda-feira estarei na Sapucaí, e meu coração já está batendo mais forte e meu sangue correndo mais rápido. Ainda nem vi nada e já me sinto passista desde criancinha, imagine amanhã: é provável que eu caia de joelhos e beije o chão.

Para a turma que não compreende qual é a graça de um gol mil vezes visto ou de mais um desfile de escola com as mesmas baianas, as mesmas madrinhas e os mesmos refrões, este Carnaval 2010 parecerá idêntico ao Carnaval do ano passado, ao de 1999 e ao de 1987, mas algo me diz que vou trocar de bloco: este ano entrarei para a turma dos devotos, aqueles que já nem tentam explicar o que os complacentes nunca iriam mesmo entender.

Lindo domingo para você. Aproveite pule, se divirta. Vc merece ser feliz


Na ilha de Lost

O ideólogo petista, assessor de Lula e coordenador do programa da candidata Dilma Rousseff, tem medo de navios de guerra americanos e de TV a cabo, mas é fã de uma ilha tropical parada no tempo – que não é a do seriado

Jerônimo Teixeira e Marcelo Marthe - Montagem com fotos de Andre Dusek/AE e Divulgação
HAJA GRAMSCI...


Na montagem, Marco Aurélio Garcia e o elenco do seriado Lost: "Nunca subestimem a estupidez humana"

No seriado Lost, sobreviventes da queda de um avião descobrem-se em uma ilha esquisita, onde o próprio tempo parece ter parado. Assessor especial da Presidência e coordenador do programa de governo da ministra Dilma Rousseff, Marco Aurélio Garcia habita um mundo semelhante. Seu relógio ideológico parou lá pelos anos 70, quando críticos culturais esquerdistas denunciavam a suposta pregação capitalista de programas de TV americanos como Vila Sésamo ou das páginas do Pato Donald.

Num discurso na sede do PT em Brasília, no sábado 6, Garcia acusou a ameaça aos interesses do Brasil representada pelos pouco mais de cinquenta canais por assinatura que exibem produções estrangeiras. "Os canais de televisão a cabo realizam, de forma indolor, um processo de dominação muito eficiente. Despejam esterco cultural", afirmou o ideólogo petista.

"Garcia precisa atualizar seu arsenal teórico. A última vez que eu ouvi essa bobagem falada a sério foi na década de 70", diz o sociólogo Demétrio Magnoli, que identifica duas matrizes para a paranoia do "imperialismo cultural". A primeira viria do líder bolchevique Vladimir Lenin, que falava do imperialismo como um "estado avançado do capitalismo", no qual as disputas entre nações reproduziriam em escala internacional a luta de classes.

A contribuição mais recente viria do marxista francês Louis Althusser, influente nos anos 60 e 70, que caracterizava o estado e as instituições públicas e privadas de comunicação como um sistema coordenado de dominação cultural. Suas teorias foram diluídas em um libelo que já foi popular em faculdades de comunicação: Para Ler o Pato Donald, lançado em 1971 pelo chileno Ariel Dorfman e pelo belga Armand Mattelart.

Agora as esquerdas seguem a cartilha de esterilização cultural proposta pelo italiano Antonio Gramsci, um revolucionário comunista que ordenou à militância que trocasse as armas pelo lento, silencioso e constante envenenamento do manancial de ideias livres da nação que se tenta subjugar.

A luta gramsciana não é travada contra as ideias passadas por produções culturais de gosto duvidoso ou de baixa qualidade. Não. A luta é contra ideias que fujam do controle do partido.

Isso explica a raiva de "Lost Garcia" contra a TV a cabo, pois nem nos Estados Unidos a televisão é um veículo de propaganda do capitalismo. Criativa, plural, independente, a produção de televisão americana em seus melhores momentos faz a demolição constante e impiedosa de tudo o que "Lost Garcia" odeia, como bem sabe quem já assistiu a Os Sopranos ou Os Simpsons (que, apesar de seu claro alinhamento com a esquerda, já foi censurado na Venezuela de Hugo Chávez, patrono espiritual de Garcia).

Qualificá-la em bloco como "esterco cultural" revelaria preconceito e desinformação – mas é apenas cálculo político. Está-se diante da tentativa de abrir uma nova frente de combate no objetivo marxista permanente de dominação, controle e vigilância da mente dos brasileiros.

Essa ideia fixa petista vem sendo tentada de diversas maneiras há sete anos – sempre rechaçada pelas pessoas bem-intencionadas de todos os matizes ideológicos. Agora se tenta via controle da TV a cabo. Se não funcionar – e tudo indica que não vai funcionar –, um novo ataque virá com o objetivo de esterilizar outro quadrante da atividade pensante.

O certo é que virá. Sem a supressão da capacidade de indignação, do poder de crítica e da liberdade de expressão, o projeto bolivariano chavista não tem como avançar. Tente Caracas, senhor "Lost Garcia".

Lya Luft

Bruxos, vampiros e avatares

"A tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos controlar: se pensarmos um pouco, sentiremos medo"

Cibernéticos e virtuais, nadamos num rio de novidades e nos consideramos moderníssimos. Um turbilhão de recursos trazidos pela ciência, pela tecnologia, nos atrai ou confunde. Se somos mais velhos, nos faz crer que jamais pegaremos esse bonde - embora ele seja para todos os que se dispuserem a nele subir, não necessariamente para ser campeões ou heróis.

A tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos controlar: se pensarmos um pouco, sentiremos medo.

O que mais vem por aí, quanto podemos lidar com essas novidades, sem saber direito quais são as positivas, quanto servem para promover progresso ou para nos exterminar ao toque do botão de algum demente no poder? Exageradamente entregues a esses jogos cada dia inovados, vamos nos perder da nossa natureza real, o instinto?

Viramos homens e mulheres pós-modernos, sem saber o que isso significa; somos cibernéticos, somos twitteiros e blogueiros, mas não passamos disso. E, se não formos muito equilibrados, vamos nos transformar em hackers, e o mundo que exploda.
Ilustração Atômica Studio

Sobre a sensação de onipotência que esse mundo novo nos confere, lembro a história deliciosa do aborígine que, contratado para guiar o cientista carregado de instrumentos refinados, lhe disse: "Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simplesmente para andar no mato e observar os animais".

Não vamos regredir: a civilização anda segundo seu próprio arbítrio. Mas, como quase todas as coisas, seus produtos criam ambiguidade pelo excesso de aberturas e pelo receio diante do novo, que precisa ser domesticado, para se tornar nosso servo útil.

As possibilidades do mundo virtual são quase infinitas. Sua sedução é intensa. Tão enganador quanto fascinante, no que tange à comunicação. Imenso, variado, assustador, rumoroso, ameaçador, e frio, porque impessoal. Nesse mundo difuso somos quase onipotentes, sem maior responsabilidade, pois cada ação nem sempre corresponde a uma consequência - e ainda podemos nos esconder no anonimato.

Criam-se sérias questões morais e éticas não resolvidas nesse território: através da mesma ferramenta que nos abre universos e nos comunica com o outro, caluniamos e somos caluniados, ameaçamos e somos ameaçados, nos despersonalizamos, nos entregamos a atividades estranhas, algumas perversas; espiamos, espreitamos, maldizemos amigos e desconhecidos, odiamos celebridades, cortamos a cabeça de quem se destaca porque se torna objeto de inveja e ressentimento, escutamos mensagens sombrias e cumprimos, talvez, ordens sinistras.

Relacionamentos pessoais começam e terminam, bem ou mal, nesse campo virtual - não muito diferente do mundo dito real, dos bares, festas e trabalho, faculdade e escola. Para as crianças, esse universo extenso e invasivo pode ser uma grande escola, um mestre inesgotável, um salão de jogos divertido em que elas imediatamente se sentem à vontade, sem os limites dos adultos.

Mas pode ser a estrada dos pedófilos, a alcova dos doentes, ou a passagem sobre o limite do natural e lúdico para o obsessivo e perverso.

Como quase tudo neste mundo nosso, duplo é o gume: comunicar-se é positivo, mas sinais feitos na sombra, sem verdadeiro nome nem rosto, podem acabar em fantasmáticas perseguições e males.

Singularmente, mas de maneira muito significativa, enquanto estamos velozes e espertos no computador, criando mundos virtuais, e jogando jogos cada vez mais complexos, buscamos o nevoeiro desse anonimato e, na época das maiores inovações, curtimos voar com bruxos em suas vassouras, namorar vampiros e inventar avatares que vão de engraçados a sinistros.

Estimulante, múltiplo, tão rico, resta saber o que vamos fazer nesse novo mundo - ou o que ele vai fazer de nós.

Quando soubermos, estaremos afixados nele como borboletas presas com alfinete debaixo da tampa de vidro ou vaga-lumes em potes de geleia vazios, naquelas noites de verão quando a infância era apenas aquela, inocente, que ainda espia sobre nossos ombros.


A beleza da força

O corpo musculoso das mulheres que malham parece representar uma nova estética feminina, que desafia os homens em seu próprio terreno. Mas essas mulheres saradas são realmente bonitas?

Ivan Martins, Nelito Fernandes e Fernanda Colavitti. Com Eliseu Barreira e Leopoldo Mateus Shutterstock

O que é uma mulher bonita?

A resposta a essa pergunta tem variado através dos séculos, das culturas e da geografia. Nossos ancestrais, que habitavam as cavernas da Europa há 50 mil anos, esculpiram deusas da fertilidade com seios, coxas e barrigas proeminentes. Podemos admitir que era esse seu ideal de beleza.

Para o povo pagund, do norte da Tailândia, seios caídos e longos pescoços deformados pela colocação de anéis de metal são o que há de mais bonito. Nos parece estranho, mas assim é entre eles. No Brasil do século XXI, celeiro mundial de modelos claras e delgadas, existe uma acentuada predileção popular por mulheres carnudas e morenas, com curvas bem demarcadas.

Portanto, o que é uma mulher bonita?

A empresária carioca Marcella Techeh tem sua própria resposta para essa questão. Ela tem 33 anos, dois filhos e um corpo esculpido em pedra por sessões diárias de musculação. Marcella é uma mulher forte, sarada, malhada mesmo, embora não tenha uma aparência pesada. Seus músculos sobressaem no abdome, nos braços e nas coxas. Sua preocupação principal é evitar a flacidez.

Um de seus grandes prazeres é olhar-se no espelho. Mas essa satisfação consigo mesma, totalmente narcisista e corriqueira, embute uma rebeldia. Embora atraente, Marcella não se enquadra no padrão de beleza que domina a estética ocidental desde o início do século XX e que provocou, em seu nascimento, um comentário azedo do escritor francês Émile Zola: “A ideia da beleza varia.

Ela agora reside na esterilidade das mulheres alongadas, donas de flancos pequenos”. Marcella, assim como milhares de outras que se exercitam com intensidade e que se orgulham de seus músculos, não é uma mulher “alongada de flancos pequenos”.

Ela é robusta, vigorosa, rija. Nada tem em comum com a criatura frágil descrita pelos médicos do século XVIII, segundo os quais a mulher teria “ossos pequenos, com carnes moles e esponjosas, e seria animada por um caráter débil”. As mulheres fortes como Marcella explodiram essa definição.

Elas representam a materialização de uma nova estética que vai emergindo das academias e das pistas esportivas – e que representa, a seu modo, uma tremenda mudança de valores (como se vê no ensaio fotográfico, clicando na foto abaixo).
Fotos: André Arruda/ÉPOCA. Produção Joana Mazza. Maquiagem: Rita Fischer

É como se as mulheres, cansadas da imagem passiva de fragilidade corporal que lhes foi imputada desde a Antiguidade, resolvessem, por conta própria, invadir a última arena simbólica exclusivamente masculina, a da força física. Braços e ombros poderosos parecem ser a resposta das mulheres aos rapazes de peitos e braços inflados que desfilam pelas ruas das cidades brasileiras.

Seria o começo de uma disputa? “Não creio que isso represente uma forma de competição”, afirma o sociólogo Celso Sabino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “É mais a definição de uma nova identidade, em uma nova era. Essas mulheres fogem do que significou ser mulher nos últimos séculos no Ocidente.”

Os homens parecem não gostar dessa nova vertente da beleza feminina. “Eu gosto de mulher feliz. Vejo muito mais sensualidade numa mulher feliz do que numa sarada emburrada”, diz o apresentador Marcelo Tas. O vocalista da banda Raimundos, Tico Santa Cruz, é ainda mais severo.

“Eu acho tosquíssimo. Gosto de mulheres naturais. Mulheres que parecem de borracha não me atraem. Tenho medo delas”, diz ele. O ator e roteirista Bruno Mazzeo tampouco aprova a força feminina: “Não é a minha preferência. Acho que os músculos tiram a feminilidade, que é uma das coisas que mais me atraem”.

Na resistência masculina reside um dos vários aspectos inovadores da nova estética: ela não é uma invenção dos homens.

Ao contrário das opulentas madonas renascentistas, das “mulheres ampulhetas” do século XIX (com os seios projetados por espartilhos e os quadris empinados por anquinhas) e das atrizes com corpos voluptuosos que emergiram de Hollywood nos anos 50, as anônimas com silhuetas esculpidas não correspondem a uma idealização da feminilidade (leia a linha do tempo da beleza).

Elas estão inventando uma estética própria, que se opõe aos cânones consagrados da beleza e do bom gosto. Talvez por isso os homens se incomodem – e não pela primeira vez.

No fim do século XIX, quando as mulheres da elite europeia começaram a pedalar e jogar tênis, falou-se em imoralidade, degeneração e até mesmo pecado. “Era como se as mulheres estivessem se apropriando de exercícios musculares próprios à atividade masculina”, escreve a historiadora Mary Del Priore no livro Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. Na verdade, as mulheres estavam de fato se apropriando de um território exclusivamente masculino, como fazem agora.

Isabelle Colmenero pratica exercícios obsessivamente desde os 15 anos. Corre, levanta pesos, faz ginástica. Hoje, aos 35, casada, exibe um corpo de gladiadora pequeno e sarado, que não deixa de ser vigorosamente feminino.

Ela diz que não tem medo de ficar com aparência de homem. “Nosso corpo não é como o deles”, afirma. “Para ficar forte mesmo, masculinizada, você tem de tomar anabolizante.” Isabelle limita-se a comer de tudo.

E, como gasta muita energia, não se preocupa em fazer dietas. Parece residir aí um avanço do ponto de vista da saúde em relação à estética anoréxica que as adolescentes do mundo inteiro importaram das passarelas. Mulheres que malham, comem (leia a reportagem sobre musculação e saúde).

Lilian Pacce, a editora de moda do canal GNT, acha que a modelo holandesa Lara Stone já representa, de forma sutil, uma resposta do mundo da moda ao aparecimento nas ruas de uma estética feminina menos diáfana. “Lara é uma mulher grande e teve problemas quando começou nos desfiles”, diz Lilian. Hoje, a modelo alta de seios imponentes é uma das mais requisitadas do circuito.

A jornalista Danuza Leão, ex-modelo e observadora perspicaz da sociedade brasileira, não tem simpatia pelas mulheres que malham em excesso. Defende, “para homens e mulheres”, uma aparência “durinha e enxuta, mas sem músculos”.

Dito isso, ela reconhece que sempre houve uma acentuada divisão no mundo estético brasileiro. Nos anos 1950 e 1960, quando as modelos de sucesso já eram magras e elegantes, como a americana Suzy Parker, as preferidas dos homens brasileiros se apresentavam no teatro de revista com amplos quadris e coxas grossas.

Eram as coristas, equivalentes das moças de pernas roliças que dançam ainda hoje diante das câmeras dos programas de auditório. “Sempre houve essa divisão de gosto no Brasil”, diz Danuza. “As mulheres com mais corpo sempre fizeram sucesso nas ruas e na praia.”

Sempre, neste caso, parece ser sempre mesmo. Desde a chegada dos portugueses, no século XVI, criou-se uma dicotomia entre a estética oficial da corte europeia – que consagrava cabelos claros, pele leitosa e seios volumosos – e a beleza que se apresentava nas praias aos olhos dos colonizadores.

Às índias, com seus olhos e cabelos escuros e seu corpo pequeno e castanho, logo viriam se juntar as escravas africanas de sorriso reluzente e magistral musculatura.

Dessa mistura emergiu uma estética brasileira, de bumbum arrebitado e seios pequenos, que o sociólogo Gilberto Freyre definiu como “morenidade” – e que até hoje influencia o gosto e a libido nacionais. Mary Del Priore diz que no século XIX, quando José de Alencar se esmerava em esmiuçar as “mãos pálidas” e o “talhe delicado” de suas personagens, os visitantes estrangeiros ao Brasil relatavam a evidente preferência de nossos tataravós por mulheres “cheias e morenas”.

Um inglês que aqui esteve em 1893 deixou registrado que o maior elogio que se podia fazer a uma dama era observar que ela “estava a cada dia mais gorda”. As coisas mudaram.

É possível, portanto, que a estética das mulheres fortes seja apenas uma evolução histórica do gosto nacional por mulheres curvilíneas, que predomina há 500 anos.

O fato de que as primeiras musculosas tenham surgido nos desfiles de Carnaval, em que a cultura do país é filtrada pelas lentes do exagero, reforça essa impressão. A nova estética pode ser compreendida como exagero, como o ponto em que uma tendência começa a converter-se em caricatura.

Foi inaugurada recentemente no museu Metropolitan de Nova York uma exposição de 60 esboços do pintor italiano Agnolo Bronzino, um dos mestres do maneirismo. Essa escola de arte surgiu na Itália por volta de 1520 e interpôs-se entre o Renascimento e o Barroco.

Os corpos esboçados por Bronzino, percebe-se na exposição, são recobertos por uma musculatura tão espessa e detalhada que mais parecem uma caricatura da anatomia humana. Olhando a retrospectiva do Metropolitan, é possível encontrar paralelos entre o virtuosismo vazio de seus desenhos e a ausência de direção da cultura moderna.

Com o mesmo olhar, talvez se possa perceber, no corpo musculoso das mulheres que malham, reflexos do exagero que povoa as pinturas e os desenhos de Bronzino.

No início do século XXI, a estética das mulheres com músculos pode ser tanto um sinal de transformação duradoura quanto mais uma manifestação efêmera de decadência. Como o maneirismo.


13 de fevereiro de 2010 | N° 16245
NILSON SOUZA


A pintora e o perguntador

Gosto muito mais de ouvir do que de falar. Sempre fui assim, um recatado observador da vida alheia – primeiro por timidez, depois por opção profissional. Descobri, na idade escolar, que é mais prudente esperar ser chamado do que levantar voluntariamente o dedo indicador da vaidade.

No jornalismo, aprendi a arte da perguntação. Exerço-a até mesmo quando estou de férias, pelo simples prazer de auscultar a alma do outro e também, provavelmente, pela curiosidade de saber como estou sendo percebido na minha condição de repórter e entrevistador.

Passemos à prática.

Dia desses, numa caminhada matinal pela beira do mar, encontrei uma senhora cercada de quadros com belas e coloridas pinturas. Parei e perguntei:

– São seus?

Ela então me contou que sempre gostou de pintar, que o fazia por diversão, mas acabou tomando gosto, fez cursos, desenvolveu uma técnica própria e agora – relatou com os olhos brilhando de orgulho – vivia de sua arte, já tendo obras vendidas até para estrangeiros. Quando tomou fôlego, ampliei o questionamento:

– Por que você escolheu o mar como tema?

Ela me disse que sempre viveu naquela praia, que amava pescar, que já superara numa competição de anzol um punhado de homens experientes na atividade, que conhecia aquelas águas, aquelas pedras, aquelas espumas e aquelas areias como uma abelha conhece as flores do jardim. Aproveitei a metáfora:

– Você trabalha no seu jardim?

Já sem qualquer resistência ao desconhecido perguntador, ela me falou de sua casa, de seu estúdio, de sua juventude, de seus amores, de seus desgostos e dos seus projetos. Continuei lançando pontos de interrogações e fisgando cardumes de respostas.

Entreti-me por vários minutos na deliciosa tarefa de ouvir e provocar, até que aquela história de vida extraída do cotidiano fizesse sentido. Então, convencido de que havia desempenhado com competência um fundamento do meu ofício, a arte de questionar, resolvi levantar o dedo e arrisquei:

– Depois de todo esse interrogatório, qual você acha que é a minha profissão?

A pintora me olhou de cima abaixo, como se estivesse tomando uma perspectiva para dar a primeira pincelada na tela em branco. E respondeu convicta:

– Advogado, sem dúvida!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010



10 de fevereiro de 2010 | N° 16242
MARTHA MEDEIROS


Aristogatos

Nunca imaginei ter um bicho de estimação, por uma questão de ordem prática: moro em apartamento, sempre morei. E, se morasse em casa, escolheria um cachorro. Logo, nunca considerei a hipótese de ter um gato, fosse no térreo ou no 10o andar.

Quando me falavam em gato, eu recorria a todos os chavões pra encerrar o assunto: gato é um animal frio, não interage, a troco de que ter um enfeite de quatro patas circulando pela casa?

Hoje, dona apaixonada de um gato de cinco meses (e morando no 10o andar), já consigo responder a essa pergunta pegando emprestada uma frase de um tal Wesley Bates: “Não há necessidade de esculturas numa casa onde vive um gato”.

Boa, Wesley, seja você quem for. Gato é a manifestação soberana da elegância, é uma obra de arte em movimento. E, se levarmos em consideração que a elegância anda perdendo de 10 x 0 para a vulgaridade, está aí um bom motivo para ter um bichano aninhado entre as almofadas.

Só que encasquetei de buscar argumentos ainda mais conclusivos. Por que, afinal, eu me encantei de tal modo por um felino? Comecei a ler outras frases irônicas e aparentemente pouco elogiosas. Mark Twain disse que gatos são inteligentes: aprendem qualquer crime com facilidade.

Francis Galton disse que o gato é antissocial. Rob Kopack disse que, se eles pudessem falar, mentiriam para nós. Saki disse que o gato é doméstico só até onde convém aos seus interesses. Estava explicado por que gamei: qual a mulher que não tem uma quedinha por cafajestes?

Ser dona de um cachorro deve ser sensacional. Lealdade, companheirismo, reciprocidade, eu sei, eu sei, eu vi o filme do Marley. Cão é boa gente. Só que o meu cachorro preferido no cinema nunca foi da estirpe de um Marley. Era o Vagabundo, sabe aquele do desenho animado?

O que reparte com a Dama um fio de macarrão, ambos mastigam, um de cada lado, e mastigam, mastigam até que (suspiro... a emoção impede que eu continue).

Eu trocaria todos os príncipes loiros e bem-comportados da Branca de Neve e da Cinderela pelo livre e irreverente Vagabundo, que foi o personagem fetiche da minha infância. E, lembrando dele agora, consigo entender a razão: aquele malandro tinha alma de gato.

Imagino que, com essa crônica, eu esteja revelando o lado menos nobre do meu ser. Pareço tão sensata, tão bem resolvida, tão madura – quá! – tenho outra por dentro.

Que vergonha. Levei mais de 40 anos para me dar conta de que não faço questão de uma criatura que me siga, que me agrade, que me idolatre, que me atenda imediatamente ao ser chamado, que me convide pra passear com ele todo dia.

Sendo charmoso, na dele e possuindo ao menos alguma condescendência comigo, tem jogo.

Cristo, um simples gato me fez descobrir que sou mulher de bandido.

Uma gostosa quarta-feira pra vc. Aproveite o dia.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010



09 de fevereiro de 2010 | N° 16241
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Uma praça, uma ponte

Imaginem uma imensa pétala de altos chafarizes, iluminada por uma coleção de holofotes multicoloridos, tudo embalado por uma sintônica sinfonia de músicas clássicas.

Essa era apenas uma das atrações da Praça José Bonifácio, no coração pulsante de Cachoeira. Alinhada à Rua Sete de Setembro, ela vizinhava ainda com algumas das principais lojas da cidade, abrigava o Bar América, que era um restaurante imbatível no seu gênero, um estádio de esportes, um parque infantil, ruas e escadarias internas e, em tempos mais recuados, até o centenário Mercado Municipal, assassinado, como acaba de ser também, a Ponte de Pedra.

O Cine-Teatro Coliseu ficava a 20 metros, o Clube Comercial uns palmos além, na mesma calçada do Banco da Província.

A praça era o centro de Cachoeira e, nas noites de verão, a passarela por onde desfilavam as mais belas garotas do Estado. Não estou exagerando. Já contei em idas crônicas que nenhuma outra cidade gaúcha ostentava mais sedutora seleção de beldades. Ali nasciam namoros, noivados e um rol de casamentos. Ali os olhos se olhavam nos olhos – e era como se fosse uma declaração de amor.

Recordo de uma noite em que sentei, no passeio dos bancos mais afastados, ao lado de uma menina lindíssima. Enquanto avançavam os ponteiros do relógio do pedestal que ficava no meio da quadra, trocamos juras e confidências que, traduzidas, eram pura ternura.

Essas coisas a gente não esquece. Essas coisas permanecem contigo por toda a vida. Sinto agora, neste momento em que escrevo, a textura de suas mãos, a maciez de seus lábios.

Lembro de um entardecer, como depois nunca vi outro. Os céus de Cachoeira, contemplados ali da praça central, eram uma suave mistura de nuvens azul-claras e rosadas. A garota sentada junto a mim era loira e seus cabelos longos dançavam com a brisa que vinha do poente.

Nós nos prometemos um ao outro o paraíso, nós nos juramos paixão eterna, mas depois os caminhos da vida nos separaram. Conservo até hoje, tantos anos passados, o exato timbre de sua voz, o preciso matiz celeste de seus olhos.

Aquela praça mora dentro de mim, não do jeito que é hoje, mas com as formas que teve.

É bem como a Ponte de Pedra, que eu prefiro chamar de a Ponte do Imperador, pois que em homenagem deste foi erguida no ano de 1849.

Mas nada reconstrói uma ponte – ou revive uma igreja, um romance – sem que se lance um olhar aos muitos passados de que somos feitos.

Uma linda terça-feira para você. Aproveite o dia

sábado, 6 de fevereiro de 2010



07 de fevereiro de 2010 | N° 16239
MARTHA MEDEIROS


Os best-sellers

O fato de um livro vender muito ou pouco não desperta em mim nem curiosidade, nem desprezo

Um leitor me pergunta se a lista de livros mais vendidos influencia minhas escolhas.

Já que é tempo de férias, quando temos mais predisposição para ler, vale a pena amplificar esse assunto. O fato de um livro vender muito ou vender pouco não desperta em mim nem curiosidade, nem desprezo. Não é a lista de mais vendidos que determina as minhas escolhas, e não deveria determinar as escolhas de ninguém.

Um livro pode virar best-seller por haver uma grande fidelização ao autor, independentemente do título que ele esteja lançando. Ou então porque há um filme ou uma série de tevê inspirada no livro e isso alavanca as vendas. Ou porque o investimento em propaganda foi forte. Ou porque o livro traz um tema polêmico. Ou porque é uma obra póstuma de um autor importante.

Ou porque o boca-a-boca fez sua parte. Ou, claro, porque o livro é mesmo sensacional. Enfim, há muitas razões, nem todas literárias, para um livro estar entre os mais vendidos, e não se pode esquecer que inúmeras obras excelentes nunca chegaram a vender mais do que mil exemplares, o que descredibiliza as listas como indicadores soberanos de boa leitura.

O melhor método para se escolher um livro é através da informação. Você pode até ter sabido da existência de um livro através de uma lista, mas não deve comprá-lo apenas por essa razão, a não ser que não dê valor ao seu dinheiro. Primeiro, pesquise sobre o autor, se ele lhe for estranho.

Descubra seu estilo, o que ele já escreveu, que temas costuma abordar, o que já se disse sobre ele. O Google está aí para isso. Já dentro de uma livraria, pegue o livro, leia a orelha, o prefácio, um pouco do primeiro capítulo – as livrarias hoje têm poltronas e sofás pra esse fim: refestele-se. Ninguém vai obrigá-lo a efetuar a compra.

Dê atenção aos suplementos culturais dos jornais. Leia a Revista Bravo, que traz tudo sobre música, teatro, cinema, artes plásticas e, claro, literatura, e assine o mais importante jornal literário do Brasil, o Rascunho. E o mais importante: escute a opinião de pessoas a quem você dá crédito. Um bom fornecedor de dicas é fundamental.

O Comer, Rezar, Amar, da Elizabeth Gilbert, achei uma delícia de leitura. Gilbert é alguma Jane Austen? Nem perto, mas o livro é agradável, divertido e caiu nas minhas mãos numa época em que a história dela me desceu bem. Por outro lado, nunca li nem vou ler A Menina que Roubava Livros, mesmo tanta gente tendo elogiado. Outro fator a ser considerado: implicância. Não deixa de ser um método de seleção também.

Ser popular não é pecado. Há os populares excelentes e os populares medíocres, assim como há os clássicos sensacionais e os clássicos chatonildos. Quem decreta isso? Sua majestade, o leitor.

Do que se conclui: leia best-sellers, leia livros malditos, leia livros que todo mundo está comentando e também aqueles de que ninguém nunca ouviu falar, leia o que alguém antenado recomendou, leia o livro que você descobriu sozinho num sebo, leia o livro cuja capa deixou você fascinado, leia o que sua professora exigiu, leia o que a sua namorada implorou pra você ler,

mesmo ela sendo fã de água-com-açúcar (não custa agradar a guria, depois você dá o troco com dignidade, recomendando a ela um Rubem Fonseca), releia o que você leu 15 anos atrás e amou, releia o que você leu 15 anos atrás e odiou (se todos diziam que era genial, dê uma nova chance ao livro, talvez 15 anos atrás você não estivesse pronto para textos bombásticos),

leia os livros até o fim, abandone-os no meio se forem uma xaropice, leia livros de suspense, eróticos, policiais, poemas, biografias, mas leia.

Estou no momento lendo pela primeira vez um japonês chamado Haruki Murakami, mas não comecei pelo livro certo, dois ou três amigos já me disseram que há outros títulos do autor que são bem melhores. É assim que funciona. Uma lista confiável de best friends é tudo de que se precisa.
Prestígio zero

Pesquisa mostra que os bons alunos não querem mais seguir o magistério - um desastre para o ensino

Alunos de ensino médio: eles são desencorajados em casa de optar pelo curso de pedagogia


Um bom termômetro para aferir o prestígio de uma profissão é o número de jovens que a assinalam como primeira opção na hora do vestibular. Por esse medidor, a carreira de professor, que décadas atrás foi um símbolo de status, nunca esteve tão em baixa.

Uma nova pesquisa, conduzida pela Fundação Carlos Chagas a pedido da Fundação Victor Civita, chama atenção para o problema, trazendo à luz um dado preocupante: às vésperas de ingressarem na universidade, apenas 2% dos estudantes brasileiros pretendem seguir o magistério - opção que os outros 98% já descartaram.

No levantamento, baseado numa amostra de 1 500 alunos de ensino médio em escolas públicas e particulares de todo o país, o curso de pedagogia patina na 36ª colocação, entre as sessenta carreiras que hoje mais exercem fascínio sobre os jovens - lista encabeçada pelas áreas de direito, engenharia e medicina.

Agrava o cenário saber que esses poucos que ainda optam pela docência se concentram justamente no grupo dos 30% de alunos com as piores notas na escola. Pouco disputado, o curso de pedagogia significa, para a imensa maioria dos estudantes, a única porta de entrada possível para o ensino superior - e não uma carreira de que realmente gostam.

Conclui a especialista Bernardete Gatti, coordenadora da pesquisa: "Sem atrair as melhores cabeças para as faculdades de pedagogia, o Brasil jamais conseguirá deixar as últimas colocações nos rankings de ensino".

A situação de desprestígio da carreira de professor é o retrato final de um processo deflagrado na década de 70, quando se iniciou no país uma acelerada massificação do ensino público.

Sem profissionais em número suficiente para suprir a galopante demanda, as escolas passaram a recrutar até leigos para dar aulas. Foi aí também que as faculdades de pedagogia e as licenciaturas proliferaram à revelia da qualidade acadêmica, e os salários começaram a cair.

A remuneração dos professores é, por sinal, o segundo fator elencado pelos jovens de hoje para nem sequer cogitarem o magistério, atrás de um item que se refere à completa falta de identificação com o ofício, segundo mostra a pesquisa da Fundação Carlos Chagas.

Os estudantes contam ainda que são desencorajados pelos próprios pais de fazer essa opção. Boa parte dos entrevistados chega a afirmar que a família "jamais aceitaria tal escolha profissional".

Países onde o ensino prima pela excelência, como Coreia do Sul e Finlândia, encontraram bons caminhos para atrair os alunos mais brilhantes às faculdades de pedagogia - experiência que pode ser útil também ao Brasil. Ela indica que elevar o salário dos professores é apenas uma das estratégias eficazes, mas não a de maior impacto.

O que realmente suscita o fascínio dos melhores alunos pela docência diz respeito, acima de tudo, à possibilidade descortinada pela carreira de verem seu talento reconhecido e sua capacidade intelectual estimulada.

Nesse sentido, distinguir os profissionais de melhor desempenho em sala de aula, com iniciativas como bônus no salário e mais responsabilidade na escola, tem sido, há décadas, um potente motor de atração para a carreira de professor mundo afora.

O Brasil precisa aprender a lição.


Diogo Mainardi

A era do cacarejo

"Num momento como o nosso, em que somos atazanados por um bando de palpiteiros ensandecidos, que manifestam permanentemente os próprios pensamentos, Rimbaud recorda as infinitas virtudes do silêncio. Ele é um modelo para todos nós"

Rimbaud espancava Verlaine. Eu invejo Rimbaud. Eu gostaria de ter espancado Verlaine. Eu gostaria de ter espancado qualquer poeta simbolista. Verlaine vingou-se alguns anos mais tarde, num quarto de hotel, dando dois tiros em Rimbaud. Eu também invejo Verlaine. Ele tinha apenas má pontaria.

A editora Topbooks, depois de publicar os poemas de Rimbaud, agora publicou suas cartas, otimamente traduzidas e comentadas por Ivo Barroso. O primeiro lote de cartas mostra Rimbaud e Verlaine espancando um ao outro e atirando um no outro.

Qual é o interesse disso? Para mim, nenhum. Eu poria os dois na cadeia. De fato, os dois foram parar na cadeia. O que realmente interessa é o segundo lote de cartas, escritas a partir de 1875, quando Rimbaud abandonou a poesia e passou a perambular de um lado para o outro.

Num intervalo de apenas dezesseis anos – ele morreu em 1891 –, Rimbaud fez tudo o que uma pessoa dotada de um pingo de senso de dignidade quereria fazer: foi embora de Paris, que é uma cidade de maricotes; entranhou-se no deserto etíope, contraindo uma série de enfermidades; comercializou camelos e escravos;

ganhou dinheiro e perdeu dinheiro; negociou armas dos mais variados calibres, permitindo o massacre de um monte de gente inocente; pegou um tumor no joelho e teve a perna amputada; morreu sozinho em Marselha, com muitas dores e pedindo ajuda a Deus, que caprichosamente se recusou a ajudá-lo.

Os poetas simbolistas, no tempo de Rimbaud, faziam uma grita danada. Eles se reuniam nos bares e bradavam seus versos. Nem quando eram espancados eles se calavam. Hoje é muito pior. A grita aumentou descomunalmente. Há gente demais papagaiando ao mesmo tempo.

Estamos cercados de poetas simbolistas. Eles se espalharam por todos os cantos e se acotovelam brutalmente para conseguir recitar uns decassílabos. O presidente da República é um poeta simbolista. O chefe de cozinha é um poeta simbolista. Até o poeta simbolista é um poeta simbolista.

Em 1875, depois de levar dois tiros de Verlaine, Rimbaud afastou-se disso tudo. Ele simplesmente resolveu parar de cacarejar e de ouvir o cacarejo alheio. Numa de suas cartas, de Aden, ele aparece encomendando alguns livros. De poesia simbolista? Ao contrário. Ele encomenda o Livro de Bolso do Carpinteiro, o Manual do Vidraceiro e o Álbum das Serrarias Agrícolas e Florestais.

Num momento como o nosso, em que somos atazanados por um bando de palpiteiros ensandecidos, que manifestam permanentemente os próprios pensamentos, Rimbaud recorda as infinitas virtudes do silêncio. Ele é um modelo para todos nós. Ele é um modelo para o presente.

Em suas cartas, Rimbaud mostra que temos poetas simbolistas de mais e carpinteiros de menos. Ele mostra que temos poetas simbolistas de mais e vidraceiros de menos. Eu pergunto: já encomendou seu Livro de Bolso do Carpinteiro?