sábado, 11 de julho de 2009


Cinema - Isabela Boscov

A CHEFE DE JOELHOS

Em A Proposta, Sandra Bullock é uma editora infernal que, por causa de um erro, vai ser colocada no seu devido lugar pelo assistente que sempre escravizou. Surpresa: no final, a sua versão megera é a que deixa saudade

A BRUXA DESCE DO SALTO



Reynolds faz o que todos os que conhecem sua chefe gostariam de fazer: obriga-a a reconhecer quem manda ali – e diante de testemunhas

Em A Proposta (The Proposal, Estados Unidos, 2009), desde sexta-feira em cartaz, Sandra Bullock é uma chefe tão infernal que, quando circula pelo escritório da editora de livros em que é mandachuva, os funcionários vão avisando uns aos outros sobre seus movimentos: ser flagrado distraído é garantia de humilhação pública.

Margaret Tate, a personagem de Sandra, lê relatórios enquanto se exercita, não devolve o bom-dia de subalternos, marcha, em vez de caminhar, e nunca avisa que uma conversa terminou – apenas passa a ignorar o interlocutor.

Até a maneira como se arruma, com tailleurs em que nada sobra nem falta e rabos de cavalo esticados, parece ser calculada para torná-la mais aerodinâmica e otimizar seu tempo. Margaret é particularmente impiedosa com Andrew, seu assistente, que há três anos a suporta porque espera que um dia a chefe faça justiça e o promova a editor. Andrew odeia Margaret.

Mas vai ter de se casar com ela, porque ela assim determinou: a chefe é canadense, deixou seu visto expirar e será deportada a menos que se case com um cidadão americano.

Numa cena antológica, Andrew, que acaba de descobrir que ficará sujeito a cinco anos de prisão caso se descubra que a união é uma fraude, faz o que todos os que conhecem Margaret desejariam fazer: obriga-a a ficar de joelhos diante dele – para pedi-lo em falso casamento, que seja, mas de joelhos.

A partir daí, A Proposta corre atrás de um argumento de segunda mão. Andrew e Margaret viajam para a casa dos pais dele, no Alasca; em vez de caipiras que abatem alces, ela encontra a aristocracia das altas latitudes; o par que se detesta terá de fingir que se ama, dando margem a beijos artificiais, abraços duros e embaraços variados (pantomima que Sandra e Ryan Reynolds, no papel de Andrew, executam com brilhantismo);

e vai-se descobrir, como se já não fosse sabido, que no íntimo da bruxa existe uma princesa. Não obstante a falta de originalidade desses desdobramentos, A Proposta foi um sucesso nos Estados Unidos, onde rendeu quase 34 milhões de dólares no fim de semana de estreia – bilheteria de filme de ação, não de comédia romântica.

O motivo mais evidente é o apelo humano, por assim dizer, que o filme da diretora Anne Fletcher exerce: há poucas alegrias tão genuínas quanto a de ver um chefe insuportável ser colocado em seu devido lugar. E, se o chefe for uma chefe, o júbilo se multiplica.

Por razões que têm muito a ver com o chauvinismo e um tantinho a ver com o empirismo, a mulher no comando é tratada pelo cinema como a quinta praga do apocalipse – e isso desde antes que houvesse mulheres no comando. Nos anos 30 e 40, quando a então emergente "guerra dos sexos" serviu para que alguns dos diretores mais talentosos de Hollywood instituíssem o padrão-ouro da comédia romântica, a figura da mulher implacável e que não para diante de nada se fixou de maneira quase espontânea.

Num dos primeiros exemplares do gênero, Precisa-se de um Homem, de 1932, a estrela Kay Francis é a todo-poderosa editora de uma revista que faz David Manners passar pelo rebaixamento de trabalhar como seu secretário, mais ou menos como em A Proposta. Em Ninotchka, de 1939, a obra-prima de Ernst Lubitsch, Greta Garbo é uma dirigente comunista tão linha-dura que nem o esplendor do capitalismo a faz vacilar (só Melvyn Douglas é capaz disso).

E, em A Costela de Adão, de 1949, Katharine Hepburn e Spencer Tracy são um casal de advogados que se opõe no tribunal – e é ela a verdadeira litigante, para não dizer beligerante. O curioso é que essas mulheres não eram punidas pelo roteiro por serem carreiristas – nada, para elas, dos queixumes, neuroses e solidão de heroínas românticas mais recentes, como aquelas que Meg Ryan se especializou em interpretar.

Talvez seja esse o dado que tornou A Proposta um sucesso espontâneo. O filme, é verdade, obriga Margaret a amolecer. Mas só bem perto do final. Até aí, apesar das limitações do enredo esquemático, Sandra Bullock, às vésperas de fazer 45 anos, tem a chance de expor as arestas duras e cortantes de sua personalidade – as quais compõem boa parte de seu apelo, mas que ela quase sempre teve de ocultar ou contornar.

Uma mulher vista assim por inteiro pode ser fascinante, e não há dúvida de que foi esse espetáculo que fez Meryl Streep emergir de O Diabo Veste Prada, aos 57 anos e contra todos os credos da indústria, como a mais rentável estrela americana do momento.

Sandra não é uma atriz do seu calibre, mas leva para um papel como o de Margaret um elemento verossímil: por mais que faça, não consegue esconder de todo que é independente, mandona e teimosa, e que portanto baixaria mesmo a guarda com mais facilidade para um homem que conhece de antemão seus aspectos mais indóceis,

que é livre de vaidade o bastante para conviver com eles e que poderia completá-la com a acessibilidade que ela não tem – um tipo de homem que Ryan Reynolds, um ator que gosta de papéis em que o ego masculino é desafiado e que nunca joga com a aparência, apesar de ela ser excelente, faz também parecer crível e possível (pura ilusão cênica; ele é casado com Scarlett Johansson).

É pena que A Proposta não tenha coragem de deixar sua protagonista em paz.

No final, quando o filme trata de colocá-la na linha, aquela cena que uma hora antes parecera tão gratificante, de Margaret ajoelhada numa calçada, com as solas vermelhas dos sapatos Louboutin expostas ao público como um emblema da derrota feminina, acaba por perder muito da sua glória.

Não é que, na sua versão meiga, Margaret seja ruim. É que quando ela era má ela era muito melhor. E bem mais interessante.

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