sábado, 11 de maio de 2024


11 DE MAIO DE 2024
CARPINEJAR

Piedade

Pietà, de Michelangelo, é uma das esculturas mais populares do mundo. Representa Jesus morto nos braços de sua mãe. Maria está de olhos fechados, como que se comunicando em pensamento com o filho adulto e ausente em seu colo.

Há palavras que unicamente podem ser usadas depois da experiência. Conhecemos, na última semana, a piedade, a misericórdia, a compaixão. Palavras que nunca apresentaram tanto sentido para traduzir a realidade. Antes, eram meras palavras. Atualmente, nominam a nossa emoção perante fatos aterrorizantes.

O Rio Grande do Sul atravessa o mais piedoso capítulo de sua história, numa enchente descomunal, que afetou 85% dos nossos municípios, num lastro de dor, desamparo e angústia por resgates. Não se falou de outra coisa. Não se viu outra coisa. Nunca se esperou tanto para que a cheia não se alastrasse mais, ou para que houvesse uma trégua de sol destinada a reduzir seus danos.

Chegamos ao mais triste Dia das Mães do nosso percurso humano no sul do país, a mais difícil e árdua celebração no meio de uma tragédia, com mais de cem mortos, mais de cem desaparecidos e meio milhão de pessoas desalojadas.

O que dizer? Não é o momento de presentes, não é o momento de efeitos especiais e de surpresas: só de abraços lentos, cálidos, só de colos de Pietà, só de oferecer a nossa presença se possível, só de dividir os cabelos de nossas mães com a ponta dos dedos, de olhar firme nos seus olhos e lembrar o nosso nascimento, apesar da destruição e justamente para combater as ruínas.

A nostalgia de nossas datas felizes deve servir para proteger o nosso futuro. É uma artimanha emocional: recobrar a paz de nosso passado é um jeito de imaginar um futuro melhor. Se aconteceu um dia, pode acontecer de novo.

Pensarmos em nossas mães é nos recordarmos do lugar de onde viemos, de como éramos frágeis ao nascer, de como pedíamos socorro ao nos flagrar sozinhos no quarto, de como chorávamos de madrugada por cólicas insondáveis, de como demoramos para falar, para pronunciar as primeiras palavras, de como nos preparamos para plantar os pés no chão, para engatinhar, para andar com as próprias pernas, para não sofrer com as quedas e tombos, de como nos mostrávamos desengonçados, atrapalhados em nossa fome de viver, de como levamos tempo para ir do leite à papinha, da papinha às refeições no prato, até ter a motricidade fina de segurar a colher com precisão.

E sempre, no nosso crescimento vagaroso, na nossa criação gradual e exigente de extrema dedicação, havia uma mãe para nos amparar. Uma mãe zelosa, atenta e carinhosa com as nossas limitações e vontades. Uma mãe entendendo, como agora, que não podemos dar tudo o que ela merece. Nós, gaúchos, somos todos filhos nascendo. Saindo do parto. Começando do zero. No colo piedoso de nossas mães.

CARPINEJAR

11 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

SEGURANÇA CLIMÁTICA

Os sucessivos e frequentes desastres ambientais que provocaram destruição e mortes em cidades gaúchas - três enchentes em 2023 e uma maior agora - são indicativos claros de que as mudanças climáticas prenunciadas pelos ambientalistas chegaram para ficar no Brasil. A catástrofe no Rio Grande do Sul foi acompanhada por uma forte e continuada onda de calor em Estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, o que também ocorre pela quarta vez neste ano.

Considerando-se essa realidade, já não basta que o governo federal continue atuando apenas no socorro às unidades federativas atingidas por intempéries, ainda que a ajuda continue sendo imprescindível. O poder central precisa cada vez mais participar do planejamento preventivo, centralizando operações e compartilhando decisões que hoje ficam a cargo apenas dos Estados e municípios, tais como urbanização, proteção ambiental, construção de infraestrutura nas cidades e dotações orçamentárias para o enfrentamento de catástrofes decorrentes de mudanças climáticas.

Para tanto, é impositivo que um organismo central de planejamento ambiental tenha poder, seja reconhecido por todos e funcione. Não é, infelizmente, o que ocorre hoje com o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, principal órgão da governança climática brasileira, que reúne 17 ministérios sob o comando da ministra Marina Silva, mas que até hoje, desde seu relançamento em setembro de 2023, realizou apenas uma reunião e pouco contribuiu para a prevenção nas regiões mais vulneráveis.

O momento é apropriado para o governo do presidente Lula, que tanto criticou o negacionismo de seu antecessor, desengavetar o projeto de criação de uma autoridade nacional de segurança climática, como chegou a anunciar o Ministério do Meio Ambiente por ocasião da retomada do Comitê. Mas a população espera medidas práticas, e não apenas mais órgãos públicos de nomes sofisticados para engrossar a burocracia estatal.

Pesquisa realizada pelo instituto mineiro Quaest sobre a tragédia ambiental no Rio Grande do Sul indica que o negacionismo climático perde força no Brasil. Pela amostragem das 2.045 pessoas consultadas em 120 municípios do país, entre os dias 2 e 6 de maio, percebe-se que uma maioria significativa de 64% relaciona a enchente às mudanças climáticas do planeta, outros 35% consideram que tem alguma ligação e apenas 1% acredita que não tem ligação nenhuma.

Evidentemente, se esses percentuais forem aplicados à totalidade da população do país, ainda parecerá elevado o número de brasileiros que rejeitam explicações científicas para os desarranjos ambientais, preferindo atribuir os desastres ao acaso ou a causas sobrenaturais. Mas uma parcela cada vez mais expressiva de cidadãos demonstra estar consciente de que o descaso humano com a preservação do planeta é o motivo maior do desequilíbrio ambiental. E as pesquisas também mostram que esse contingente de brasileiros bem informados está cobrando mais responsabilidade dos seus representantes políticos.

OPINIÃO DA RBS

11 DE MAIO DE 2024
ACERTO DE CONTAS

150 supermercados fechados

Até ontem, cerca de 150 supermercados seguiam fechados no Rio Grande do Sul porque foram severamente atingidos pela inundação. O monitoramento é feito pela Associação Gaúcha de Supermercados (Agas). Perto do total de lojas que o Estado tem, cerca de 6,8 mil, parece pouco, mas não é. Algumas cidades perderam todos os seus mercados ou o seu único estabelecimento.

Além disso, outras tantas lojas estão com dificuldade de receber mercadorias, especialmente pelos bloqueios em estradas. Muitos itens estão sendo trazidos de fora do Estado, diz o presidente da Agas, Antônio Cesa Longo.

Mercadinhos

Uma observação setorial é que os grandes supermercados estão, em alguns locais, tendo mais dificuldades do que os pequenos mercadinhos. Muitas redes maiores estão com seus centros de distribuição ilhados. Já os comerciantes menores têm contatos diretos com produtores e distribuidores, conseguindo garimpar mercadorias no meio da dificuldade.

Água no lugar do chope

O grupo Heineken está usando sua cervejaria em Igrejinha para tratar e doar água potável. E o melhor: o transporte a outras cidades é feito pela própria empresa com uma estação móvel de chope, que ontem estava no Hospital de Clínicas. Além deste veículo, um caminhão-pipa abastecido na unidade circula por outras regiões do Estado e foi a Igrejinha nesta sexta-feira. A Heineken também transferiu 300 mil litros de água da marca Schin, de Alagoinhas, na Bahia, para o Rio Grande do Sul.

Lojistas perderam R$ 585,4 milhões em uma semana

Aos poucos, os cálculos dos prejuízos econômicos da inundação começam a aparecer. Um deles é o da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre (CDL), que aponta que o comércio gaúcho deixou de faturar R$ 585,4 milhões apenas na primeira semana da inundação. Ou seja, esse número certamente já foi bem ultrapassado e será ainda maior.

O economista-chefe da CDL POA, Oscar Frank, considerou o Índice Cielo, comparando com o mesmo período de 2023. A estatística pega 900 mil estabelecimentos em 18 setores. As transações caíram 15,7% no Rio Grande do Sul, contra um recuo nacional de 3,2%.

- Categorias de serviços e bens menos essenciais sofreram as piores perdas, enquanto postos de gasolina e supermercados tiveram crescimento extraordinário - observa Frank.

Vestuário viu o faturamento cair à metade. Restaurantes, lojas de móveis e materiais de construção tiveram recuo acima de 35%. Supermercados e postos de combustíveis venderam mais, mas isso vai mudar nos próximos cálculos. Houve corrida para antecipação de consumo. A falta de produto nos dias seguintes certamente derrubou a venda.

GIANE GUERRA


11 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Base de Canoas vai ter voos comerciais

A Base Aérea de Canoas passará a receber voos comerciais regulares. Serão cinco viagens por dia. A Fraport será a responsável por fazer a administração portuária. Ela precisará instalar raio X e escadas para descer das aeronaves. Ainda não há previsão de quando começarão estas operações.

As companhias aéreas Gol, Latam e Azul já manifestaram interesse em disponibilizar voos para o terminal da Aeronáutica. As informações foram divulgadas pelo ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, em entrevista realizada na quinta-feira em Brasília. Usada como ponto de recebimento de doações, a pista da Aeronáutica seguirá sendo utilizada também para este fim.

Além disso, serão reforçados voos regionais a fim de realizar 116 voos extras, transportando 13 mil passageiros a mais. Caxias do Sul receberá 25 voos extras semanais, 16 em Passo Fundo, outros cinco em Pelotas, três em Uruguaiana, Santo Ângelo receberá dois e Santa Maria outros dois.

Todos esses voos extras partirão de Congonhas, Viracopos e Guarulhos, terminais de São Paulo, e do Afonso Pena, em Curitiba. As passagens estão disponíveis para compra desde sexta-feira, com exceção de Canoas, que ainda aguarda resposta da Fraport.

Haverá reforço também em Santa Catarina. O aeroporto de Florianópolis terá 21 voos extras e Jaguaruna (próximo a Criciúma), outros sete. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) irá fazer o monitoramento destas novas operações.

- A Anac vai monitorar os preços. Irá cumprir seu papel de fiscalização e monitoramento. Não podemos ter tarifas desproporcionais - disse o ministro.

De acordo com Costa Filho, o aeroporto Salgado Filho está com 2,5 metros de água na pista, nas áreas de iluminação. Esteiras, elevadores e lojas estão debaixo d?água, segundo o ministro. Somente quando a água baixar, a Fraport poderá fazer avaliação dos danos e saber o impacto na pista e terminal.

JOCIMAR FARINA

11 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Foco na proteção de mulheres e crianças

Forças de segurança reforçaram a atuação dentro de abrigos. Seis suspeitos foram presos após cinco casos de abuso sexual

Em meio às cheias, a segurança das crianças que estão em abrigos para famílias atingidas é uma preocupação a mais para autoridades e população. Diante de relatos e registros confirmados de crimes sexuais em locais de acolhimento, as ações das polícias foram reforçadas.

Desde o início das cheias, cinco estupros em abrigos foram registrados pela Polícia Civil na Região Metropolitana. As vítimas são quatro crianças com idades entre seis e 10 anos e uma jovem. Seis suspeitos foram presos.

A polícia alerta, porém, para notícias falsas nas redes sociais, que narram um cenário mais grave do que o real. Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), entre os cinco estupros registrados, quatro, ocorridos em Porto Alegre e Canoas, envolviam familiares das vítimas como autores. Suspeita-se de que esses abusos já aconteciam antes.

- Eram situações que já vinham ocorrendo na casa dessas pessoas e foram constadas agora que chegaram aos abrigos - diz o secretário estadual da Segurança, delegado Sandro Caron.

O quinto caso teria acontecido no último sábado em um abrigo não oficial no bairro Estância Grande, em Viamão, onde a vítima, de seis anos, estava sozinha. Ela foi resgatada antes da família, já que a prioridade era remover primeiro as crianças. Com isso, ficou sem supervisão enquanto os pais eram salvos. Ela teria sido abusada por um homem de 24 anos, também abrigado.

Investigação

A diretora do Departamento de Polícia Metropolitana (DPM), delegada Adriana Regina da Costa, diz que os casos são pontuais e são investigados. Não foi observado pela polícia um aumento dos registros de abusos.

Uma força-tarefa, com participação do Ministério Público (MP), foi montada no início desta semana para acompanhar os abrigos, com foco no acolhimento e proteção de crianças e adolescentes. A Brigada Militar também atua nestes locais. No domingo, mil PMs da reserva retornarão à ativa temporariamente, priorizando os pontos de abrigamento.

Além disso, segundo a diretora do DPM, a Polícia Civil tem feito rondas diárias, à noite, nos abrigos na Região Metropolitana. Os agentes ingressam nos locais e circulam pelas ruas do entorno.

Na madrugada de terça-feira, por exemplo, 120 policiais do DPM fizeram rondas nos abrigos. Os agentes conversam com voluntários e coordenadores dos espaços. Uma das orientações é para que os responsáveis pelas crianças não as deixem sozinhas. Quando a polícia identifica uma situação de risco, alerta o coordenador do abrigo.

A polícia realiza estas rondas também para tentar impedir conflitos entre os abrigados. A possibilidade é de que os problemas já existentes nos bairros, como brigas e ameaças, migrem para os locais de acolhimento. Tais situações, já conhecidas pela polícia, podem ser potencializas com o aumento de número de pessoas concentradas.


11 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

Corrida por infraestrutura no Litoral

Apesar da intensa movimentação causada pelas cheias, mercados e postos de combustível conseguem atender a demanda

Apesar do alto movimento que se assemelha ao de um dia de verão, a forte chuva e o frio que obrigou as pessoas a se agasalharem na sexta-feira são lembretes de que a alta temporada em Capão da Canoa já passou e que estamos em meados de maio. O movimento na cidade, de acordo com a prefeitura, se aproxima ao do Natal, em função da migração de pessoas para o Litoral Norte para escapar da maior tragédia climática que assola o RS - seja por falta de infraestrutura, como água ou luz, seja por terem perdido suas casas.

Ainda que haja uma grande quantidade de carros circulando pelas ruas, a maior parte dos mercados da cidade está bem abastecida. Há água - com limite de compra por pessoa em alguns locais, como no Andreazza da Avenida Paraguassu - e hortifrúti para atender a população excedente. No Nacional, porém, faltava água, frutas e verduras na tarde de sexta. Nos postos de combustíveis, também houve um aumento significativo da demanda.

O abastecimento segue normalmente e não há falta de produtos nem limite de abastecimento no Posto Buffon da Paraguassu. No Posto Ipiranga da Avenida Ararigboia, há combustíveis, mas a rede está priorizando cidades com maior necessidade.

"Caos"

Morador de Capão da Canoa, Maikel André Dalanhol, 44 anos, motorista de aplicativo, relata que as praças estão lotadas de pessoas praticando esportes, o que não é tão comum nesta época, em que os moradores seguem rotinas de trabalho e não há veranistas. Dalanhol considera "superimportante" receber as pessoas de outros municípios que perderam suas casas e não têm onde ficar. Ele critica, porém, quem veio à cidade por falta de infraestrutura, para "fazer turismo" e estocar produtos.

- Está pior que o verão pela questão que agora tem aulas. É um caos por volta do meio-dia e das 17h, porque o pessoal tem vida normal aqui. A cidade não depende mais do turismo como antigamente, já tem vida própria, então fica difícil - avalia.

FERNANDA POLO

11 DE MAIO DE 2024
POLÍTICA +

Palmas para Sua Excelência, o voluntário anônimo

Sem eles (aqui entendidos como pessoas, sem distinção de gênero), a esta altura estaríamos contando os mortos aos milhares. Sem eles, a esta hora teríamos uma multidão de famintos. Sem eles, neste fim de semana o Rio Grande do Sul estaria vivendo uma guerra civil. Benditos sejam os voluntários que deixaram o conforto de suas casas no seco para ajudar quem estava nos telhados pedindo socorro.

Eles surgiram de todos os lados, até de outros Estados, com seus barcos, botes, lanchas, jet skis, quando entenderam que a catástrofe climática que entrará para a história como "a enchente de 2024" era mais devastadora que os grandes furacões.

Desde sábado, eles recolhem e entregam doações, separam roupas por tamanho, montam guarda na porta de banheiros, transmutam-se em seguranças desarmados. Arrastam barcos, molham-se na água barrenta que invadiu a cidade, entram nas casas alagadas para salvar pessoas e bichos, convencem moradores resistentes a sair de casa, explicando que é questão de vida ou morte.

Dirigem caminhões por estradas intransitáveis, levantam na força do braço os fardos de água, transportam a solidariedade alheia. Eles cozinham, servem refeições, brincam com crianças, dão atendimento médico e psicológico, distribuem roupas de acordo com o tamanho, preocupam-se em tornar mais digna possível a vida nos abrigos.

Eles recolhem gatos ariscos em gaiolas, cachorrinhos dóceis e assustados e até cães de guarda, bravos, que precisam ser anestesiados para colocar a focinheira. Seguem a orientação das autoridades: não deixar ninguém para trás.

Quando pessoas e animais chegam ao seco, estressados, famintos ou com hipotermia, eles acolhem, acalmam, cobrem com manta térmica, examinam, encaminham para o destino mais adequado. Eles estão em todos os lugares, fazendo conexões entre quem precisa e quem tem para doar, pedindo ajuda às empresas, sugerindo rotas, convencendo os CEOs das grandes corporações de que precisam ser solidários.

Eles não ficam famosos como o cavalo Caramelo. O crachá é o nome escrito numa fita crepe colada ao colete ou à roupa, para que as pessoas saibam que estão falando com o Márcio, a Fernanda, o Antônio, a Manuela ou a Camila.

Eles são os heróis anônimos que não terão condecorações, mas estarão para sempre no coração de quem recebeu ajuda ou testemunhou essa onda de solidariedade.

Se todos os desocupados que passam o dia nas redes sociais criticando os que estão trabalhando entrassem na corrente que terá de crescer no processo de reconstrução do Rio Grande do Sul, as forças seriam multiplicadas e a reinvenção do Estado ocorreria em menos tempo.

ROSANE DE OLIVEIRA

11 DE MAIO DE 2024
MARCELO RECH

Índoles

Na noite de domingo, quando a magnitude da catástrofe tomava forma, ingressei por terra no Rio Grande do Sul. Tive uma sensação de volta aos tempos de correspondente de guerra ao constatar que, pela freeway, seguiam para Porto Alegre comboios rebocando lanchas, jet skis, água e mantimentos. No sentido oposto, milhares de luzes de automóveis anunciavam o abandono em massa da Capital. Pela primeira vez em décadas, revivi minha definição de zona conflagrada: é aquela em que alguns poucos querem entrar, e de onde muitos querem sair. A chegada a Porto Alegre dispensa placas de sinalização. Sabe-se que se está na cidade pelo som de sirenes e helicópteros.

Como em toda guerra, esta revela o que há de melhor e pior no ser humano. No nível máximo da má índole, numa categoria abjeta, estão assaltantes, ladrões, abusadores e saqueadores que invadem casas e lojas vazias. Seguem-se espertalhões que aplicam golpes e os que buscam de forma sórdida lucros milionários se aproveitando da desgraça alheia.

Em outro compêndio, o da cretinice, o nível gold vai para alguns políticos e seguidores que se valem do infortúnio para exploração eleitoral. Numa tragédia dentro da tragédia, eles se empenham em aprofundar a polarização que consome o país. Como as esferas federal, estadual e a municipal de Porto Alegre são lideradas por dirigentes de três campos diferentes, os mais torpes estimulam hostilidades indecorosas neste momento - não por culpa de Lula, Eduardo Leite e Sebastião Mello, ressalve-se. 

Embora no futuro se deva esquadrinhar a atuação de cada um antes, durante e depois do cataclismo, os três têm se desdobrado à altura dos grandes líderes em momentos de crise. Os que tentam pôr fogo no circo em meio à devastação, aliás, deveriam se mirar no exemplo de governadores que, independentemente de cor política, não vacilaram ao sair em socorro do Rio Grande do Sul.

Já na categoria da baixeza, o nível mais alto está reservado aos criadores de fake news que tentam macular o esforço de enfrentamento da calamidade. Os que tratam de difundi-las são por vezes inocentes úteis a serviço de aproveitadores, mas deveriam ao menos acordar para uma regra primária em gerenciamento de crises: se alguém não quer ou não sabe como ajudar, que pelo menos não atrapalhe.

Na história da Grande Enchente de 2024, os de má índole não passarão de um parêntese de ressalvas. A página que se escreve neste momento é composta majoritariamente por homens e mulheres, servidores civis e militares, voluntários e doadores que estão deixando transbordar o melhor de suas índoles para salvar vidas, amenizar dores e estender a mão para o recomeço. É essa imensidão de gaúchos e brasileiros, e não os poucos com déficit de caráter, que serão lembrados para sempre como símbolos e exemplos para as futuras gerações.

MARCELO RECH

"Justicia gendarussa"

Justicia gendarussa é o nome científico de um arbusto conhecido como quebra-demanda ou quebra-tudo. Nas religiões de matriz africana, o vegetal é usado em banhos, bate-folhas e benzimentos para abrir caminhos e proteger ambientes.

É a erva de Ogum e Iansã, orixás guerreiros. Para quem crê, é uma planta de grande poder. Vence tudo.

E é exatamente esta a folhagem a estampar o mural gigante - de 65 metros de altura por 15 metros de largura - que você vê na imagem ao lado.

Captada pelo fotógrafo Ronaldo Bernardi, de Zero Hora, na última semana, a foto é o retrato de uma Porto Alegre submersa, frágil e paralisada, em plena Avenida Borges de Medeiros.

Ali, junto de uma das artérias urbanas mais conhecidas da Capital, na empena de um prédio público, está a obra pintada em 2021 pela suíça Mona Caron e pelo paulistano Mauro Neri. No desenho de rara delicadeza, custeado por mais de 130 entidades e instituições, uma mulher negra olha para o céu e, com as mãos espalmadas, exalta a planta mística.

Não sou uma pessoa religiosa, ao menos não no sentido formal, mas respeito quem tem fé e acredito que há um bocado de coisas, entre a terra e o firmamento, que não conseguimos explicar de forma racional.

Quando vi a foto ao lado, com toda aquela água e tudo mais que a catástrofe climática trouxe de ruim ao nosso Rio Grande, fixei o olhar no mural e lembrei da história que acabo de contar. Tive a certeza de que nós vamos superar as dificuldades e reconstruir o que foi desfeito. Vamos vencer. Que os orixás nos acompanhem.

P.S.: na mesma Avenida Borges de Medeiros, uma a quadra da obra destacada ao lado, há outro painel simbólico - e alagado -neste momento crítico. É o mural do ambientalista José Lutzenberger. Lutz foi um dos primeiros a alertar para o que estava por vir. Demos ouvidos?

INFORME ESPECIAL 

sábado, 4 de maio de 2024


04 DE MAIO DE 2024
MARTHA MEDEIROS

A viuvez dos separados

Meu amigo Fabricio Carpinejar antecipou o assunto, numa bela crônica publicada em 26 de abril, onde discorreu sobre a sensação de ser viúvo/a de uma pessoa com quem já não se é casada. No dia anterior, eu havia enterrado meu ex-marido, e li as palavras do Fabricio com a alma ainda quente. Ele mais uma vez foi certeiro em sua percepção. Estava escrevendo sobre minha história com o pai das minhas filhas.

Foram 21 anos juntos e 18 anos separados, numa relação que nunca terminou, apenas mudou de status: de cônjuges para amigos. Muitos ao redor destacavam nossa civilidade, o que para nós soava esquisito, qual o estranhamento? 

Depois de uma relação de amor e de uma família construída, como poderia restar apenas frieza e distância? Sei que traições, brigas, disputas financeiras e tantos outros fatores podem conduzir a um fim radical, mas houve uma época em que o casal se amou de tal forma que investiu na eternidade do relacionamento. Se, mais adiante, a separação foi o caminho encontrado para aliviar desavenças, nem por isso a eternidade precisa ser cancelada. 

Separações podem ser atos de amor. Ao constatar que já não pensam parecido e o desejo se bifurcou, toma-se a atitude prévia de se separar, antes de se tornarem grosseiros e secos. Afastam-se parcialmente, sem desfazerem o vínculo por completo. Óbvio que não precisam sair para um chope toda semana, talvez fiquem sem se ver por anos, mas preservam o respeito e a amizade. Sabem que poderão contar um com o outro para sempre, o verdadeiro "para sempre" a ser considerado.

Até que a morte os separe, dizem os padres em cerimônias religiosas de casamento. Dias atrás, esta frase ainda me parecia um ultimato obsoleto. Duração não é um valor em si, as pessoas têm o direito de amar e desamar, elas se transformam e ninguém garante que quem está ao lado acompanhará as mudanças, portanto, que se separem quando forem esgotadas as possibilidades de ser feliz junto. As crianças sofrerão, mas um dia irão compreender que a paz é preferível a um ambiente contaminado por frustrações.

No entanto, "até que a morte separe" ganhou novo sentido para mim, me parece uma frase simpática inclusive para uso numa audiência de divórcio. Matrimônios acabam e o que se faz com a antiga intimidade? Reaproveita-se para iniciar uma relação de desapego, mas intacta em sua essência amorosa - até o fim.

Meu estado civil virou uma abstração, já não me sinto divorciada, mas viúva não sou, ao menos não a única: outros amores ele teve, importantes também. O que resta agora é o orgulho de ter feito parte da vida de um homem especial que se foi. De bônus, confirmei que finitude é um conceito relativo. Às vezes, nem a morte encerra tudo.

MARTHA MEDEIROS

04 DE MAIO DE 2024
DRAUZIO VARELLA

A PRÓXIMA PANDEMIA

Será fundamental estarmos preparados, sem repetir os erros que cometemos com a covid-19. Haverá uma nova pandemia, só não sabemos como virá nem de onde. Será fundamental estarmos preparados para enfrentá-la, sem repetir os erros que cometemos quando o vírus da covid-19 chegou até nós.

O Brasil é o único entre os países mais desenvolvidos que não conta com uma instituição especializada na gestão de emergências em saúde pública e no controle de doenças, como são as dos países europeus e os Centers for Diseases Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, por exemplo.

Assim que surgirem os primeiros casos de uma doença desconhecida em nosso território, será necessário detectá-los de imediato, isolar o agente causador, sequenciar seu genoma e caracterizar os modos de transmissão e o padrão de disseminação entre seres humanos e animais. Esses conhecimentos são fundamentais para a elaboração de vacinas e demais estratégias de combate.

O mesmo vale para doenças conhecidas que podem reemergir num dado momento. Veja a epidemia de dengue que estamos vivendo. Se contássemos com uma estrutura especializada em responder de forma emergencial, capaz de aplicar modelos epidemiológicos para avaliar a extensão e a gravidade dos surtos com antecedência, o SUS teria tido tempo de se mobilizar com mais eficácia para evitar tanta morbidade.

Com as mudanças climáticas atuais, a pobreza e as condições de moradia da nossa população, é impossível acabar com a proliferação do Aedes e com a dengue, mas as mortes podem ser evitadas com uma medida simples: a hidratação.

A dificuldade não é saber como tratar, mas como organizar as redes formadas pelo programa Estratégia Saúde da Família, pelas Unidades Básicas de Saúde, pelas Unidades de Pronto Atendimento e pelos hospitais de forma racional para garantir o acesso irrestrito ao atendimento, num país das dimensões do nosso.

É um desafio gigantesco, que não pode depender de iniciativas isoladas das prefeituras. Emergências em saúde pública exigem coleta de dados confiáveis, respostas rápidas e coordenação nacional e internacional.

Precisamos de um órgão técnico supervisionado pelo Ministério da Saúde, integrado ao SUS, para assessorá-lo com autonomia e estabilidade funcional, independente do voluntarismo dos governantes da ocasião. Não podemos repetir absurdos recentes, como o de depender da imprensa para checar os números da epidemia uma vez que os oficiais não eram confiáveis.

Não é preciso reinventar a roda. Apesar das dificuldades e dos descasos, a ciência brasileira dispõe de cientistas da melhor qualidade, distribuídos em universidades e institutos de pesquisas respeitados internacionalmente, como o Butantan, a Fiocruz e o Instituto Evandro Chagas, entre vários outros.

Temos também cientistas altamente capacitados que trabalham nos maiores centros de pesquisa americanos e europeus. São brasileiros dispostos a voltar para o país assim que lhes forem oferecidas condições decentes para prosseguir com suas pesquisas. Não é sensato desperdiçar talentos que nos fazem falta.

As mudanças do clima, o desmatamento, o crescimento desordenado das cidades, a superpopulação em algumas áreas e a desigualdade econômica formam o caldo de cultura ideal para a disseminação de doenças infecciosas e de outros agravos.

As ameaças à saúde da população no mundo atual estão cada vez mais complexas. Não há mais espaço para improvisações. As políticas públicas devem ser adotadas pelo SUS depois de análises de dados e avaliações técnicas baseadas nas melhores evidências científicas.

O Brasil tem um dos sistemas de saúde mais abrangentes do mundo, o SUS, mas não é fácil oferecer assistência para 200 milhões de habitantes espalhados numa extensão continental, com grandes massas populacionais vulneráveis.

A próxima emergência em saúde pública não pode provocar tragédia semelhante à da covid-19. Faz falta um órgão técnico adaptado à nossa realidade, com recursos financeiros, gestão moderna, livre de interferências políticas e com agilidade administrativa para contratar profissionais, desenvolver estudos colaborativos com as universidades e os institutos de pesquisa, integrado ao SUS com o objetivo de assessorá-lo e fortalecê-lo.

Perderam a vida mais de 700 mil brasileiros na última pandemia. Não podemos ser pegos de surpresa outra vez. Não vamos repetir os mesmos erros, não é possível que não tenhamos aprendido nada.

DRAUZIO VARELLA

04 DE MAIO DE 2024
J.J. CAMARGO

O TEMPO DA DESCONFIANÇA

Por inércia ou comodismo, permitimos que valores básicos fossem fraudados, gerando uma náusea engatilhada e um resmungo permanente

"Não há nada de errado com aqueles que não gostam de política, eles simplesmente serão governados pelos que gostam." (Platão)

É certo que ninguém escolheria viver num mundo marcado pela desconfiança. Se estamos vivendo esse tempo, significa que temos enorme parcela de culpa por termos permitido, por inércia ou comodismo, que os valores básicos fossem fraudados, gerando em grande parte esse desconforto que não desgruda e que nem conseguimos explicar, mas mantém uma náusea engatilhada e um resmungo permanente, única evidência de que estamos infelizes. Ainda que sigamos fazendo de conta que está tudo bem, mesmo com a consciência grunhindo que não.

A primeira função comprometida por esse estado de coisas é o sono, que some sem causa aparente, alongando as madrugadas nesse tempo de solidão fisiológica em que a realidade, que está ruim, prenuncia-se ainda pior.

Há poucas décadas, em sinal de preocupação com o bem-estar coletivo, eram frequentes as pesquisas de opinião, para saber, numa atitude proativa, qual setor da sociedade era melhor cotado perante a população. Lembro de Correios, Justiça, imprensa e médicos, estes liderando a pesquisa. Tempos depois, os Correios, provavelmente constrangidos pela distância que os separava dos outros objetos de pesquisa, tiveram uma piora impressionante, atribuída a um sinal dos tempos modernos, vertiginosamente acelerados pela tecnologia da informação. Mas coincidência ou não, o topo daquela lista despencou a seguir. Em solidariedade?

Políticas que fracassaram em todos os lugares do mundo em que houve quem acreditasse nelas foram sacudidas do mofo que as cobria e apresentadas como novidades. E outra vez estabeleceu-se a supremacia do discurso vazio sobre os fatos indiscutíveis.

E a desconfiança generalizou-se porque quase nada era como parecia ser, e cresceu a percepção de que só teria certeza de alguma coisa quem estivesse mal-informado.

A Justiça tornou-se fluida, e o brado "isso é inconstitucional!" passou a ser repetido com tal frequência que, depois de um tempo, ninguém mais sabia o que aquilo queria, de fato, dizer. Talvez clamassem pela memória da dona Constituição, uma senhora originalmente bonita, mas que passou por tantos acréscimos e remendos que é evocada somente quando vítima de outro atropelamento, ainda mais desfigurante.

A imprensa, outrora formadora de opinião, fragmentou-se como representante de uma sociedade ideologicamente dividida, em que cada um lê ou ouve só o que coincida com sua opinião, fugindo do contraditório, que sempre foi o mais poderoso antídoto da ignorância, individual ou coletiva.

A medicina, historicamente vista como elite social nos países desenvolvidos (provavelmente porque os poderosos sempre tiveram medo de morrer de uma doença tratável), passou a ser ostensivamente aviltada na sua origem, com cursos caça-níquel sem nenhuma preocupação com qualidade, vitimando de morte a quem nunca pode escolher.

Com os valores básicos em franca degradação, ninguém mais tem ânimo para promover uma pesquisa que apurasse, por pura curiosidade, em qual setor da República o povo confia menos. E por quê? Porque ninguém está interessado no que o povo pensa, desde que siga pagando os impostos, claro, e guarde para si sua modesta opinião.

J.J. CAMARGO

04 DE MAIO DE 2024
CONSELHO EDITORIAL

JORNALISMO EM TEMPOS DE CATÁSTROFE

Para que serve o jornalismo em uma emergência climática extrema?

Em momentos agudos como o da tragédia que infelizmente assola o Rio Grande do Sul mais uma vez, em primeiro lugar, serve para ajudar as pessoas a sobreviverem: para onde ligar se precisar ser resgatado. Quais estradas estão interrompidas. Qual a probabilidade de os rios subirem em determinados lugares e quando a evacuação deve ocorrer.

Em momentos como este, a diretriz nas redações segue esta prioridade: primeiro, o que chamamos de "serviço e alertas": tudo o que ajudará as pessoas a sobreviverem e a passarem melhor pela emergência, como neste momento dramático como nunca se viu no Estado.

A segunda prioridade é mobilizar pela solidariedade e pela reconstrução. O tamanho desta tragédia ainda não permitiu que se entrasse de vez nesta frente, porque a situação ainda está muito crítica. Mas, assim como fizemos nos últimos eventos climáticos graves, o Grupo RBS novamente vai ajudar de todas as maneiras para que o Rio Grande do Sul se una em esforços para, mais uma vez, recuperar as cidades, as estradas, as pontes, as casas, o comércio etc. E isso se faz com o clamor pelas doações, nos locais adequados, sempre em compasso com a Defesa Civil. Fazemos isso por meio da campanha e dos programas Ajuda Rio Grande.

Nos últimos dias, RBS TV, Gaúcha, GZH, Zero Hora, Diário Gaúcho, Pioneiro voltaram 100% dos seus esforços para informar, informar, informar. Derrubamos programações normais para, em todos os espaços possíveis, levar ao público o máximo de informações. Autoridades não têm como fazer chegar à população imediatamente, salvo por meio dos veículos de comunicação de jornalismo profissional, as mensagens que precisam ser transmitidas.

Foram centenas de repórteres, apresentadores, editores, cinegrafistas, fotógrafos, comunicadores, em dezenas de cidades diferentes do Estado, para trazer o quadro completo, minuto a minuto.

Por mais que nos esforcemos, com todas as nossas equipes junto à população, numa catástrofe como esta nunca parece ser suficiente. A sensação de impotência e o pesar pelas perdas de vidas são gigantescos. Mas seguiremos trabalhando duro, no que é nosso papel, de tentar informar e mobilizar ao máximo, para que o jornalismo cumpra seu papel em mais este desafio extremo do Rio Grande do Sul.

?Leia a Carta da Editora Dione Kuhn à página 4 com depoimentos de nossos repórteres e comunicadores.

MARTA GLEICH

04 DE MAIO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

SOMOS TODOS CULPADOS?

Dois episódios da Bíblia - o Dilúvio e o Apocalipse - parecem reunir-se com as enchentes de agora. É como se as portas do céu se abrissem e as chuvas despencassem das nuvens sem piedade. Daí pergunto: na seca de meses atrás, as chuvas se esconderam nas nuvens?

Ou as secas também são obra das nuvens, que, arrependidas, se desculpam após nos castigar e, assim, fazem chover como no Dilúvio?

Essas indagações, mesmo sem sentido, levam à conclusão da ciência: os fenômenos ou mudanças na natureza são obra nossa.

Basta acompanhar os relatos deste jornal e da RBS TV para avaliar os estragos provocados pela chuvarada. Na zona de mineração em Arroio dos Ratos, os diques (construídos para explorar carvão) retiveram a água inundando a cidade. Na enchente anterior, moradores acionaram o Ministério Público, mas o alerta não venceu a lentidão burocrática e o horror cresceu agora.

A crise do clima, alternando secas e enchentes, exige ações preventivas. Os governantes, porém, limitam-se a gestos formais, como fez o governador ao decretar agora "estado de calamidade pública". Nada foi feito de antemão para, pelo menos, atenuar a catástrofe.

É absurdo resolver as calamidades por decreto. Ou crer que as chuvas matam e destroem por serem "assassinas" e "más".

As calamidades são obra do ser humano e dos governantes. As mudanças climáticas, desenvolvidas por séculos, se agravaram, chegando à crise atual. O grande vilão são os combustíveis fósseis, como petróleo e carvão mineral.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, referiu-se ao carvão e advertiu: "Basta de financiar a morte".

Tampouco basta que o presidente da República venha ao Estado e sobrevoe as zonas afetadas ou nelas permaneça algumas horas. Faltam planos e projetos para enfrentar a crise climática. No Estado, permanece a ameaça de abrir uma mina de carvão a 12 quilômetros da Capital, às margens de um rio que chega ao Guaíba, que, assim, se transformará em cloaca mineral.

Nada se faz de concreto para evitar esse Apocalipse.

FLÁVIO TAVARES

04 DE MAIO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

COMPROMISSO COM O ESTADO

Zero Hora completa 60 anos de existência neste sábado com uma história singular e muitos motivos para celebrar, mas nenhuma celebração pode ser mais significativa do que a reafirmação diária de seu compromisso com a informação, com a prestação de serviços e com os interesses do povo gaúcho. Por isso, o Grupo RBS decidiu registrar este aniversário com a discrição e a responsabilidade que o momento exige, ao mesmo tempo que, num processo natural de sua operação, mantém a mobilização de seus profissionais e de seus veículos na ampla cobertura da tragédia que se abate sobre o Estado. 

O Rio Grande do Sul passa por uma calamidade climática sem precedentes. Em diversas áreas de seu território, há pessoas morrendo, há desaparecidos, há comunidades inteiras desabrigadas e há a necessidade de muita informação para orientar a população, potencializar a ação das autoridades e ajudar na preservação de vidas humanas. 

Nada pode ser mais importante do que isso neste momento. O Grupo RBS está consciente desta realidade. Não vamos ignorar o aniversário do jornal, nem deixar de apresentar, em breve, uma edição impressa reformulada e várias outras novidades na sua versão digital. Estamos preparados para anunciar produtos e serviços inovadores, que se estendem também à plataforma GZH, à Rádio Gaúcha e aos demais veículos do grupo, numa conexão planejada para atender a todos os segmentos dos nossos públicos. 

O evento de lançamento deste pacote de inovações para parceiros e clientes será reagendado em data oportuna, assim como a veiculação da edição reformulada de Zero Hora. Acreditamos - e continuaremos trabalhando muito nesse sentido - que logo o Estado terá superado o momento mais agudo da atual crise. 

Independentemente dessa previsão, porém, nos comprometemos a continuar acompanhando com total atenção os fatos relacionados à catástrofe ambiental, como estamos fazendo exaustivamente nesses dias angustiantes de chuva e lama. Em cumprimento ao compromisso de parceria que mantém com a população gaúcha, o Grupo RBS decidiu ampliar os espaços noticiosos de seus veículos para acompanhar melhor o atual evento climático e as demandas das comunidades por ele afetadas. 

Consideramos que essa proximidade com o público é essencial para alcançarmos o nosso propósito de prestar um bom serviço de comunicação por meio de informações úteis e opiniões construtivas e responsáveis. Por tudo isso, ao completar sua sexta década de existência, Zero Hora adia a celebração de seu aniversário, mas aproveita a data emblemática para registrar sua gratidão aos leitores, assinantes, anunciantes e profissionais que, ao longo dos anos e diariamente, vêm ajudando a escrever a história deste jornal comprometido com o Estado e com a sua população. 

Esta parceria com o público nos fortalece e nos desafia. Somos gratos aos leitores pela escolha, mas também pelas sugestões, pelas críticas e pelos incentivos. O retorno valoriza nosso trabalho e nos estimula a melhorar. Por isso acreditamos que, juntos, haveremos de superar as dificuldades do presente para continuarmos construindo um futuro digno para todos nós.



04 DE MAIO DE 2024
+ ECONOMIA

Siderúrgica promete "toda ajuda"

Também afetada pela enxurrada, a Gerdau decidiu parar a produção na usina de Charqueadas, focada na produção de aços especiais, destinados ao mercado automotivo.

Segundo o CEO da siderúrgica, Gustavo Werneck, a decisão foi tomada no momento em que a cidade está passando por sérios problemas e permite concentrar o foco nessa solução. A atual capacidade de produção na usina, a antiga Aços Finos Piratini, é de 450 mil toneladas por ano.

A expectativa é de que a retomada em Charqueadas ocorra nos próximos dias, assim que a água refluir. Em Sapucaia do Sul, onde a Gerdau acabou de inaugurar obras de modernização, a atividade continua normal.

À coluna, Werneck afirmou que está em contato permanente com o governador Eduardo Leite para garantir "todos os recursos que puder disponibilizar".

- Vamos dar toda a ajuda possível. Isso tanto agora, que os esforços estão mais focados no resgate, quanto em um segundo momento, o da reconstrução. Estamos nos solidarizando com todos os gaúchos e acompanhando de perto a situação da chuva no Estado.

A parada em Charqueadas só deve se estender no final de semana, tranquilizou Werneck. Não deve provocar impacto no mercado, uma vez que a empresa tem estoques para suportar a demanda no período em que se considera necessária a interrupção das atividades.

Uma ideia para reconstruir o Estado

A coluna recebeu uma ideia para viabilizar a enorme quantidade de recursos que será necessária para recontruir o Estado: negociar com a União a suspensão temporária do pagamento da dívida pública, condicionada à demonstração de aplicação de recursos na recuperação econômica e social do Rio Grande do Sul.

O autor é o ex-secretário da Fazenda Aod Cunha. É bom lembrar que não se trata de um economista que relativiza a necessidade de pagar dívidas, sejam públicas ou privadas.

- Jamais proporia algo assim, mas há justificativa econômica e legal para isso, uma calamidade pública de grandes proporções. A própria legislação federal prevê isso e já foi usada na pandemia. E por que só para o RS? Bom, é autoexplicativo - argumenta.

Uma possibilidade seria direcionar boa parte da aplicação a soluções de longo prazo frente à mudança climática.

- Poderia ser um projeto-piloto da União que provavelmente terá de ser utilizado em outras regiões, pelo que estamos observando das mudanças no clima - justifica.

Aod pondera que a extrema necessidade do RS não será só de recursos financeiros, mas materiais e humanos, porque será preciso fazer muita coisa em pouco tempo, o que sempre foi um desafio para o Estado e para o país. Alerta também que a projeção dos custos não pode ser feita com base nos preços da infraestrutura antiga:

- Precisamos de um novo modelo de ocupação do solo e cidades. Tudo indica que irá acontecer novamente, infelizmente.


04 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

"Não há motivo para pânico"

Segundo os supermercados, a falta de alguns produtos ocorre mais pela procura excessiva dos clientes do que por questões de abastecimento. Redes com atuação no Interior garantem os estoques para mais de 10 dias.

É o caso do Grupo Peruzzo, que também inclui o atacarejo Ecomix, com mais de 25 unidades espalhadas por cidades como Santa Maria, Candiota, Dom Pedrito, Caçapava do Sul, Alegrete e São Borja. Lindonor Peruzzo Junior, vice-presidente da rede, informa que a matriz, em Bagé, conta com dois centros de distribuição.

Os hortifrúti, explica, chegam de Cachoerinha e já faltam algumas frutas e ovos, o que deve permanecer ao longo do final de semana. Açúcar, óleo de soja e leite começam a dar mostras de que podem faltar a partir de terça-feira. Ele verifica que a alta procura e a grande quantidade de compras, "em níveis fora do comum", por papel higiênico e água, fazem com que esses itens estejam mais escassos no momento. Mas diz que não há problema relacionado a alimentos como leite e carnes.

- A previsão é regularizar algumas coisas na semana que vem. Pode faltar um ou outro, que pode ser substituído, mas não há motivo para pânico - reforça.

Dificuldade

A UnidaSul, holding que administra as marcas Rissul e o Macromix, informa, por nota, que as mais de 40 lojas localizadas em Porto Alegre e Região Metropolitana, Vale do Sinos, Vale do Paranhana e Serra Gaúcha estão com dificuldades momentâneas no abastecimento, já que os caminhões estão sem acesso a esses municípios. A previsão é de que o abastecimento seja normalizado assim que a situação das estradas permitir.

04 DE MAIO DE 2024
TRAGÉDIA NO RS

INUNDADA

Chuvas que castigam o Estado fizeram o nível do Guaíba ultrapassar a marca de 1941. Água avançou sobre o Centro Histórico e o 4º Distrito

Porto Alegre está ferida no orgulho, na alma e no brilho. O 3 de maio de 2024 entra para a história como o dia em que parte da cidade, incluindo regiões populosas e icônicas, foram engolidas pelo Guaíba, que passou de cartão- postal a ameaça. O sistema de proteção de enchentes foi dobrado pela fúria da natureza, que despeja intensa chuva sobre o Rio Grande do Sul desde a última semana de abril.

O prefeito Sebastião Melo orientou moradores e comerciantes das regiões mais afetadas, como Centro Histórico e 4º Distrito, a deixarem os locais, enquanto hidrólogos sugeriram um plano de evacuação para o caso de o Muro da Mauá não resistir à pressão.

Próximo do meio-dia de sexta- feira, o portão 14 do sistema de contenção de cheias, defronte à antiga ponte do Guaíba, rompeu parcialmente. A estrutura é de grande porte, com largura de cerca de um palmo, e apresenta pigmentos de ferrugem. A comporta é fechada em situações de alta para brecar o fluxo, mas acabou severamente vergada. O Guaíba rugiu por entre os largos vãos. Com bruta correnteza, cruzou por debaixo da Avenida Castelo Branco e, do outro lado, alcançou a Avenida Voluntários da Pátria. Dali, correu para a Zona Norte.

Dilúvio

Inóspita, como se recortada de um filme de cataclismo, era a cena na Avenida Sertório. Do trecho entre a antiga ponte do Guaíba até a Avenida Farrapos, a Sertório, um corredor de veículos, estava completamente alagada. Havia ondas na via e, nos pontos mais críticos, a água batia na cintura.

Do meio do aguaceiro saiu Antônio Xavier, 31 anos, trazendo um cachorro no colo.

Ele reside na região das Ilhas, mas viu a casa ser invadida pela manhã. Junto de três familiares e oito cães, tomou carona de barco com um amigo até a ponte do Guaíba. Dali, seguiu a pé e atravessou o dilúvio da Sertório. Ele tinha outros oito cães, mas não havia como carregar todos. Teve de tomar a dilacerante decisão de deixá-los sobre o telhado da casa.

- Já peguei tudo quanto foi enchente, mas essa foi a maior que vi na vida. Hoje pensei que não sairia vivo - contou Xavier.

No meio da tarde, a água já beliscava a Avenida Farrapos, onde fiscais de trânsito tentavam controlar o caos. Havia congestionamento, infrações, pessoas nervosas e com olhar atônito. A incredulidade era justificável.

Algo parecido havia acontecido lá em 1941, quando o nível do Guaíba, antes da construção do sistema de contenção, alcançou 4m76cm.

Neste 3 de maio, a marcação apontou, às 23h, 4m80cm, com chance de novas subidas. Já é a maior enchente da história de Porto Alegre.

Aeroporto

Ainda na Farrapos, retirantes estavam por toda parte, carregando mochilas e aparelhos de TV.

Na Avenida Castelo Branco, com trânsito próximo de zero, jovens observavam o espetáculo dantesco. Um deles gritava:

- Porto Alegre já era.

A rodoviária foi invadida pela manhã e as operações acabaram reduzidas a 5%. O aeroporto Salgado Filho foi fechado temporariamente à noite. Ficaria por 24 horas sem operação.

No Centro Histórico, o Mercado Público, o Paço Municipal e a Praça Montevidéu estavam cercados. A água, ali, vertia pelos bueiros. O sistema pluvial não deu conta e tudo voltou a superfície, expulsando do subsolo baratas que maculavam as paredes do Mercado Público.

Havia muita gente nas ruas fotografando e filmando a surpreendente tragédia.

Na Praça da Alfândega, onde acontece anualmente a tradicional Feira do Livro, o Guaíba avançou até a metade. O governador Eduardo Leite surgiu por ali no meio da tarde e conversou com populares. Na verdade, fez apelos. Afirmou entender a curiosidade pelo fato histórico, mas pediu que todos se afastassem porque o Muro da Mauá estava sendo testado como nunca antes. Não era seguro ficar ali, alertou. Eventual rompimento poderia levar uma onda perigosa em direção à Alfândega.

Não surtiu o efeito esperado. Minutos depois, uma senhora posou para uma foto sorridente no mesmo ponto, erguendo os dois polegares em sinal de positivo, tendo um ilhado Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) como pano de fundo.

Orla

Os alagamentos tomaram a orla do Guaíba e o Centro de Treinamento do Inter. Na Avenida Diário de Notícias, encobriram os campos da escolinha de futebol do Grêmio e, mais adiante, os clubes náuticos. Na Praia de Ipanema, lambaris chegaram a ser lançados pela água sobre o calçadão. A água redefiniu a Orla, ultrapassou a ciclovia e, em alguns trechos, tomou pátios das residências do bairro de classe média-alta da Zona Sul.

- A natureza está desequilibrada. Tudo está desorientado - refletiu o produtor rural Paulo Maciel, 53 anos. O aposentado Vitor Bassani, 72 anos, tem o hábito de ir diariamente ao Centro. Ele discorda do brado "Porto Alegre já era". Idealiza um ponto de virada.

- Quem sabe isso leve as pessoas a valorizarem mais a cidade, a natureza, os jovens e os idosos. As pessoas se aproximam na calamidade - pregou Bassani.

CARLOS ROLLSING

04 DE MAIO DE 2024
CARTA DA EDITORA

CARTA DA EDITORA Relatos de uma tragédia

Na Carta anterior, eu havia anunciado a estreia, nesta edição, de uma nova Zero Hora para marcar os 60 anos do jornal. Porém, como afirma o editorial da RBS na página 22, o momento não é para celebrações e novidades, e sim de reforçar o nosso compromisso de informar, de estar ao lado da população do Rio Grande do Sul. Usarei este espaço para reproduzir alguns dos relatos dos nossos repórteres e comunicadores que estão acompanhando de perto a tragédia provocada pelas chuvas:

"Mais uma vez, foi preciso sair do estúdio, calçar as galochas e segurar a emoção para informar os gaúchos sobre uma tragédia climática. Agora, ainda pior? e, de novo, só buscar e transmitir notícias não bastou, foi preciso abraçar, consolar, dar forças e incentivar a fé em dias melhores."

"Participar de uma cobertura como esta é estar próxima ao lado mais vulnerável do ser humano. Uma das coisas que mais me marcaram até agora foi o relato de uma mulher de São Vendelino que perdeu um filho e o marido soterrados. A angústia e o sofrimento eram nítidos, ao mesmo tempo que projetava um futuro incerto e a assistência aos outros três filhos."

"Impressionou-me o choro das pessoas. A prefeita de Sinimbu chorou enquanto eu a entrevistava. O mesmo aconteceu com uma agricultora que viu as vaquinhas, todas com nome, serem levadas pela água. As vítimas não sabem como recomeçar a vida, não veem perspectiva. É uma tristeza sem fim."

"Em Candelária, o que mais dói é ver o drama daqueles que não possuem notícias de seus familiares, daqueles que permanecem de plantão no local onde pousa o helicóptero, esperando para que o resgate chegue até seus familiares. Uma cidade sitiada e clamando por ajuda, mas que encontra esperança na força do seu povo."

"Às vezes tenho a sensação de que o tempo parou. Nada que veio antes e nada que ainda virá parecem fazer sentido. Estamos vivendo um minuto após o outro. Tudo muda a todo momento! Nesse momento de tanta dor, só nos resta não perder a esperança de que um dia isso tudo vai passar. E essa tragédia vai ficar para a história."

"O pavor de ter testemunhado uma mulher sendo levada pelo Rio Pardo, a alegria de saber que ela se salvou, poder lhe dar um abraço depois e ver o empenho do trabalho de bombeiros voluntários, da comunidade e de autoridades foram as coisas que mais me marcaram nesta cobertura em Candelária."

Todos os conteúdos produzidos sobre as enchentes estão disponibilizados de forma gratuita em GZH. Reportagens, colunas, vídeos, alertas e a cobertura em tempo real do maior desastre climático da história do RS permanecem abertos a não assinantes.

DIONE KUHN