sábado, 21 de outubro de 2023



21 DE OUTUBRO DE 2023
LEANDRO KARNAL 

João Afonso foi um jurista português entre os séculos 14 e 15. Tornou-se famoso pelo apoio à causa do Mestre de Avis na grande crise de 1383-85, quando parte da nobreza portuguesa queria proclamar o rei de Castela como novo governante de Portugal. Defendeu, com argumentos jurídicos e históricos, as pretensões de D. João de Avis. Ele passou à história como João das Regras.

Dizem que estudou em Bolonha, na Itália. A tradição do Direito Romano, na mais antiga universidade europeia, explicaria seu apoio a um poder monárquico centralizado. O currículo foi atestado pelo cronista Fernão Lopes. No entanto, os registros de alunos da universidade italiana não comprovam a tese.

João serviu à nova dinastia. Para isso, selecionou argumentos e derrubou outros. Se fôssemos mais precisos, ele seria o João das Regras de Avis. Sua devoção não era o debate jurídico isento. Como sabemos hoje, ele fez o papel de defensor de uma causa que necessitava desqualificar todos os pretendentes ao trono português, para que as Cortes reunidas em 1385 indicassem, "livremente", D. João de Avis. Foi um jurista "assessor de imprensa", oferecendo a melhor base para que a decisão fosse favorável ao seu amo.

Isso não é uma crítica ao jurisconsulto. Seria anacronismo puro indicar dubiedade da sua sustentação oral. Havia uma disputa, e ele tomou partido. Sua decisão nem precisaria levar em conta quem o pagava. Poderia ser uma inclinação de foro íntimo a favor de um poder local e contra a perda da independência do reino português. Assim, sua capacidade de interpretação (hermenêutica) teria um parti pris nacionalista. Considerando que os reis da casa de Avis levaram Portugal ao seu fastígio nas grandes navegações, somos inclinados a perdoar a subjetividade de João. 

Sem seu apoio jurídico e argumentativo, talvez o lado castelhano tivesse vencido. Sem D. João I, sem a "geração ínclita", sem os organizadores das caravelas, existiria uma chance de que o Brasil não tivesse sido "inventado" por Portugal. Tudo é um devaneio que possui outro parti pris: que eu também esteja considerando nossa ascendência portuguesa e a língua de Camões um valor que conseguiria relativizar as culpas hermenêuticas de João das Regras. Assim, temos de perdoá- lo ou teriam razão alguns americanos menos letrados e nossa capital seria Buenos Aires...

João das Regras garantiu nossa identidade lusitana? Impossível afirmar. Porém, sem dúvida, ele consagrou uma tradição jurídica que nunca fraquejou no Novo Mundo. Herdamos e expandimos nossa vontade de interpretar leis. Negociamos com o texto, que deve ser esticado ou torcido de acordo com a conveniência. 

Atenção: este cronista não está a afirmar que esta é uma característica de advogados e juízes da nossa querida Terra Papagalli. Nós todos, os nascidos no vasto território brasileiro, somos hermeneutas das regras. Talvez João nunca tenha estudado em Bolonha, mas nós, com certeza, daremos lições aos lentes de Coimbra e das Arcadas de São Francisco em São Paulo. Nascer no Brasil é ser um hermeneuta refinado do duro texto da lei. Lá está escrito que eu não posso? 

Ah, mas em tais e tais condições fica implícito que eu posso desde que... Quem tem filhos ou dá aula sabe - tem de argumentar juridicamente sobre toda norma. E o trânsito? Cada um adapta o código ao seu momento: "Vou estacionar aqui na vaga de idoso, mesmo não sendo permitido, mas é só um pouquinho. Estou com pressa". João das Regras ficaria encantado com o que fizemos da sua ideia. Nunca um pai gerou tantos filhos produtivos e fiéis à cepa.

O ladrão rouba e ainda defende o crime, alegando que a casa assaltada tem coisas "em excesso". É hermenêutica da propriedade privada. O aluno chega tarde à escola no dia de chuva e não quer levar falta, pois havia muito trânsito. É hermenêutica meteorológica. O namorado trai, alegando que seu par o traiu antes. É a hermenêutica do precedente. O guarda multa alguém estacionado sobre a faixa de pedestres? Diz: "Mas só ocupei uma parte pequena". É a hermenêutica da relatividade quântica do espaço.

Ah, João, que legado você nos trouxe! O subjetivo emerge soberano sobre a norma e esfarela tudo. "Tudo o que é escrito desmancha no ar" é como adaptamos o axioma marxista.

E, se num dia, por acidente cósmico, deixássemos de interpretar e passássemos a cumprir as regras? João ficaria inquieto no seu túmulo? Teríamos outra civilização? Ou, mais azedo ainda, teríamos civilização? E se o pintor que prometeu começar a obra na segunda-feira, às 8h da manhã, chegasse às 7h50min com todo o material e disposição? 

E se o engenheiro da reforma anunciasse que o prazo seria cumprido? E se o médico atendesse à hora exata? E se o aviso de "última chamada" no aeroporto fosse, de verdade, o derradeiro? Creio que nunca teria existido a Revolução de Avis, o Brasil não seria ocupado por Portugal e figuraríamos, no máximo, como uma tênue esperança na mente de Deus. Eu sei... Desejar que uma reforma termine no prazo excede a liberdade criativa do sonho ficcional. Tudo tem limites, até a hermenêutica.

LEANDRO KARNAL

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