sábado, 21 de outubro de 2023


21 DE OUTUBRO DE 2023
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA 

VOCÊ É CONSIDERADO UM DOS PIONEIROS DA INTERNET NO BRASIL. CONTE MAIS SOBRE SUA HISTÓRIA DE EMPREENDEDOR DIGITAL.

Eu comecei a trabalhar com 18 anos e, aos 19, ingressei em Engenharia Elétrica na UFRGS em 1979. Fiz estágio já na área de comunicação de dados, na empresa Edisa. Tivemos, no Brasil, um período relativamente longo em que o mercado era reservado para companhias brasileiras que fabricavam computadores, e a Edisa era uma delas. Fiquei nessa empresa até 1984. Nessa época, fui convidado para um projeto superinteressante que era fazer um software para uma aeronave que estava sendo construída pela Embraer. Um caça AMX, subsônico de apoio tático. Um aeroeletrônico feito por uma empresa gaúcha - hoje o controle é israelense. É quase um milagre ter funcionado. Éramos um bando de garotos nerds tocando um projeto matemático. Quando terminou isso, a gente começou a Nutec. O Sérgio Preto, que ainda estava na Edisa e é quatro ou cinco anos mais velho que eu, estava junto nessa. Já vínhamos fazendo um projeto de correio eletrônico baseado em Unix. Oito anos antes da internet.

DE ONDE VINHA O DINHEIRO PARA FAZER ISSO?

Sou filho de um piloto da FAB e de um jornalista. O grande bem que eu tinha era uma moto, paga em prestações. Consegui economizar com meu trabalho e juntei uma poupança de US$ 50 mil. Foi com isso que começou a Nutec. E o negócio cresceu, em 1989 já tínhamos cem desenvolvedores, todos com capital próprio. Não existia capital de risco. Em 1990, conseguimos lançar um software nosso para um terminal gráfico. Montamos o Projeto Image, em Gravataí, e isso nos levou para os Estados Unidos. Aí a gente abriu para investimentos. A CRP (Companhia Rio-grandense de Participações), que era de private equity (investidores privados), tinha algumas famílias gaúchas que investiram US$ 300 mil.

COMO FOI BUSCAR ESSES INVESTIMENTOS?

Teve um sujeito muito importante, que não é adequadamente reconhecido, mas que foi muito relevante: Newton Braga Rosa, professor de Engenharia Elétrica na UFRGS. Foi ele quem nos aproximou da CRP e nos ensinou a fazer um plano de negócio. A CRP gostou muito e fez esse investimento. Eu lembro que US$ 300 mil era 10% do projeto, o total eram US$ 3 milhões. Eu fui morar em Mountain View, abri a Nutec já nos EUA. O Projeto Image, porém, não deu muito certo. Era muito ambicioso. Quando a HP comprou a Edisa, tinha um pouco do preconceito, "not made here", e descontinuaram o hardware. Épocas heroicas...

VOCÊ CHEGOU A SER CHAMADO DE BILL GATES BRASILEIRO. O QUE ACHA DESSA ALCUNHA?

Claro que não. Primeiro que a diferença na conta bancária não deixa nenhuma dúvida... Nessa época inicial da internet teve um frisson, a gente virou meio estrela do momento, saí em capa de revista, dava entrevista. A Business Week me colocou a alcunha. Foi quando o Terra abriu capital em Nasdaq. Isso foi em 29 de novembro de 1999, lembro bem. Foi um espanto o que aconteceu. A gente lançou a ação a US$ 13, e ela subiu que nem um foguete. No final de março, valia US$ 135. Para nós, que éramos uns durangos do Rio Grande do Sul, era um espanto.

ERA MAIS COMPLICADO SER UM EMPREENDEDOR DE MÍDIA E DE INTERNET SAINDO DE PORTO ALEGRE, QUE FICA DISTANTE DO CENTRO FINANCEIRO DO PAÍS?

Meu pai nasceu em Barretos (SP), foi servir na base aérea de Canoas, conheceu a minha mãe, que é uma gaúcha. Eu sou uma mistura de paulistas com gaúchos. Quando tinha dois anos, meu pai foi fazer engenharia no ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica). Nasci em Canoas, mas saí do RS com dois anos. Voltei com sete, saí de novo com 12. Quando fui para os EUA, aos 31 anos, em 1991, nunca mais voltei para o Estado. Então, eu me sinto meio vira-lata, um produto do mundo. 

Mas o RS é muito importante do ponto de vista tecnológico. A invenção do setor agroindustrial brasileiro é gaúcha. Acho que há uma certa timidez gaúcha que não deveria existir. Uma das implicâncias que tenho com meus amigos é que a última coisa que um gaúcho quer ser é balaqueiro. Então, o gaúcho é um falso tímido. Ele se acha, mas tem medo que os outros saibam que ele se acha. Aí fica nessa... Somos um povo trabalhador, com uma variada cultura, um Estado que tem o potencial de contribuir muito. E contribui, mas pode ainda mais.

DE ONDE VOCÊ ACHA QUE VEM ESSA FALSA TIMIDEZ?

Uma vez, dei uma palestra em Porto Alegre tentando explicar a internet, quando era um negócio muito novo e ninguém estava muito preocupado. Mas as pessoas queriam ouvir. Aí teve um senhor, conhecido no Estado, que veio apertar minha mão e falou: "Tchê, não sei se tu entende desse negócio de internet, mas vou te dizer uma coisa, tu é muito inteligente". E esse é o máximo cumprimento que você vai ter... É uma coisa travada. O gaúcho me parece travado. Não sei a origem disso.

A NUTEC VIROU O ZAZ, DEPOIS, O TERRA. COMO FOI ESSE SEU PIONEIRISMO?

O software de correio eletrônico original da Nutec era pioneiro, uma plataforma de correio eletrônico quando não existia internet. Eram conexões ponto a ponto, e as roteávamos assim. Então, em comunicação de dados, éramos muito bons. Eu participava do Softex, que era um programa do governo federal de exportação de software. Como éramos uma das companhias pioneiras, eu participava de comitês e reuniões. O Tadal Takahashi, que é o grande nome pioneiro da internet brasileira, era da Unicamp. Foi ele que botou a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa) de pé. Foi o primeiro núcleo de internet brasileira, só de instituições acadêmicas. 

No mundo, a internet começou como uma pesquisa de comunicação de dados, contratada pela ARPA ("Advanced Research Projects Agency Network", em inglês) por meio de um protocolo desenvolvido pelo MIT, o TCPIP. O Tadal colocou os primeiros servidores TCP/IP no Brasil, foi ele que montou e se conectou com as universidades americanas. Esse é o início da internet brasileira. Aí as coisas foram acontecendo.

O QUE É A MAGNOPUS, ESTÚDIO DE REALIDADE VIRTUAL DO QUAL VOCÊ É COFUNDADOR E CHAIRMAN?

Conheci essa turma em 2011, eles haviam ganhado um Oscar com A Invenção de Hugo Cabret. Ben Grossmann, Alex Henning. Me apaixonei por uma tese de investimentos e os convidei para trabalharmos juntos. Primeiro tentei comprar a companhia deles, mas acabamos fundando a Magnopus. São tecnologistas criativos, Hollywood é um celeiro desses caras há muitas décadas, pelos orçamentos altíssimos que permitem investimentos em computação gráfica. 

O capital da Magnopus é 95% brasileiro. Essencialmente eu e meus amigos. A Magnopus está reinventando a computação imersiva. No futuro, você não vai ter uma tela na sua frente, como hoje. Um dia você via botar uns óculos e vai ser uma mistura entre físico e digital. Em um paper que escrevi em 2000, que pode ser exagerado, disse que o córtex visual não sabe se é real ou digitalmente gerado. 

Um dia, você vai ancorar uma tela de cem polegadas onde quiser. Essa ampliação cognitiva que existe hoje, por causa da computação espacial e da inteligência artificial, vai mudar os humanos. Não vão ser os mesmos: vamos ter superpoderes. O que a Magnopus faz são projetos para grandes companhias de tecnologia. Os clientes são Disney, Sony, Meta. A gente simplesmente reinventou, junto com a Disney, o jeito que se faz animação. O Rei Leão, de 2019, foi feito 100% com material nosso.

COMO FOI ESSE TRABALHO?

A gente fotografou 50 hectares no Serengeti (parque nacional da Tanzânia). E aí reproduzimos esse ambiente em estúdio, era como se os animais andassem em volta. Mas o projeto d?O Rei Leão é 50% da Disney. São projetos muito grandes e muito técnicos, precisa muita coisa para pôr em prática. Acabamos de terminar um projeto da Amazon em Nova York que é o maior light panel do mundo. Então, a Magnopus é um grande experimento de algoritmos e tecnologia. E aí você pergunta: você não tem medo de risco? A poupança da família Lacerda já foi, uma boa parte dela. É tudo tão interessante que a atração que tenho por isso supera o risco.

EM MEADOS DA DÉCADA DE 2010, O MOVIMENTO DAS CHAMADAS BIG TECHS AGLUTINOU O MERCADO EM PLAYERS MENORES, CONCENTRANDO GRANDES FATIAS DE INVESTIMENTO EM GOOGLE E FACEBOOK. QUAL SUA VISÃO SOBRE ESSE MOVIMENTO DE MERCADO?

Podemos refletir a partir de vários ângulos. Um deles é mais ideológico: tenta-se bloquear a aquisição de pequenas empresas pelas grandes. E, supostamente, essas aquisições, pelo poder que as big techs têm, reduziriam a inovação e a diversidade. Mas eu penso um pouco o contrário. Em muitos dos projetos que essas empresas apostam há um nível enorme de incerteza: você não sabe se o algoritmo vai parar de pé, se as coisas vão funcionar. O software não era uma possibilidade narrativa há 20 anos, e agora é. Mas o dinheiro investdo nele era meio fundo perdido. Se você pegar o início do Vale do Silício, ele foi inventado pelo Departamento de Defesa americano, foi dinheiro a fundo perdido para experimentar coisas.

HÁ MAIS ESPAÇO PARA INOVAÇÃO NOS EUA DO QUE NO BRASIL?

Acho que há absurdamente mais espaço nos EUA do que no Brasil.

POR QUÊ?

Do ponto de vista da tecnologia, acredito que há três fatores que explicam isso. O primeiro é que os EUA têm um Ensino Fundamental que realmente traz as crianças para a matemática. Esses dias vi uns números, não sei bem a fonte, que indicavam que, entre os estudantes do Ensino Médio no Brasil, 5% ou 6% queriam ir para as exatas, computação, engenharia. Nos EUA é algo entre 26% e 29%.

POR QUE ISSO ACONTECE?

O ensino brasileiro é de repetição e regramento. É sintático, e não semântico. Não vai no significado das coisas. E, para você pegar uma criança e despertar um interesse genuíno, uma curiosidade, você tem que mostrar como charada. Mostrar o mistério, como é o universo. Quem faz bem isso é a Coreia do Sul. E Cingapura. A curiosidade é um diferencial humano, as crianças são curiosas, querem desvendar as coisas. E a matemática é uma linguagem da natureza, de mistério, charada, jogo, não é uma coisa entediante. Mas a tornamos entediante. Esse é o segundo aspecto que eu gostaria de ressaltar: a sedução da curiosidade. A gente deveria ter universidades que realmente estimulem a descoberta, e não que ensinam a fazer rapidinho para se livrar do problema e conseguir um emprego. O mundo acadêmico americano ele é infinitamente mais rico do que o brasileiro. Tem um compromisso com tornar o aprendizado interessante. O terceiro fator: capital, no Brasil, é muito caro. Tivemos recentemente uma pequena bonança, mas logo voltamos ao normal. Capital de risco é para ser perdido. Você vai errar. Em Palo Alto, na Califórinia, existe o Friday Failure Celebration. Um festival que celebra as falhas. Fica todo mundo tomando cerveja, fim de tarde, sexta-feira, e os empreendedores fracassados contando suas histórias. Uma sociedade precisa ter um excedente de capital para aguentar as falhas. É o que as big techs fazem com as Magnopus da vida. Às vezes dá muito certo, mas nem sempre. Então, você precisa ter capital abundante. Acho que a salvação está aí. O empreendedorismo talvez salve o Brasil. Hoje as pessoas não pensam mais em Petrobras ou Banco do Brasil. Claro, muitas pensam, mas há muitos jovens talentos em tecnologia decidindo fazer seus próprios negócios.

HOJE, PORTO ALEGRE QUER SE COLOCAR COMO REFERÊNCIA NA INOVAÇÃO, AO MESMO TEMPO EM QUE PERDE POPULAÇÃO E TEM UMA DEMOGRAFIA DE PESSOAS MAIS VELHAS. O QUE A CIDADE DEVE FAZER PARA SER UMA REFERÊNCIA NESSA ÁREA?

Difícil, hein. Eu tenho para mim que a cultura gaúcha... Vai baixar um gauchismo aqui, mas vá lá. A gente se acha porque o RS tem bom nível cultural. O Estado é um exportador de talentos para o Brasil. Ao mesmo tempo, tenho amigos, da minha geração, brilhantes, mas que nunca conseguiram sair do RS. E há um apego, um bairrismo, as raízes que trazem as pessoas de volta. Então há uma equação toda... Mas há potencial. 

O South Summit é algo sensacional, o (José Renato) Hopf fez uma coisa quase milagrosa. Pelo nível acadêmico que a gente tem nas escolas, a gente conseguiria ser o grande núcleo de desenvolvimento de tecnologia do Brasil, sim. E, quem sabe, começar um novo ciclo brasileiro nessa área. O Brasil, se tiver um mínimo de gestores competentes, está fadado a ser rico. Tem mais luz e água do que os outros países, tem terra fértil. Inclusive a gauchada que subiu criou uma agroindústria que é uma das maiores do mundo. 

Não sei se isso envolveria programas de governo, não sei se essa galera que se reuniu para apoiar o South Summit poderia colocar capital para transformar o potencial numa realidade. Não sei ao certo. A cultura brasileira, de modo geral, não é uma cultura generosa. As famílias vão ficando ricas e guardam a riqueza para si. Desculpa a franqueza, mas é isso aí. É claro, que você pega o que um Jorge Paulo (Lemann) faz, na Fundação Estudar, e vê que tem caras que são filantropos exemplares. Mas acho, e aqui vai um pouco de crítica, que a gente tem de promover filantropia de verdade. E acho que o Rio Grande do Sul é o lugar em que, com filantropia, poderia fazer maravilhas. O insumo humano é riquíssimo.

COMO VOCÊ VÊ A EXPLOSÃO DAS INICIATIVAS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) NO MERCADO?

Eu acho que a IA com conteúdo imersivo vai mudar a humanidade. Acho que esse é o segundo fenômeno humano fundamental. O primeiro, há 80 mil anos, foi a invenção da linguagem. A gente não se deu conta ainda do que está vindo, porque imagina você ter uma visão de raio X, enxergar um espectro eletromagnético ampliado, ver ultravioleta, infravermelho. 

Transportar-se para outro lugar. Imagina você ter uma capacidade intelectual ampliada cem vezes, mil vezes. Você ter acesso imediato a todas as suas memórias. O milagre d?O Rei Leão, que ninguém sabe, é que ele foi filmado em Point Cloud. Isso significa que, na pós-produção, você pode reeditar o filme de qualquer ângulo. É uma plataforma inteira de software que a gente desenvolveu em 2016-2018. A gente não entendeu ainda o que a IA vai nos trazer. Nós vamos ser super-humanos. 

Vamos ter superpoderes. A primeira geração dos Rockfellers, que explorou petróleo, lá na segunda metade dos 1800, levava uma semana para escrever dois memorandos e fazer três ligações telefônicas. A gente faz isso em 15 minutos. O que produzimos em um ano seria uma vida desse povo. O fenômeno da IA é um fenômeno da capacidade de concentração na resolução alta. Na resolução longa, os humanos são bons; na curta, somos criaturas incrivelmente distraíveis. Quando começarmos com a nova evolução de biologia eletrônica, a gente começará a ter conhecimento íntimo, e aí o estudo das ciências cognitivas vai cair no espaço de ciência pura, essencial.

O QUE VOCÊ DIRIA PARA QUEM ESTÁ COMEÇANDO A INVESTIR EM NEGÓCIOS DIGITAIS?

O horizonte de oportunidades mal começou. O espaço vai ser absurdo, a humanidade vai se reinventar através desses criadores, desses empreendedores, que vão usar a tecnologia de forma absolutamente impensada. Toda vez em que há um novo salto tecnológico, tentamos adaptar as funções anteriores para as novas possibilidades. Na verdade, quando a gente começou em 1996, quando começou a internet no Brasil, eu jamais imaginaria um fenômeno como o das redes sociais. E eu era pago para inventar esse tipo de coisa. Hoje não existem mais pequenos empreendedores. Tem computadores baratos que têm uma potência absurda, e você tem acesso a informação e algoritmos de código aberto... Ou seja, as oportunidades são ilimitadas. 

E assim seguirá nos próximos 10 ou 15 anos. E aí, voltando para os tecnologistas criativos, acho que, apesar daqueles três fatores que eu mencionei que são um problema para o Brasil, a garotada vai conseguir desenvolver conhecimento em matemática, em física, em computação. Porque somos um povo criativo. A gente pensa coisas, cria muito, até por ter um ambiente instável. Alguns dos melhores gestores que eu conheci na vida são brasileiros, porque são treinados numa escola de vida dura. Este é o momento das grandes oportunidades da área de tecnologia. Nunca vi nada parecido com tantas frentes, tantas possibilidades, especialmente nessa nova revolução cognitiva.

Quando a moeda era o cruzado novo, José Sarney, o presidente e o fax, o que havia de mais novo em tecnologia, Marcelo Lacerda já estava operando sistemas com correio eletrônico entre computadores. Esse é um dos passos da trajetória desse pioneiro da internet brasileira que, aos 63 anos, agora é executivo da Magnopus. A empresa de computação imersiva tem clientes como a Disney, parceira na criação do ambiente digital no qual foi feito o filme O Rei Leão em live-action. Gaúcho de Canoas, Lacerda relembra a ZH a sua história e dá dicas para quem quer empreender nos ambientes digitais. Para ele, o cenário competitivo tomado pelas big techs não assusta: é um momento para apostar em inovação e acreditar nas novas possibilidades da inteligência artificial, que podem nos tornar "super-humanos".

LUÍS FELIPE DOS SANTOS

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