quarta-feira, 21 de junho de 2017


21 de junho de 2017 | N° 18877 
PEDRO GONZAGA

A PLACA


Há certas pessoas, certos lugares, que encerram suas atividades sem anunciar o fim do contrato. É como se seguissem visitáveis, rebeldes às determinações do destino. Assim os funerais que nos põem inertes (só choraremos dias ou anos depois), as últimas mensagens trocadas feito um até logo, as portas fechadas do negócio onde passamos gloriosas horas baldias, portas que por meses nos parecerão excepcionalmente baixadas, como num longo recesso festivo.

Então um dia a vemos (havia muito ela estava ali), a placa de aluga-se.

É uma ação de despejo. O mundo nos pertence um pouco menos a partir de agora. Muitos veem nisso um sinal de velhice, mas quero discordar. Parece-me mais uma prova da precariedade de nossos esforços de permanência. Se há algo de velho, é que os velhos assistem a esse fenômeno repetidas vezes, até que não vejam mais o mundo, senão a si mesmos como as próximas vítimas da falência, um padrão gerado a partir da finitude individual e não a partir de um mundo que nos é de todo indiferente.

E é esta indiferença do mundo o que nos aflige, tanto mais quando nos golpeia tardiamente, tal no meio da tarde junina quando enfim fui capaz de notar, pela primeira vez, o cartaz de aluga-se na livraria que por anos foi minha segunda casa, a ponto de mandar meu correio aos cuidados do Carlão, um dos donos da Palavraria. 

Era o melhor escritório que alguém poderia querer, o cheiro amadeirado dos livros, espressos sempre à mão, os debates inúteis com os amigos, a generosidade das conversas com o Heron, os vivas ao doutor Jaime, as deliciosas polêmicas com a Carlinha. Ali ministrei minhas oficinas de escrita, ali escrevi alguns trechos de meus livros, ali, agora, o selo na porta fechada indica que será inútil bater, como tantas vezes fiz para me deixarem entrar antes do expediente.

Plantado em meio à Vasco da Gama, leio as tolas pichações que recobrem a casa, pregando a revolução por meio dos orifícios do corpo, assunto já velho nas inscrições da velha Roma. Depois sigo meu caminho.

Falei que não era sobre velhice, mas era. Nego a imagem que me fica das paredes, e penso num passado íntimo como o que se vê em certas construções de Pompeia, com aquilo que as cinzas tiveram a dignidade de preservar.

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