sábado, 17 de junho de 2017



17 de junho de 2017 | N° 18874 
DAVID COIMBRA

O dia da mudança

Os cientistas da universidade de Medford, que fica aqui perto de onde moro, enviaram um verme ao espaço e ele voltou de lá com duas cabeças.

Achei importante, embora não saiba por quê.

Vou ficar com essa informação gravada: o Platelminto, que é o nome do verme esse, desenvolveu uma segunda cabeça quando esteve passeando no espaço, fenômeno constatado pelos cientistas em junho de 2017. Algum dia isso será lembrado por algum motivo.

Afinal, quantos fatos decisivos ocorrem e não são registrados? Por exemplo: houve um dia de 1908 em que o diretor da Academia de Belas-Artes de Viena disse para um jovem candidato a aluno que ele não tinha aptidão para a pintura. O rapaz se chamava Adolf, ele mesmo, Hitler, e deve ter saído do encontro frustrado, querendo matar um.

Vi aquarelas que ele pintou. Francamente, não achei ruins e, embora seja provável que conheça menos de pintura do que um diretor da Academia de Belas-Artes de Viena, penso que a rejeição de Hitler foi um erro. Menos para a arte, mais para a humanidade. Antes um pintor medíocre do que um ditador sanguinário bem-sucedido.

E aquela data se perdeu na História... Que dia terá sido?

Agora pense que, milênios atrás, em algum lugar do Iraque, uma jovem suméria foi fazer o jantar da família e, ao abrir o pote de cerâmica em que havia guardado os cereais, deparou com uma surpresa desagradável. Ela devia ter deixado o pote destapado, dias antes, e a água da chuva entrou, inutilizando as provisões.

A família da moça provavelmente era pobre, não tinha mais o que comer, porque, em vez de jogar fora os cereais molhados, ela resolveu experimentar a sopa que havia se formado. Provou o resultado da alquimia e... surpresa! Adorou! O cereal fermentado havia se transformado em uma bebida deliciosa. Mais tarde, ela serviu para o marido, e ele gostou e também os amigos dele e toda a aldeia. E mais: depois da ingestão da beberagem, todos ficaram alegres, disseram que se consideravam pra caramba e terminaram a noite cantando Trem das Onze. Logo a Suméria inteira consumia aquele líquido precioso. Alguém deve ter dito:

– Essa é uma bebida dos deuses!

E como a deusa mais popular do país era Ceres, o sumério passou a chamar a bebida de “ceresia”. Ou: cerveja!

Mais do que todas as obras do Homo sapiens, eu gostaria de saber exatamente quando aquela suméria descobriu a cerveja. Mas não sei.

O dia da mudança. O dia em que tudo ficou diferente. Isso acontece também na nossa vida. Já contei sobre aquela moça que era magra e tornou-se gorda diante dos meus olhos. Porque funciona assim: você, assustada leitora, é magra e vai engordando. Todo mundo diz que você é magra. Magra, magra, magra. Mas chega um dia em que todo mundo diz que você é gorda. Quando você trocou de condição? Esse momento é um marco.

Pois com aquela moça foi assim. Ela era magra, embora forte. Mas, em 26 de janeiro de 1994, às 16h , ela se dirigiu ao bar da Redação e pediu um quindim. Deu uma mordida naquele quindim. Então, bem na minha frente, ela virou uma gorda. Eu vi. Por Deus. No instante em que aquela pequena cota de lipídios se incorporou ao seu ser, blop!, ela se transformou. E, não, não vai aí nenhuma crítica ou chacota, não me acuse de inimigo da gordura. Até não duvido que ela, mais possante, tenha se tornado também mais feliz. Parabéns, portanto, à neogorda dos anos 1990. Torne-se você também uma, e viva alegre em meio aos mil-folhas e aos brigadeiros da existência.

Tento estabelecer as datas marcantes da minha vida.

Não faz muito, tive de me submeter a uma operação dolorosa, e sabia que seria dolorosa. E lá estava eu, deitado na maca, a caminho da sala de cirurgia, quando uma enfermeira se aproximou, perguntando:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Trata-se de um procedimento comum entre os americanos. Eles conferem e reconferem a fim de evitar erros e futuros processos judiciais. Respondi que sabia e descrevi a operação. Minutos depois, veio mais um:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Falei de novo.

Passados mais alguns minutos, chegou outra enfermeira:

– Você sabe o que o doutor vai fazer em você?

Da maca, tasquei:

– Sei: troca de sexo.

Por um segundo, ela e os auxiliares que a cercavam ficaram perplexos, mas depois todos caíram na gargalhada. Ri também e congratulei a mim mesmo: era um alívio saber que, mesmo numa situação complicada, continuava achando graça da vida.

É uma convicção que tenho. O dia em que acordar de manhã, abrir a janela, olhar o sol ou a chuva lá fora e não achar graça no que vejo, esse será um dia de mudança. Será o dia em que direi para mim mesmo: hoje, envelheci.

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