sábado, 5 de dezembro de 2015



05 de dezembro de 2015 | N° 18376
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Tu: o fim da novela

O TU DEIXOU de ser um legítimo pronome da segunda pessoa para virar mera fórmula de tratamento

Quando mencionei, na coluna anterior, que o tu havia sido derrotado pelo você e começava a entrar definitivamente em extinção, percebi, pelas mensagens que me enviaram, que eu não tinha sido claro num ponto assaz importante: é evidente que a maior parte dos gaúchos vai continuar a chamar seu interlocutor de tu – uma tradição que nos é tão cara quanto o chimarrão e o churrasco – mas (e é aí que bate o ponto!) friso que este é um tu “vazio”, que deixou de ser um legítimo pronome da segunda pessoa gramatical para se transformar numa mera fórmula de tratamento, jogando agora no time do você, do senhor, do Vossa Senhoria e de todos os outros.

A prova disso é a troca progressiva da concordância do verbo, que passa a ser a da terceira pessoa, em vez da segunda, como se deveria esperar. Os dados que a linguista Valeria Monaretto, minha colega de doutorado, teve a gentileza de me enviar são eloquentes: no nosso estado, 80% preferem o tu ao você; desses, no entanto, menos de 7% fazem o verbo concordar com o tu (tu vais, tu viste, tu sabes), pois a gauchada geralmente prefere deixar o verbo na terceira (tu vai, tu viu, tu sabe), revelando que este tu, no fundo, não passa de um você pilchado.

Sei que esses processos internos do idioma, uma vez desencadeados, são irreversíveis, mas não posso deixar de lamentar o que está acontecendo, pois o Português do Brasil vai perder, assim, uma de suas riquezas expressivas: o emprego do tu verdadeiro, com a terminação verbal correspondente, permite a retirada do sujeito pronominal sem afetar a clareza da frase. 

Na pena de um Drummond, isso é ouro puro: “Dás volta à chave,/envolves-te na capa,/e qual novo Ariel, sem mais resposta,/sais pela janela, dissolves-te no ar”. Se, no entanto, usarmos a terceira pessoa verbal, o tu vai ter de ser incluído junto ao verbo, sob pena de produzir um texto incompreensível - e o resultado é mais feio que o cachorro do capeta: “Tu dá volta à chave,/tu te envolve na capa,/e qual novo Ariel, sem mais resposta,/tu sai pela janela, tu te dissolve no ar”...

O fato da maioria falar assim não justifica, a meu ver, que essa prática empobrecedora seja admitida na escrita, que é, por sua própria função de registrar e conservar, o jardim onde devem conviver todos os recursos que a língua criou ao longo dos séculos. Vários leitores, para justificar sua preferência pelo tu foi, tu é, tu vendeu, etc. alegaram que assim evitavam o risco de parecer pernósticos ou arrogantes. Curiosos tempos são esses, eu diria, em que as pessoas têm medo de parecer pernósticas mas não parecem se importar em parecer ignorantes...

Aproveito para participar aos amigos leitores que no próximo dia 17, quinta-feira, às 18h, ocorrerá a sessão de posse deste que vos fala na Academia Rio-Grandense de Letras. De lá seguirei a luta...

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