sábado, 10 de maio de 2008



10 de maio de 2008 | N° 15597
Nilson Souza


Vidas no sótão

O ciclone que causou estragos no Estado me prestou um grande favor no último sábado: sem computador nem televisão, por falta de energia elétrica, aproveitei o dia para organizar parte de minha biblioteca, que fica no sótão da casa.

O sótão é o porão de cima, aquele lugar pouco freqüentado dos sobrados onde a gente costuma depositar coisas supérfluas.

O meu, porém, é habitado por fantasmas vivos e mortos - os personagens imaginados por García Márquez, Vargas Llosa, Isabel Allende, Erico Verissimo, Jorge Amado, Herman Hesse, Somerset Maugham, Anatole France e vários outros inquilinos de múltiplas nacionalidades.

Sentei num banquinho de madeira, daqueles de tomar mate em galpão, e passei horas pincelando a poeira das páginas, parando de vez em quando para reler um ou outro trecho antes de devolver o volume à estante. Meus livros contam muitas vidas, inclusive a minha.

Ainda tenho o Coração, de Edmundo de Amicis, que ganhei aos 11 anos graças à generosidade dos meus colegas de quinta série, que me escolheram o Melhor Companheiro da turma, numa antiga promoção do Rotary Clube.

Guardo com carinho um Clarissa, de Erico, comprado em sebo para confirmar a leitura que fiz na biblioteca da Base Aérea, onde prestei serviço militar.

Na mesma época conheci Sidarta e Demian, de Hesse, encantos da Juventude. Já na faculdade li As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, e, coisa obrigatória daqueles anos 70, As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Ainda não fecharam.

Cada livro me lembra uma fase da minha vida, da minha carreira. Realinhei obras didáticas do Curso de Contabilidade, todos os manuais da minha atual profissão até chegar no imperdível Elementos do Jornalismo, de Bill Kovack e Tom Rosenstiel, e folheei com saudades meus compêndios de Educação Física, passando pelo fichário das aulas de recreação que preparei para o meu estágio numa escolinha de periferia.

Depois vieram as paixões adultas - Casa dos Espíritos e demais Allendes, Cem Anos de Solidão e outros Márquez, Memorial do Convento e todos os Saramagos que consegui reunir.

Todos eles receberam um lustro de carinho e voltaram para seus lugares no porão de cima do meu sobrado azul. Já escurecia quando devolvi o sótão aos seus verdadeiros donos - os amoráveis fantasmas da literatura e alguns construídos à imagem e semelhança de minhas vidas passadas.

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