sábado, 6 de julho de 2024


COM A PALAVRA
Com a Palavra - Véra Lucia Maciel Barroso

Coordenadora do Arquivo Histórico da Santa Casa desde 1986, é historiadora, socióloga e pesquisadora sobre memória e patrimônio

"Quando se escolhe o local de um museu, é preciso olhar a topografia"

Referência em pesquisas sobre a história do RS, Véra Lucia Maciel Barroso entende que a tragédia climática de maio, que afetou acervos importantes do Estado, provou que é necessário mais investimento na preservação de patrimônios

Sofia Lungui

Qual o impacto dessa tragédia, quando pensamos em patrimônio?

Nós não somos alguém neste mundo se não reconhecermos aqueles que nos fizeram ser o que somos. Então, quer o patrimônio edificado, manifesto através de prédios, ou através de papéis ou outros suportes de memória, podemos, através deles, fazer uma leitura e uma compreensão de como foi esse passado. A memória coletiva tem muito valor. Um bom administrador, que projeta um futuro correto, sadio, e inclusive os cidadãos, precisam conhecer a trajetória do seu município, com os seus erros e acertos. E onde acessamos essas informações? Nos acervos. Por isso que a rubrica da cultura tem que aumentar, e muito.

Que mudanças precisam ser pensadas nas práticas de preservação?

Os patrimônios são bens, são legados de antepassados. É um testemunho do tempo, das pessoas que viveram antes de nós. E como tal, são bens que temos que cuidar, temos que preservar. Nessa direção, os bens edificados, os prédios, que testemunham o tempo, os bens de arquivos e de museus, precisam ser conservados em lugares que não sejam baixos, principalmente para nós que moramos e estamos à beira d?água. Exatamente os locais que ficavam em áreas baixas foram atacados pela água. Quando se vai escolher um local para colocar uma biblioteca, um museu, um arquivo, é preciso olhar a topografia do terreno do município e colocar em áreas mais altas. Não tem outra forma de preservar e impedir que os acervos sejam perdidos.

Como fica o patrimônio em um contexto em que muitos lares foram devastados?

Com a enchente, o primeiro patrimônio que se perde é o humano. Muitas pessoas ficaram à beira da pobreza. Um segundo problema patrimonial diz respeito aos documentos pessoais. Esses documentos são testemunhas de quem as pessoas são. Todas as fotografias, os objetos guardados da infância, os pertences, tudo é testemunho. E tudo se perdeu, o patrimônio pessoal, familiar. Isso faz com que as pessoas e instituições atingidas percam a sua identidade. Assim como o que aconteceu com o Centro Histórico de Porto Alegre, nossos museus, nossos memoriais. ? Qual a diferença entre patrimônio material, imaterial e social? E qual a relação com a memória?

O patrimônio material engloba os prédios, as edificações, ou até uma fonte, uma bica, por exemplo. Tem o acervo museológico, que são os objetos, que podem ser em qualquer suporte material, como madeira, metal ou vidro. O patrimônio arquivístico diz respeito aos documentos em seus diferentes formatos, como papel, fotografia, VHS, fita cassete e digital. Já o patrimônio social é produzido coletivamente. Diz respeito à coletividade, a instituições formadas por uma mesma comunidade, por exemplo. Tem também o patrimônio imaterial, que não é palpável. Festas e celebrações, costumes, tradições, o modo de vestir, as canções de roda, brincadeiras infantis, são patrimônios imateriais.

O que é o projeto Raízes e quais foram os resultados desse trabalho?

Criamos esse projeto para estudar a história e origem dos municípios que surgiram a partir de Santo Antônio da Patrulha. O primeiro encontro aconteceu em 1990. Nós chamamos os professores municipais e a comunidade para o clube recreativo Cidade Alta, e convidamos um historiador de cada município filho de Santo Antônio para trocar conhecimentos. O segundo encontro foi em São Francisco de Paula, no ano seguinte, e foi aí que surgiu o nome Raízes. A partir disso, começamos a realizar encontros todos os anos, e essa iniciativa já rendeu 34 livros, um para cada uma das cidades.

? Também veio à tona com a tragédia a riqueza das nossas bacias hidrográficas. Qual a importância desses rios e lagos para nossa história e por que precisamos aprender sobre isso?

As pessoas não se deram conta da riqueza hidrográfica que nós temos. Nós somos abraçados por vários rios. Fora a grande Amazônia, o Rio Grande do Sul tem uma das maiores bacias do país. Quem deu nome a esses rios foram os indígenas. Nós temos o Rio Itapuí, conhecido hoje como Rio dos Sinos, tem o Rio Gravataí, chamado assim por causa das bromélias, dos gravatás. Tem o Rio Caí, que faz referência a queda. Temos o Rio Taquari, das taquaras. 

Os indígenas davam o nome da topografia à natureza. Mas essas águas estão descuidadas, não só por conta da poluição, mas também pela devastação das florestas em áreas ribeirinhas, a depredação da mata. O ambiente também é um patrimônio que precisa ser preservado. Então, precisamos trabalhar nas escolas não só a educação ambiental, mas também a educação patrimonial, para que nossos patrimônios sejam respeitados e valorizados.

Um de seus principais objetos de estudo é a colonização açoriana. Que traços dessa cultura ainda carregamos?

Eu sou da Casa dos Açores do Estado do Rio Grande do Sul, em Gravataí, que serve para auxiliar na preservação e resgate da cultura açoriana. Produzi algumas obras justamente para mostrar a relevância dos açorianos. Mesmo em âmbito acadêmico, se estuda muito pouco sobre a influência desses povos. Muito se fala sobre a colonização alemã e italiana, mas eles já chegaram aqui com a casa arrumada. 

Os açorianos também têm grande protagonismo na nossa história, mas é uma história que tem pouca visibilidade. Claro que eles não eram heróis, não existe história heroica. Mas eles contribuíram muito com a formação do Estado. As tradicionais danças gauchescas, como a dança do pezinho, chimarrita, balaio, tudo isso é herança dos Açores. Celebrações religiosas e festas, como a festa do Divino Espírito Santo, a festa junina, o tapete de Corpus Christi, o Dia do Terno de Reis, também. _

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