sábado, 17 de junho de 2023


17 DE JUNHO DE 2023
CLAUDIA TAJES

Passa muito rápido

Eu estava feliz naquele quentinho um tanto apertado, mas suficiente para eu me movimentar para todos os lados. Gostava particularmente de um tum-tum-tum que ouvia o tempo inteiro, mas não um tum-tum-tum de reforma no apartamento do vizinho ou de loja de surfe. Era um som bom, compassado, e parecia que o meu coração batia no mesmo ritmo dele. Então veio uma luz e a minha vida virou de cabeça para baixo - ainda que eu não conhecesse muito bem esse conceito, a vida.

Em seguida me senti em um (essa associação só fiz bem mais tarde) açougue: pesa, mede, apalpa, olha a gordurinha, que coxa mais grossa, meu Deus! Impossível não chorar, ainda que eu não soubesse que o ato de gritar enquanto as lágrimas escorrem fosse isso, chorar. Só parei quando me levaram para os braços de alguém e, pelo tum-tum-tum, adivinhei no mesmo instante que ali era o lado de fora do quentinho de onde me arrancaram.

Depois disso, a vida - não que eu já entendesse esse conceito, a vida - foi uma sucessão de primeiras vezes. A primeira mamada, a primeira cólica, a primeira vacina, a primeira febre, a primeira fruta, a primeira papinha, a primeira palavra, o primeiro passo, o primeiro tombo, a primeira arte, a primeira palmada, o primeiro dia na creche. Nada do que aconteceu até ali me preparou para o primeiro dia na creche. Foi quando eu senti que o quentinho e o tum-tum-tum tinham ficado definitivamente para trás.

Agora eu estava por mim.

Sem proteção, a vida - e enfim eu começava a entender esse conceito, a vida - passou a me apresentar suas armas. A menina que me encheu de socos porque eu peguei a borracha da Peppa Pig dela. A diarreia na frente dos coleguinhas. Os sete pontos na testa e os dois dentes de leite quebrados na queda do trepa-trepa. As letras que eu tentava juntar, mas que não faziam sentido. As crianças que tinham o que meus pais não podiam me dar. As crianças mais bonitas que eu, ou seja, todas, na minha opinião. No futuro, meu psiquiatra encontraria no Jardim B as origens das minhas frustrações.

De lá para cá, a vida - agora eu brigava com esse conceito, a vida - nem sempre esteve do meu lado. Por exemplo:

 Quando eu não decorei as Capitanias Hereditárias e rodei e perdi as férias de verão por castigo.

 Quando eu gostava de alguém, e o alguém me ignorava.

 Quando eu mandei um nude e o destinatário vazou para a turma toda.

 Quando eu tive apendicite e perdi a viagem de formatura.

 Quando me roubaram o primeiro celular bom que comprei, e faltavam 23 prestações de 24.

 Quando eu noivei com festa para os parentes e, duas semanas depois, tomei um pé na bunda.

 Quando a construtora faliu antes de me entregar o apartamento que comprei na planta.

A maturidade, ou algo próximo disso, acabou me fazendo ver que, mesmo com todos os percalços, não havia me faltado privilégios. Esse foi mais um tapa na cara que a vida me deu. Só que dessa vez, contrariando meus métodos, não me chateei com ela.

Outro dia me vi em um espelho e quase não acreditei que era eu no reflexo. Se ainda ontem eu não me conformava com a minha acne juvenil! Como passou tão rápido?

No fim das contas, era fácil entender o conceito: era só viver.

Sorte que ainda deu tempo.

CLAUDIA TAJES

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