sábado, 27 de maio de 2023


27 DE MAIO DE 2023
DIÁRIOS DO PODER

entrevista

ALEXANDRE BUBLITZ Pediatra que atuou na crise yanomami em Roraima.

Que realidade o senhor encontrou entre as comunidades yanomami?

Eu estava em Surucucu, onde há várias comunidades yanomami. É um lugar onde há muitos pontos de garimpo, sobretudo em regiões de rios. A grande crise humanitária ocorreu em Surucucu e Auaris. Em todas essas regiões, já existia um sistema de saúde prévio, com profissionais que faziam atendimentos. Mas, nos últimos anos, todo esse sistema de atenção aos pacientes indígenas estava debilitado. 

Houve um processo de sucateamento, não houve contratações de tantos profissionais. Junto a isso, veio o garimpo, com destruição de terras dessas comunidades, poluição dos rios e conflitos entre indígenas e garimpeiros. Essa região foi uma das mais afetadas por esse processo. Começaram a ocorrer vários problemas de saúde. Como os rios estão poluídos, fica dificultada a pesca e a caça. As terras onde havia plantações de mandioca e bananas foram afetadas. Começou a haver casos de desnutrição infantil e malária.

Como é a estrutura para atendimento médico à população indígena?

Esse local em que fiquei, Surucucu, é um polo base, um centro de referência para atendimento dessas comunidades. Sempre que havia um problema de saúde, a pessoa era levada para lá. A estrutura é composta por uma casa de madeira na qual havia local para a internação dos pacientes. Como a população indígena não usa cama, são montados leitos em redes. Depois da intervenção do governo, foram criadas tendas para maior atendimento, onde há ventilador mecânico, desfibrilador e uma estrutura para pacientes mais graves. Outra curiosidade é que, em qualquer hospital, você tem direito a um acompanhante. Lá também, dificilmente o paciente vai sozinho. Mas busca atendimento médico com um monte de gente: se vai a mãe e um dos filhos, tem de ir os demais filhos juntos.

Em que situação o senhor encontrou as crianças?

A ideia era fazer um tratamento de casos agudos, sobretudo de crianças com desnutrição. Usamos um "Middle Upper Arm Circumference" (Muac) para medir o grau de desnutrição pelo tamanho da circunferência do braço. Quando ela é menor do que 115 milímetros, a criança é classificada como desnutrida. Havia algumas com quadro de malária e outras com desnutrição crônica. Elas vinham recebendo pouco alimento havia muito tempo. Isso afeta crescimento, imunidade e desenvolvimento. Mas elas se mantinham. O problema é que, quando pegam uma doença, uma pneumonia, uma infecção intestinal ou malária, afundam. Não conseguem se alimentar direito. E aquele quadro, que é estável de desnutrição crônica, agudiza e vira uma desnutrição aguda severa. É o que a gente acaba vendo: emagrecimento nas pernas, na região das costelas, no rosto.

Qual era a sua função?

Existe lá, hoje, uma equipe com cinco médicos, todos contratados pelo programa Mais Médicos. Fomos em duas equipes, com um médico em cada, e dois enfermeiros, para darmos suporte à equipe local, que é muito boa, mas voltada para medicina de família.

Que dificuldades havia para trabalhar?

Há várias questões culturais que são difíceis. A língua yanomami naquela região não tem números. Eles não contam as coisas com números. Se preciso dar um antibiótico, que a gente tem de fazer uso de oito em oito horas por sete dias, por exemplo, não consigo prestar esse tratamento. Então, fazemos de forma assistida: precisa ter alguém que vá lá, dê o remédio, veja que a pessoa está tomando e segurá-la pelos dias necessários. Isso dificultava muito nosso trabalho. O próprio entendimento de saúde que aquela população indígena daquela região tem é muito mais vinculada a uma questão espiritual. (...) Quando você precisa internar um paciente, pegar um acesso, colocar uma sonda, isso causa uma estranheza muito grande e, por vezes, é visto como uma violência para eles.

Como o senhor viu a relação dos indígenas com o garimpo?

O garimpo está presente em todos os locais. E boa parte da comunidade indígena acaba também se vinculando e trabalhando no garimpo. Essas comunidades são, muitas vezes, compradas com escambo, como há 500 anos, quando indígenas recebiam espelhos (dos colonizadores). Eles fazem essas trocas hoje: armas, sabonetes, bolachas. Os garimpeiros entram nas comunidades e compram o acesso às terras.

O senhor visualizou áreas de garimpo?

Só a partir do helicóptero. O garimpo fica sempre junto ao rio. Consegue-se ver que há o rio e, em volta, áreas desmatadas e com terra. A água é desviada para bolsões, onde é utilizada para limpar, peneirar e se fazer a retirada do material. O problema no território indígena yanomami é crônico. Hoje, existe uma situação emergencial lá, e o governo está tentando melhorar a situação daquela população, mas a gente sabe que ainda há muitas coisas por fazer. 

Esses desafios não vão ir embora tão cedo. Inclusive são desafios que existem diante da população indígena como um todo no Brasil: entre yanomami na região Norte, mas também aqui no Sul, os guaranis e os caingangues. Só vamos conseguir solucionar esses problemas quando tivermos a participação da população indígena junto, quando eles puderem tomar a frente desse processo e pudermos ouvi-los e ajudá-los nessa luta, que é de todos nós. A tragédia humanitária dos yanomami resultou na morte de pelo menos 570 crianças em Roraima e no Amazonas, segundo o governo federal. 

Diante das fotos de crianças indígenas esquálidas que chocaram o Brasil e boa parte do mundo, em janeiro, o pediatra gaúcho Alexandre Bublitz decidiu se inscrever, como voluntário, para participar da Força Nacional do SUS, que atua no tratamento emergencial das vítimas. O médico de 36 anos adiou plantões no Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre, e reorganizou a agenda na Unisinos, onde é professor, e embarcou em 2 de maio para o norte do país. Trabalhou, durante 20 dias, em Surucucu, a 270 quilômetros de Boa Vista. De volta à capital gaúcha, ele contou como está a crise. Confira os principais trechos.

RODRIGO LOPES

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