sábado, 20 de maio de 2023


19/05/2023 - 16h30min

Fabrício Carpinejar

Sombras e pés 

Mães são a nossa sombra, para sempre cuidarmos de onde estacionamos os nossos sonhos. Mães são nossos pés, para sempre olharmos onde estamos pisando. Quando passeávamos de carro com a mãe, mantínhamos a consciência, mesmo crianças, de que nenhum trajeto seria maior do que o tempo de estacionar.

Não que a mãe tivesse algum trauma com balizas ou dirigisse mal, pelo contrário, ela dirige com prudência. E continua dirigindo até hoje, com 83 anos (84 no próximo dia 27). Renovou a carteira de habilitação pela enésima vez.

O dilema na época é que ela não aceitava qualquer vaga, precisava encontrar uma sombra. Sua obsessão se resumia a achar um cantinho debaixo das árvores. Ela não se preocupava apenas com o espaço livre entre os veículos, mas com o teto de galhos que proporcionaria refrigério para que não sofrêssemos com o abafamento depois.

Não havia direção hidráulica, mas um guidão impossível de se segurar com a exposição inclemente ao sol. Tornava-se ferro em brasa. Já o ar-condicionado se fazia presente apenas em automóveis de luxo.

Dávamos voltas e voltas no quarteirão, como se estivéssemos em um carrossel de cavalinhos, em busca da sagrada penumbra. A mãe poderia parar longe do nosso ponto de encontro sob o pretexto da sombra. Caminhávamos mais do carro para o nosso compromisso do que se partíssemos a pé desde o início da jornada.

Mas esquecíamos o cansaço da expedição ao testemunharmos a felicidade materna e seus gritos de comemoração. Não queríamos estragar a sua alegria com as nossas reclamações e protestos. Quando conseguia o seu intento, ela passava a manhã inteira se elogiando e agradecendo a Deus.

— Valeu o esforço. Localizei uma sombra maravilhosa, meus filhos. Uma sombra perfeita. Os ipês, os jacarandás, os chorões, as paineiras foram nossos flanelinhas por muito tempo. Não sei se recebiam gorjetas. Fora de casa, ela teimava com a sombra. Dentro do lar, sua preocupação era outra. O que eu mais ouvia dela era “não fique de pés descalços”.

Eu acordava e andava pela cozinha sem nada nos pés no azulejo frio. Fora de casa, ela teimava com a sombra. Dentro do lar, sua preocupação era outra. O que eu mais ouvia dela era “não fique de pés descalços”.

A mãe nem se preocupava que eu me cortasse ou que minha sola acabasse imunda na hora de colocar o tênis e ir para a escola. Sua observação se referia ao choque de temperatura após a cama quentinha. Ela insistia que eu iria gripar.

Hoje não largo o chinelo. Dificilmente estou sem ele. Para qualquer percurso. Saio com ele desde a cama. Conservo, inclusive, a marca branca da tira entre os dedos.

Minha esposa, diferentemente, permanece acordando de pés descalços. Perguntei para ela o motivo de nunca atender o meu pedido de cuidado e de proteção. Ela disse:— De pés descalços, eu ainda tenho a sensação de que a minha mãe está viva e vai aparecer chamando a minha atenção.

Eu me calei. E entendi: existem papéis, cadeiras em nossa vida que nunca mais serão ocupadas. Mães são a nossa sombra, para sempre cuidarmos de onde estacionamos os nossos sonhos. Mães são nossos pés, para sempre olharmos onde estamos pisando.

Mães são o chão da nossa saudade.

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