sábado, 7 de agosto de 2021


07 DE AGOSTO DE 2021
MARCELO RECH

O enigma das urnas

Nos idos de 1860, lavar as mãos antes de uma cirurgia, desinfetar a área da operação e usar panos limpos seria considerado ridículo. Foi pelas graças do médico inglês Joseph Lister que a história da humanidade mudou para melhor. Ao tratar uma criança ferida em 1865, Lister demonstrou que a assepsia evitava a infecção. Mesmo assim, renomados colegas cirurgiões zombaram dele e da ideia de que bactérias - seres que não conseguiam ver ou entender - contaminassem pacientes. Assim, seguiam operando, e matando pobres criaturas, até o triunfo da ciência anos depois.

As bactérias foram o que são hoje bits e bytes. Para muitos, é um enigma que não pode ser visto, tocado ou assimilado. Porque o ceticismo ao que não é palpável se transforma mas sobrevive aos séculos, uma parcela dos brasileiros resiste em acreditar na já mais que demonstrada segurança da urna eletrônica. Para os incrédulos, não bastam vozes sérias e respeitáveis repetirem que jamais se constatou qualquer burla ao sistema. Como no caso da negação às bactérias, há quem só creia no que pode ver e, se possível, tocar.

Há outras bolhas de desconfiança analógica, como no uso de dinheiro. O valor depositado em bancos não é físico, ou seja, não está todo num cofre-forte. Mesmo assim, tem gente que só confia em dinheiro vivo. Os céticos recolhem as cédulas no caixa e se submetem a riscos de assalto, perda e desvalorização para deixá-las sob o colchão e pagar despesas com uma nota sobre a outra. Na era dos cartões e do pix, não tem lógica, fora o ceticismo atávico ou, pior, que se queira evitar registros de transações financeiras.

Sempre que algo não faz sentido, é porque há uma razão que não quer ou não pode vir à tona. Quando o presidente da República elege o voto impresso como obsessão da hora, é preciso tentar entender sua motivação. Não por acaso, a investida contra o modelo que vigora sem problemas há 25 anos coincide com sua crescente desaprovação e a possibilidade de vir a ser derrotado em 2022 na contabilidade que interessa - a das urnas, não a do barulho nas ruas.

O voto digital é auditável, mas obviamente não há recontagem manual. Já o voto impresso poderia desencadear pedidos sem fim de recontagem por candidatos inconformados. E ai do tribunal que rejeitasse os pleitos - seria ofendido e acusado de sabotar a "legitimidade das eleições". Como já se viu há pouco nos EUA e no Peru, o resultado desfavorável será contestado por populistas derrotados de qualquer jeito, seja qual for a urna.

As urnas eletrônicas elegeram Bolsonaro e seus filhos seguidas vezes, mas isso agora já não parece importar. A intenção é criar um clima de pré-intentona, o que obrigou a Justiça Eleitoral a reafirmar a lisura das urnas. E é por isso que Bolsonaro a ataca e atiça seguidores contra um sistema exitoso que está no cerne da democracia brasileira.

MARCELO RECH

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