sábado, 2 de novembro de 2019


02 DE NOVEMBRO DE 2019
INFORME ESPECIAL

Destemperos verbais

Há algo em comum entre os recentes movimentos sociais e políticos na América do Sul: a surpresa. Da vitória de um neoperonista na Argentina à violência no Chile, passando pela revolta dos índios no Equador, pela dissolução do parlamento no Peru e pelos protestos na Bolívia, quase ninguém previu o que estava por acontecer. Não me considero alarmista, mas a oscilação acelerada e precoce do pêndulo da História vai desenhando pontos que se unem de um jeito barulhento.

O bolivarianismo e suas vertentes eram considerados, até bem pouco, moribundos.

Jaziam semienterrados, nocauteados pela guinada à direita que varreu o continente e boa parte do planeta. Subitamente, o susto.

Aprendi, ainda criança, que a melhor maneira de desatar um emaranhado é começar pelo nó mais fácil. Vale o mesmo para as questões de uma prova. As mais difíceis, convém deixar para o fim. Nesse refluxo continental, a parte mais difícil é o Brasil.

Aqui, a ressaca com a esquerda ainda provoca náuseas. As Forças Armadas são coesas e, até agora, estritamente fieis ao seu papel constitucional. Mas isso não impede a identificação de alguns fatores que, unidos, formam um rastilho de pólvora que vai ganhando comprimento e largura. Nosso presidente cutuca a esquerda a esmo, briga com a Europa e debocha dos que considera inimigos.

Nossa Suprema Corte, em vez de fator de segurança jurídica, gera, aos borbotões, instabilidade política. As reformas da Previdência e do Estado mexem com corporações poderosas e organizadas. Nosso Congresso não representa mais ninguém e, por fim, mas não menos importante, as universidades públicas, acuadas pela falta de verbas e pelas acusações de aparelhamento, estão inquietas.

Antes, cada ignição  precisava de um detonador apropriado. Só que a lógica da combustão não é mais linear. A Primavera Árabe, se pouco resultou em termos de democracia, nos ensinou sobre a complexidade das teias urdidas nas redes sociais, quase sempre abaixo dos radares das velhas instituições. Quem acompanha as postagens do presidente e de alguns dos principais atores da cena pública brasileira sabe: riscar fósforos virou rotina, como se não houvesse gasolina por perto. Ou, quem sabe, justamente por haver gasolina por perto.

TULIO MILMAN

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