sábado, 18 de maio de 2019


18 DE MAIO DE 2019

PAULO GERMANO


O prazer de se irritar com bobagem


Essa coisa de surreal. O cara cai um tombo surreal, a noite passada foi surreal, o gosto do bolo é surreal, a próxima eleição vai ser surreal. Tem me irritado isso, embora eu saiba que o errado seja eu. Porque, enfim, a linguagem tem desses dinamismos, os vocábulos vão absorvendo novas acepções, então fica até meio arrogante eu aqui, no auge da minha pretensão, ditar o que deve e o que não deve ser dito. Tudo bem, podem dizer.

Só deixem eu me irritar.

Até porque, não sei vocês, mas eu gosto de me irritar com bobagens. Com coisas mais graves, aí não vale a pena - não dá para levar a vida tão a sério. Portanto, irritar-se com surreal é como eleger um inofensivo inimigo para depositar nele todas as fúrias e insultos que, de vez em quando, a gente pensa em distribuir por aí. Melhor xingar o surreal do que o meu chefe.

Liguei para o professor Cláudio Moreno, uma das maiores autoridades em gramática, para me ajudar a esculhambar o surreal. E surreal, segundo o Moreno, é uma redução de surrealista, bem como japa é redução de japonês e bisa é redução de bisavó. Sendo assim, parece-me mesmo descabido dizer que aquele bolo tem um gosto surreal, visto que o surrealismo busca no inconsciente, nos sonhos e nos delírios uma versão onírica da realidade. Certo, professor?

- Errado - disse o Moreno.

Ué.

- Não vou dizer que um cavalo correndo sozinho no meio da rua é uma cena surrealista, porque surrealista tem outro sentido, mas posso dizer que é uma cena surreal, já que surreal tornou-se sinônimo de absurdo ou espantoso.

Mas que homem estraga-prazer. Enfim, como eu seguia sedento por esculachar qualquer coisa, aproveitei a ligação para debater outra estupidez que me dá nos nervos: a moda do precisamos falar sobre. A imprensa adora. Jogue no Google e verá que precisamos falar sobre depressão, precisamos falar sobre o Coaf, precisamos falar sobre a Capitã Marvel, precisamos falar sobre assédio, precisamos falar sobre rap nerd, precisamos falar sobre estupro de homens, precisamos falar sobre marketing da mentira, precisamos falar sobre a arbitragem de Boca Juniors e Athletico-PR.

Com todo o respeito, eu não preciso falar sobre a porcaria da arbitragem de Boca Juniors e Athletico-PR. Prefiro falar sobre por que, todo dia, alguém diz que preciso falar sobre irrelevâncias como, ora bolas, rap nerd. Aliás, faço aqui uma admissão de culpa, eu errei, errei feio, jamais repetirei esse erro: escrevi, há três anos, uma coluna sob o título "Precisamos falar sobre Jardel".

- Foi um bom título.

Como assim, professor Moreno?

- Fez muito sucesso o filme Precisamos Falar sobre o Kevin, e as pessoas aproveitaram essa frase como forma de denunciar uma situação que vem sendo pouco discutida. Nos anos 50, a peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, teve o mesmo impacto: os jornais passaram a publicar "Esperando o atacante" quando um clube buscava algum jogador, ou "Esperando a Constituinte".

- O senhor, por favor, poderia dar licença para eu me irritar?

- Claro, só que os ódios linguísticos de alguns podem ser as paixões de outros.

Mas que coisa.

Tudo bem, então vamos ao confira. Eu odeio o confira. Aqui na Zero, quando a gente publica um vídeo, ou uma tabela, ou um gráfico, ou uma entrevista, com frequência se lê logo acima: confira. Mas como "confira"? Por que não usamos leia, veja, ouça, assista? Só posso conferir alguma coisa se já sei do que se trata, porque conferir é checar, bater, verificar, averiguar. Está errado, professor Moreno! Confira é um chavão vulgar, um atentado ao idioma que os jornais estimulam dia após dia!

- Não acho. Ah, meu Deus... - O recado é o seguinte: se você tem dúvida, leia a entrevista, assista ao vídeo, veja como é verdade. Verifique, confira.

Chega: agradeci ao professor e, educadamente, pedi para desligar. Aquela conversa vinha ficando muito surreal.

PAULO GERMANO

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