quarta-feira, 1 de agosto de 2018


01 DE AGOSTO DE 2018
DAVID COIMBRA

De repente, a normalidade

Aconteceu algo extraordinário com o Brasil, depois do sucesso do Plano Real.

Algo que nunca havia acontecido desde, pelo menos, o golpe de 1930.

Algo difícil de acreditar. O seguinte: O Brasil se tornou um país normal.

Sério. O presidente não era um pai dos pobres como Getúlio, nem um excêntrico como Jânio, nem fazia promessas faraônicas como Juscelino, ou messiânico como Collor. Por um período, o presidente não correu o risco de perder o cargo antes da hora, fosse por impeachment constitucional, fosse pela força das armas, fosse por renúncia. Por esse mesmo período, as regras da economia e da vida civil foram mais ou menos as mesmas, não havia grande inflação, nem grande desemprego, nem crises incontornáveis.

O Brasil tinha seus problemas, é claro. Todos têm. Mas a vida seguia seu curso natural, sem eventos estrambólicos que estremecessem a nação.

A rara estabilidade levou à eleição de Fernando Henrique Cardoso, porque ele era a continuidade. E levou, também, à eleição de Lula, porque ele jurou que tudo ficaria igual. A famosa Carta aos Brasileiros, redigida a quatro mãos por Emílio Odebrecht e Antônio Palocci, garantia justamente isso: não era preciso ter medo de Lula - ele faria o que estava sendo feito.

Lula cumpriu a promessa. O Brasil seguiu governado da mesma forma que vinha sendo desde a queda de Collor. Nem os defeitos mudaram: as relações entre poder e dinheiro continuaram sendo promíscuas e os que ganhavam antes continuavam ganhando agora.

Mas havia uma diferença, gerada, curiosamente, pela normalidade democrática: as instituições começaram a se consolidar de maneira inédita no país. O Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Federal e a imprensa se fortaleceram. A Constituição, ainda que leniente, deu proteção à sociedade civil, e os instrumentos da sociedade civil tomaram corpo.

Ao mesmo tempo, Lula, com aguda intuição, valia-se da tradição totalitária brasileira para se transformar numa mistura de Getúlio com Jânio, de pai dos pobres com homem folclórico, um tipo "do povo", malandro, engraçado e falastrão. Esse personagem era perfeito para liderar o projeto de poder continental do PT, alimentado pelo dinheiro daquelas velhas relações dissolutas entre políticos e empreiteiros.

Você consegue perceber a contradição? As elites políticas e econômicas agiam como se o Brasil ainda fosse um país em que o dinheiro e o poder eram intocáveis, enquanto os demais estamentos da sociedade se solidificavam graças ao cimento da lei. Chegaria o momento em que essas duas forças iriam se chocar.

Foi o que se deu com a Lava-Jato, que não é só uma operação policial. A Lava-Jato é a expressão da normalidade institucional brasileira. Juízes, desembargadores, policiais, promotores, funcionários públicos de carreira, enfim, exercem suas funções com correção e, apenas por fazerem isso, apenas por cumprirem o seu dever, confrontam-se com o que está sendo feito de errado. Com o que sempre foi feito de errado. Antes, um juiz temia o dinheiro e o poder. Hoje, não mais.

A divisão que se sente no Brasil é precisamente esta: de um lado, o Brasil antigo, meio romântico, meio fantasioso, de soluções fáceis, que anseia por líderes fortes e salvadores da pátria, um Brasil em que a normalidade é exceção, em que a lei está a serviço da elite iluminada; do outro lado está o Brasil que anseia ser um país como as outras grandes democracias do mundo, meio sem graça, mas com estabilidade, com igualdade perante a lei, com gente séria fazendo seu trabalho com seriedade e, assim, transformando a comunidade para melhor. É esse também o dilema do brasileiro na próxima eleição. Que não será a solução de todos os nossos problemas. Nunca é. Mas bem pode ser uma evolução.

DAVID COIMBRA

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