sábado, 9 de janeiro de 2016



09 de janeiro de 2016 | N° 18409
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O QUE CABE NUM ABRAÇO


O William era filho único de um pai rico e bem-sucedido. Sobrecarregado pela cobrança de equivalência com o sucesso do pai, fez uma série de escolhas equivocadas na tentativa vã de encontrar uma trilha própria, com reconhecimento personalizado, desapegado do modelo paterno. Quando lhe ofereceram um emprego em Londres, viu uma chance áziga de dar uma utilidade ao curso de Comércio Exterior que, até então, soava-lhe no currículo como um título abstrato. 

Mas, mais do que tudo, percebeu que a distância traria uma trégua na competição desgastante que mantinha consigo mesmo. Descobriu, então, que a vocação para o sucesso empresarial era genética e, depois de seis anos, já comandava uma importante agência no centro financeiro de Londres. Neste tempo, o trabalho obstinado restringiu a relação familiar a telefonemas rápidos e focados na saúde dos pais e à repetição exaustiva dessas frases de pseudoafeto que dizemos na ânsia indisfarçada de encerrar uma ligação amorfa.

Uma dessas chamadas foi na véspera do Ano-Novo de 2009. Era a quarta virada de ano longe da família, a mãe pareceu chorosa como sempre, mas a voz do pai, recordaria depois, parecera mais cansada e, do nada, o velho dissera: “Não sei quantos Anos-Novos ainda festejarei, mas espero que o seu Ano-Novo seja muito feliz!”. Na hora, pensou: “O velho, manhoso como sempre, fazendo seu charme!”.

E, na mesma linha de cordialidade, respondeu: “Que os seus próximos 30 anos também sejam!”. Lembrava bem desse diálogo porque, ao desligar, se dera conta de que os 30 anos oferecidos no final da conversa eram um exagero, afinal, o pai já passara dos 70. Mas o desconforto desta constatação durara poucos segundos porque a vida frenética que levava não lhe permitia abstrações. Só ficara como definitiva a percepção que o aumento do intervalo entre os telefonemas, perceptível nos últimos meses, só fazia crescer a ansiedade por encerrar a conversa seguinte. Por isso, quando a mãe lhe chamou na véspera do Natal de 2010, ele já atendeu acelerado: “Diga lá, mãe, o que há de novo?”. Houve um silêncio e um soluço. O choro antes de começar a falar era uma inversão que prenunciava notícia ruim.

E ela veio. “É o seu pai, meu filho! Estive preocupada há meses com a prostração dele. Ele escondeu de mim o mais que pôde, mas ontem me confessou que está morrendo. E pediu que não te incomodasse, mas sei o quanto ele gostaria de lhe ver, desde que você não tenha nada mais importante para fazer!”

Na última frase, toda a mágoa arquivada desde uma noite infeliz em que ele dissera: “Desculpe mãe, mas vou desligar, porque meu dia ainda não terminou e tenho coisas muito importantes para fazer!”. Decidiu voltar aproveitando o feriado de Ano-Novo, quando os negócios esfriavam e poderia dar alguma atenção ao casal de velhos carentes que agora passara a ligar quase diariamente e, se isso não bastasse, ainda terminava em mar de lágrimas.

O reencontro foi chocante. O pai muito magro, a mãe deixara de pintar os cabelos, quase não os reconheceu. Impactado pela descoberta do quanto o abandono de filho envelhece os pais, ele tentou várias vezes explicar a ausência prolongada. E o velho pai sempre interrompia, dizendo: “Não diga nada, meu filho. Eu tenho o maior orgulho de você!”.

Na véspera do Ano-Novo, ele chamou os dois e disse: “Gente, eu não tenho experiência nesta coisa de morrer, mas acho que é isto que está acontecendo comigo. Me abracem!”. Os três ficaram assim, enlaçados durante um longo tempo. Até que perceberam que o pai já não estava. O William confessou-me, tempos depois, que naquele momento descobrira que tudo o que é realmente importante cabe num único abraço.

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