quinta-feira, 8 de maio de 2014

PASQUALE CIPRO NETO

Somos uns boçais

Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a sórdida realidade

Sou professor desde 1975. Desde sempre, a base das minhas aulas reside em textos dos mais diferentes matizes, da literatura clássica à moderna, da publicidade à nossa riquíssima música popular, do jornalismo aos fatos dos nossos dialetos etc.

Ninguém consegue compreender um texto sem o domínio da variedade linguística em que ele foi escrito, mas esse domínio não é suficiente. Sem compreender os diálogos que o texto que se lê estabelece com outros textos, com a história, com o presente, com o mundo em que se está e com outros mundos, nada de nada de compreender o que se lê.

Pois bem. Os brasileiros estamos, dia após dia, em contato com sucessivos fatos que expõem a nossa tragédia, a nossa miséria, o nosso atraso, a face crua da nossa barbárie, o nosso horror cotidiano, inexorável, boçal. Como dizia Caetano Veloso na canção "Podres Poderes", de 1984, "Enquanto os homens exercem seus podres poderes / Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos / E perdem os verdes / Somos uns boçais".

Gente que leva tudo ao pé da letra talvez não consiga entender a relação "avançam os sinais vermelhos/perdem os verdes", chave para a compreensão do excerto, finalizado com a triste e lamentavelmente verdadeira sentença: "Somos uns boçais". Note que o verbo não está na terceira do plural ("São"), mas na primeira ("somos"). Poderia soar arrogante e presunçoso excluir-se do bolo, da massa, da massa bruta, da bruta massa de que fazemos parte neste triste Brasil.

O Brasilzão de 2014 ainda avança os sinais vermelhos e perde os verdes, se é que chega a enxergá-los.

Num álbum posterior (o primoroso "Circulado", de 1991), o mesmo Caetano incluiu a também ainda atual canção "O Cu do Mundo", em cuja letra se encontram estes versos: "O furto, o estupro, o rápido pútrido / O fétido sequestro / O adjetivo esdrúxulo em U / Onde o cujo faz a curva / (O cu do mundo, esse nosso sítio) / O crime estúpido/ o criminoso só / Substantivo, comum / O fruto espúrio reluz / À subsombra desumana dos linchadores / A mais triste nação / Na época mais podre / Compõe-se de possíveis / Grupos de linchadores". Certamente Caetano não tirou do nada esses versos. Duas décadas depois, nada mudou, nada muda neste país.

Fico me perguntando o que poderia ter mudado se, nesses anos todos, os professores tivéssemos trabalhado textos como esses (não só nas aulas de português, mas também nas de história, geografia, filosofia etc.).

Será que a sala de aula ainda tem (se é que já teve) o poder de fazer a garotada mergulhar na reflexão sobre a nossa dura realidade? Será que o nosso sistema educacional e os nossos professores têm mesmo condições de promover a tão propalada "revolução pela educação" e, consequentemente, de pôr para aprender a pensar a nossa garotada toda?

E será que a nossa sociedade, violenta até mais não poder, tem condições de estabelecer a paz? Quando digo "violenta até mais não poder", não me refiro aos criminosos "verdadeiros"; refiro-me ao cidadão brasileiro médio, aquele que trafega no acostamento das rodovias, que ultrapassa na entrada da cabine de pedágio, que não respeita a faixa de pedestres, que impõe a toda a vizinhança, em altíssimo volume, o som de bate-estaca etc., etc., etc. Isso tudo não é característica de uma sociedade violentíssima e boçal, caro leitor?

Lamentavelmente, a arte quase sempre tem razão quando escancara a realidade. Os velhos versos de Caetano são apenas uma pequena amostra do que se pode aprender, apreender, compreender e depreender da leitura e da audição do que não é lixo. Aliás, chega de lixo! É isso.


inculta@uol.com.br

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