09 de outubro de 2013 |
N° 17578
MARTHA MEDEIROS
A carteira de trabalho
Estava em frente ao computador,
como quase sempre estou, esperando que alguma ideia inspiradora descesse do céu
para me ajudar a escrever a coluna desta quarta-feira. Enquanto a ideia
brilhante não vinha, li o jornal e fiquei ainda mais estarrecida com as
notícias sobre o Brasil. Desperdícios, obras inacabadas, tudo ficando para
depois, para um dia, para quando Deus quiser, e pensei: não, não vou falar de
novo sobre o atraso do país. Aí a palavra atraso me remeteu ao atraso de um
pagamento, e fui fazer algumas contas – a tela do computador seguiu em branco.
Foi então que a zeladora bateu à
porta do meu apartamento e entregou a correspondência. Entre a papelada havia
um envelope sem selo, sem carimbo, só com meu nome escrito. Abri. Não havia um
bilhete, um telefone para contato, um e-mail, coisa alguma – apenas a minha
carteira de trabalho.
A minha carteira de trabalho!
Onde ela estava, e com quem? Eu a teria perdido na rua? Mas quando é que eu
portei essa carteira pela última vez, se há quase 20 anos trabalho como
autônoma? Jurava que ela estava repousando no fundo de alguma gaveta, e ela me
retorna pela porta da frente, assim, como quem volta de um passeio.
A primeira sensação foi a de que
entrei para a categoria das destrambelhadas. Como é possível alguém perder algo
sem se dar conta? E não foi uma caneta, um pente, e sim um documento. Quanto
tempo ele passou fora de casa sem que eu percebesse? Por precaução, fui dar uma
espiada no quarto das minhas filhas para ver se suas roupas continuavam
penduradas nos armários.
Respirei fundo e abri aquela
carteira de trabalho emitida em 1981, com orelhas em todas as folhas desbotadas
e frágeis pelo tempo em que estiveram abandonadas, pegando chuva, sendo
manuseadas por pessoas estranhas, vá saber. Na primeira página, minha foto: uma
estagiária com expressão de pavor, nunca havia trabalhado antes, nada
suspeitava sobre seu futuro. A assinatura, ao menos, era segura.
E então, página por página, fui
investigando a mim mesma, recordando de todos os lugares onde trabalhei, por
quanto tempo, se havia sido demitida, promovida, reajustada. A parte dos
salários foi a mais cômica. Em um emprego, eu ganhava 90 mil. No emprego seguinte:
250 mil. E no outro, 1 milhão!! Por fim, em meu último emprego, eu ganhava a
gloriosa quantia de 1 milhão e 600 mil cruzeiros mensais. Morra de inveja,
Eike.
Depois dessa turnê pelo passado
de um país cuja moeda mudava de nome todo ano e cuja inflação fazia nossos
rendimentos atingirem essa saraivada de dígitos, fechei a carteira de trabalho
e fui tratar de desvendar o mistério de seu retorno ao lar. Desvendado (não
revelo porque é bom manter algum mistério nesta vida, e também porque o espaço
acabou), voltei conformada para minhas contas, lamentando que não se façam mais
milionários como antigamente.
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