06 de outubro de 2013 |
N° 17575
FABRÍCIO CARPINEJAR
Pai de meu pai
Há uma quebra na história
familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem
sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.
É quando o pai envelhece e começa
a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.
É quando aquele pai que segurava
com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai,
outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da
respiração para sair de seu lugar.
É quando aquele pai, que
antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a
porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes
disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de
seus remédios.
E nós, como filhos, não faremos
outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela
vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.
Todo filho é pai da morte de seu
pai.
Ou, quem sabe, a velhice do pai e
da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase
para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir
o amor com a amizade da escolta.
E assim como mudamos a casa para
atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a
rotina dos móveis para criar os nossos pais.
Uma das primeiras transformações
acontece no banheiro.
Seremos pais de nossos pais na
hora de pôr uma barra no box do chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é
simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e
refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não
podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem
braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma
de corrimões.
Pois envelhecer é andar de mãos
dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.
Seremos estranhos em nossa
residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e
preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não
previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?
Nos arrependeremos dos sofás, das
estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.
E feliz do filho que é pai de seu
pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se
despede um pouco por dia.
Meu amigo José Klein acompanhou o
pai até seus derradeiros minutos.
No hospital, a enfermeira fazia a
manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua
cadeira:
– Deixa que eu ajudo. Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez
seu pai no colo.
Colocou o rosto de seu pai contra
seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno,
enrugado, frágil, tremendo.
Ficou segurando um bom tempo, um
tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um
bom tempo, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o
outro. Aninhou o pai. Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrado: –
Estou aqui, estou aqui, pai!
O que um pai quer apenas ouvir no
fim de sua vida é que seu filho está ali.
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