15
de setembro de 2012 | N° 17193
CLÁUDIA
LAITANO
Ideias fora do
lugar
Dois
livros mais ou menos da mesma época, de dois dos maiores escritores do nosso
tempo, apresentam professores de literatura enrascados com o politicamente
correto. Em Desonra (1999), de J. M. Coetzee, a história é a de um professor
que se envolve com uma aluna e acaba caindo em desgraça na universidade. Em A Marca
Humana (2003), de Philip Roth, uma expressão considerada racista, dita em sala
de aula, obriga um professor veterano a pedir demissão.
A
coisa não anda mesmo fácil para professores de literatura. Houve um tempo em
que pedir que um aluno decorasse o primeiro canto de Os Lusíadas era banal.
Ninguém estava preocupado se o aluno ia gostar ou sequer entender quem eram os
barões assinalados e onde ficava a ocidental praia lusitana. O importante era
introduzir o garoto na vasta tradição de conhecimento acumulado pela
humanidade, nas artes e nas ciências, ampliando seus horizontes e despertando
sua curiosidade. Gosto, literalmente, não se discutia.
Quando
a minha geração chegou à escola, já ninguém decorava Camões ou mesmo um poema
curto de Drummond. Decorar poesia caíra de moda, mas decorar datas e
classificações ainda parecia sensato. O professor de literatura já não tinha
tanto prestígio quanto em meados do século, mas ainda era respeitado como
alguém com conteúdo para ensinar.
Nos
últimos anos, a moda é se aproximar dos alunos, mostrar que literatura “é isso
tudo que está aí” – jornal, quadrinhos, publicidade, Crepúsculo, blog de
maquiagem. Exigir que o aluno saia da escola sabendo pelo menos o básico sobre
o assunto, método que ainda funciona no ensino de física ou biologia, não
emplaca mais na literatura. Ler deve ser tão fácil e “intuitivo” quanto redigir
um torpedo ou aprender a mexer no celular.
Até
pouco tempo, portanto, a pior coisa que poderia acontecer a um professor de
literatura no Brasil era ter alunos convencidos de que não precisam mais de
aulas de literatura. O fundamentalismo politicamente correto que Roth e Coetzee
criticavam em seus livros ainda não havia mostrado os dentes no Brasil – talvez
porque a leitura por aqui seja tão secundária que sequer desperta o interesse
das diferentes patrulhas.
Nos
últimos dias, porém, tem ficado claro que mesmo um país que lê pouco pode ler
ainda menos: Monteiro Lobato está sendo alvo de um julgamento póstumo digno do
realismo mágico, enquanto Dalton Trevisan foi banido de uma lista de leituras
no Paraná por ter sido considerado “inadequado” para adolescentes. (Onde esses
pais vivem? Na Disney?)
O
crítico Roberto Schwarz criou a expressão “ideias fora de lugar” para explicar
como no Brasil escravocrata de Machado era possível (ou não) cultivar ideias
“europeias” de justiça e liberdade. Pois exigir literatura politicamente
correta em um país que não lê é uma espécie de ideia fora de lugar, um molho de
salada derramado sobre o prato de um morto de fome.
Para
quem esqueceu para que servem os professores de literatura, aí vai o lembrete:
são eles que podem ajudar os alunos a entender por que Lobato tratava Tia
Nastácia do jeito que tratava e por que um conto de Trevisan vale mais do que
todos os milhões de exemplares vendidos de 50 Tons de Cinza – lidos, aliás, com
surpreendente voracidade por adolescentes. Sem que seus pais sequer desconfiem,
é claro.
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