sábado, 9 de junho de 2012


CRISTIANE SEGATTO

O Estado e a mulher que aborta

Essa é a mais emocional das questões políticas e morais que o Brasil enfrenta. É possível chegar a um consenso?

Em 2007, o médico José Gomes Temporão assumiu o Ministério da Saúde com uma demonstração de audácia. Foi a primeira autoridade a defender publicamente um plebiscito sobre a legalização do aborto. Apostei que duraria pouco no cargo. Felizmente, perdi a aposta. Seria lamentável se, em pleno século XXI, um ministro fosse obrigado a deixar o posto por estimular a discussão em torno de uma das principais causas de mortalidade materna no país.

O ministro não perdeu o cargo, mas o assunto se perdeu. Bem ao estilo brasileiro, a verdade inconveniente, difícil, impopular foi evitada. Não era um tema agradável, principalmente quando uma eleição presidencial se aproximava. Azar das milhares de mulheres que, a cada ano, sofrem graves consequências ou morrem em decorrência de abortos clandestinos. Quase todas são pobres, sem acesso a clínicas confortáveis, anestesia, assepsia e outros cuidados médicos e psicológicos reservados às mulheres de classe média-alta que decidem abortar.

Nesta semana, o assunto voltou a ser notícia. O Ministério da Saúde discute a adoção de medidas para proteger a saúde das mulheres que abortam clandestinamente. A ideia é reproduzir no Brasil um modelo aplicado no Uruguai desde 2004.

Em tese, funcionaria assim: se uma paciente chegar a uma unidade de saúde dizendo que pretende abortar, os médicos devem submetê-la a exames e explicar os riscos envolvidos num aborto clandestino. E também falar sobre a possibilidade de levar a gestação adiante e, ao final, entregar o bebê para adoção.

Caso a mulher esteja decidida a interromper a gravidez, o dever do médico seria perguntar como ela pretende abortar. E explicar que alguns métodos são altamente arriscados. É o caso, por exemplo, da introdução no útero de arame ou madeira por meio de uma sonda de borracha – um artifício tosco, mas bastante difundido nas periferias brasileiras.

O instrumento é colocado no útero por enfermeiras ou pessoas sem nenhuma formação na área de saúde. A mulher é instruída a voltar para casa e retirá-lo depois de 24 horas. Quando começar a sangrar, deve procurar um hospital público dizendo que sofreu um aborto espontâneo. Muitas mulheres sofrem infecção, hemorragia, perdem o útero ou morrem. O Ministério da Saúde quer evitar que barbaridades como essa continuem acontecendo.

Outro ponto em discussão é o uso do misoprostol (Cytotec), remédio contra úlceras gástricas que, como efeito colateral, pode provocar sangramento e aborto. Ele é considerado o método abortivo mais usado no país. Apesar de ter venda restrita, é facilmente adquirido, de forma ilegal, pela internet. Se usado incorretamente, pode provocar hemorragia e levar à morte.

Segundo a proposta em discussão, os médicos passariam a orientar as mulheres decididas a tomar o remédio. Explicariam como usá-lo e qual é a dose ideal, de forma a reduzir o risco de complicações. É possível que o governo crie uma cartilha para orientar os profissionais sobre o que fazer quando atendem uma paciente antes ou depois do aborto clandestino.

Se o plano do Ministério da Saúde for levado adiante, o embate com os grupos religiosos no Congresso será inevitável. Virão à tona os mesmos argumentos usados quando o debate gira em torno da legalização do aborto. Quem é contra argumenta que todos têm direito à vida (não só a mulher) e que a vida começa no momento da concepção. Defende também que o governo invista em planejamento familiar em vez de acolher a mulher que pretende abortar.

O outro lado sustenta que a liberdade de escolha da mulher é um direito inviolável. Afirma também que a vida só deve ser protegida pelo Estado a partir da formação do sistema neurológico do feto (por volta das 18 semanas). E, sobretudo, que o aborto é uma questão de saúde pública.

A cada ano, cerca de 220 mil mulheres procuram o SUS para fazer raspagens do revestimento uterino, um procedimento chamado de curetagem, necessário depois de abortos. O Ministério da Saúde gasta cerca de R$ 35 milhões por ano com a internação de mulheres que sofreram complicações por causa de abortos ilegais.

É preciso olhar a realidade pela perspectiva dessas mulheres e dos profissionais de saúde que, todos os dias, são confrontados com as consequências da clandestinidade do aborto. Fingir que os danos sofridos por essas mulheres não existem é omissão de socorro. Algo incompatível com a função dos médicos e com o juramento que fizeram ao receber o diploma. Médico não é delegado. Médico não é juiz. Sua obrigação é reduzir o sofrimento da cidadã que o procura – e não prejulgá-la, escorraçá-la, abandoná-la.

O aborto é um fenômeno social que não vai deixar de existir apenas porque é proibido. Tal qual o uso de drogas. Do ponto de vista da saúde pública, cabe ao Estado encontrar formas de reduzir os danos sofridos por quem o pratica.

A discussão é urgente e mais que bem-vinda. Há argumentos respeitáveis de ambos os lados. Será que algum dia o debate poderá ocorrer em alto nível – sem as baixarias e as distorções habituais? Uma reflexão sobre o assunto foi feita pelos médicos Aníbal Faúndes e José Barzelatto no livro O drama do aborto: em busca de um consenso (Editora Komedi). Reproduzo aqui um trecho:

As pessoas razoáveis têm diferentes crenças e pontos de vista acerca do que é certo e do que é errado. Dessa forma, aceitar a existência de um “pluralismo razoável” parece ser um requisito para as sociedades democráticas. Além disso, pessoas razoáveis, com diferentes visões gerais, podem identificar e expandir algumas ideias e valores comuns.

Identificar esse consenso básico que orienta a vida em sociedade, não interfere na liberdade dos indivíduos nem é obstáculo para que cada grupo diferente de pessoas mantenha a sua própria visão de moralidade e guie suas ações pessoais por essa visão.

Um “consenso básico”, entretanto, lhes permite aceitar que outras pessoas possam atuar diferentemente, dentro de limites razoáveis, seguindo sua própria visão global do que é certo e do que é errado.
Os autores propõe nove pontos para orientar o diálogo e levar a sociedade a um consenso. Um breve resumo:

1) O aborto inseguro é uma tragédia para a saúde pública. Uma tragédia que poderia ser evitada.

2) O respeito pelas pessoas é um princípio ético básico aceito pela maioria. É um dos fundamentos da democracia. Inclui a liberdade de crença religiosa e o respeito pelas diferentes crenças. As sociedades que pretendem definir um consenso prático sobre aborto devem incluir diferentes sistemas de valores e diferentes perspectivas religiosas, entendendo que nenhuma religião pode impor seus valores sobre aqueles que não professam essa fé.

3) As mulheres são seres humanos com os mesmos direitos que os homens, incluindo seu direito a decidir livre e responsavelmente acerca de sua sexualidade.

4) Educação em saúde sexual e reprodutiva sem preconceitos não leva a atividade sexual indiscriminada, mas promove uma conduta sexual mais responsável e reduz as gravidezes não desejadas e os abortos.
5) Acesso fácil a métodos contraceptivos efetivos, por meio de serviços de boa qualidade, não promove promiscuidade e é um dos meios mais eficazes de reduzir os abortos.

6) Não é raro que as mulheres provoquem um aborto por falta de apoio familiar e social. As sociedades devem desenvolver ações efetivas de apoio às mulheres grávidas que desejam realizar a função exclusivamente feminina de levar a gravidez até o termo permitindo a continuidade da espécie humana.

7) Fazer com que o aborto seja um crime, e penalizar a mulher que aborta não reduz o número de abortos, mas leva a um grande aumento do sofrimento humano e à morte, dando espaço a um mercado de abortos clandestinos e inseguros. As leis que tratam deste assunto devem obedecer a limites socialmente aceitáveis.

8) Quando uma mulher preenche as condições necessárias para obter um aborto de acordo com a lei de seu país, ela deve ter fácil acesso a serviços de aborto seguro.

9) A maior parte das mulheres tem gravidezes não desejadas e abortos provocados como resultado da incapacidade da sociedade de proteger seus direitos. O aborto é uma decisão tomada como última alternativa. A sociedade deve assegurar que as mulheres que sofrem complicações de aborto legal ou ilegal sejam tratadas com todo o respeito e recebam atendimento da mesma qualidade que qualquer outra pessoa que procure ajuda médica nos serviços de saúde.

Alguns desses raciocínios parecem óbvios. A realidade tem mostrado que, infelizmente, ainda não são. E você? Acha que é possível que a sociedade brasileira chegue a um consenso sobre o aborto?
Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras

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