terça-feira, 7 de fevereiro de 2012



07 de fevereiro de 2012 | N° 16972
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


A garota do piano

Há uma época na vida de pessoas como você em que nada é improvável. Você pode vir a ser a versão moderna de Sócrates, de Da Vinci, de Camões, de Shakespeare, de Cervantes, de Rembrandt, de Van Gogh, de Bach, de Beethoven, de Freud ou de Einstein.

Basta você escolher o caminho, posto que é, idealmente, feito das mesmas células, de idêntico cérebro, de similares sangue e sonho.

Comigo aconteceu ali pelos 16 anos. Me dava uma vertigem pensar que todos os caminhos estavam libertos e desimpedidos, que, se quisesse, seria o maior filósofo, o maior gênio, escritor, pintor, músico, escafandrista da alma ou do universo.

Sucede, no entanto, que vivemos todos numa sociedade desde o início dos tempos contaminada pela vocação da rotina.

Vem um instante em que você arquiva seus devaneios, recrutado pelo duro ofício da sobrevivência. É aí que decide tornar-se bancário, farmacêutico, odontólogo, carpinteiro, médico, quiromante, arquiteto, bombeiro hidráulico. É também o momento em que lhe surge um encantador palminho de rosto, no qual supõe reconhecer a eleita de seu coração, a imagem de seus desejos, a alma gêmea de que falavam os poetas de antigamente.

É mais ou menos nesse ponto que você transita dos 25 aos 50 anos. Seus dois filhos passaram no vestibular de uma universidade paga. O governo engole algo além de um terço de tudo o que você ganha. Jamais se esgotam as prestações do carro ou do apartamento. Cada visita ao supermercado é um rude calço em seu orçamento, embora os ministros jurem que temos uma inflação de Primeiro Mundo. De súbito, você arquivou seus projetos de vida.

Num dos edifícios próximos, tem uma garota que se exercita pontualmente nas teclas de um piano. Às vezes desafina, mas não desiste por horas a fio.

No dia em que a encontrar pessoalmente, vou dizer: jamais desista de ser uma compositora ou uma concertista. Vou dizer que não perca o sentido de sua existência. Pois tudo mais é rotina, tudo mais é nada. Nada vale mais do que um sonho realizado.

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