sábado, 5 de março de 2011



05 de março de 2011 | N° 16630
CLÁUDIA LAITANO


Nu na passarela

A moda tira sua força da tensão permanente entre a vontade de ser diferente e o impulso de imitar. Por um lado, há o desejo de sermos únicos, especiais.

Por outro, queremos pertencer aos grupos da nossa escolha em todos os detalhes, inclusive na roupa, dissolvendo nossa identidade de forma que não reste a menor dúvida de que compartilhamos todos os códigos não escritos que definem nosso lugar no mundo – pelo menos naquilo que depende unicamente do nosso poder de compra.

A definição é do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que em um ensaio já clássico, O Império do Efêmero (1987), defendia que a moda era uma ferramenta preciosa para entender o mundo contemporâneo.

Na contramão de boa parte dos intelectuais que ainda torcia o nariz para o assunto, o filósofo mostrava como a indústria da aparência reflete valores caros a nossa época: o culto ao corpo, o fetiche do consumo, a obsessão pela eterna juventude. Encarar o tema como passatempo inconsequente de gente rica e desocupada, defendia Lipovetsky, é perder a oportunidade de entender um pouco melhor quem somos e o que valorizamos.

Cópia e originalidade, arte e mercado, ousadia e submissão. Poucos fenômenos culturais serão tão ricos em ambivalências quanto o universo fashion, que envolve pesquisa, observação, criação, mas também marketing, comércio, obsolescência programada, pose – e tudo isso em doses mais ou menos equilibradas.

Diante de um desfile do estilista britânico Alexander McQueen, que se suicidou há pouco mais de um ano, era difícil ficar indiferente à explosão criativa do que se via na passarela – uma combinação de teatro, artes plásticas, dança, música e, evidentemente, figurino que impactava o espectador como o espetáculo de um encenador brilhante.

Mas mesmo estilistas menos geniais eventualmente apresentam essa capacidade única de traduzir em formas e texturas uma ideia ou um sentimento. Nesse aspecto, a moda pode, sim, reclamar seu espaço no universo das artes como uma manifestação do espírito criativo capaz de expressar autoria e refletir o espírito de uma época.

Mas criação e invenção são apenas um dos lados da indústria da moda, que se sustenta não apenas do talento dos estilistas para encher os olhos, mas dos lucros da enorme cadeia produtiva que está por trás das roupas esquisitas que desfilam na passarela.

Para funcionar, é preciso que a casta formada por estilistas, jornalistas de moda e artistas (que emprestam sua imagem para esta ou aquela marca) seja investida de algum tipo de autoridade. Os mortais comuns, aqueles que vão comprar na loja da esquina a diluição infinitesimal do princípio ativo apresentado na semana de moda, devem reconhecer nesses profissionais o domínio de códigos que eles não alcançam. Dessa estratificação entre a casta dos que ditam e a casta dos que compram surge a arrogância dos primeiros – subproduto desse sistema que se sustenta do eterno desejo de se parecer o que não se é. O diabo, como todo mundo sabe, veste Prada.

O estilista John Galliano perdeu o emprego esta semana por declarações antissemitas registradas em vídeo e tornadas públicas – para choque de admiradores do mundo todo. Quase imperceptível entre os insultos racistas, porém, aparecia uma ofensa bem menos grave, mas muito eficiente para revelar a essência desse mundo movido a regimes extremos, photoshop e supervalorização da imagem: “Vocês são feias!”.

Onde os mortais viam irreverência e gênio não havia nada além de histrionismo, álcool e uma brutal ausência de humanidade. Vestido na última moda, o rei ficou nu.

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