quarta-feira, 1 de julho de 2009



01 de julho de 2009
N° 16017 - MARTHA MEDEIROS


Viagem pra lugar nenhum

Fui assistir a Jean Charles, com o excelente Selton Mello no papel daquele rapaz brasileiro que foi estupidamente assassinado num vagão de metrô, quatro anos atrás, confundido com um terrorista. O filme é quase um documentário, sem artifícios técnicos: uma narrativa comum, descolorida, acinzentada como a Londres dos imigrantes.

A primeira vez em que lá estive, em 1986, me hospedei na casa de uma inglesa que tinha quatro filhos e muitas dívidas, por isso amontoava a garotada num mesmo quarto para poder alugar o outro para estrangeiros e ganhar algum trocado extra.

A casa ficava num bairro bom, mas a vida dessa inglesa não era um passeio. Lembro que comprava comida com data de validade vencida porque era mais barato. Já eu só pensava em conhecer a tal cidade que inspirou a frase: quem enjoou de Londres enjoou de viver.

Fiquei 18 dias e não enjoei nem um segundo. Voltei outras três vezes, me hospedando não mais em quartos de casa de família, e sim em pequenos hotéis. Enfim, uma turista clássica curtindo os parques, os museus, os pubs, as feiras, os monumentos, os teatros, as livrarias, as ruas. Há quem dispense fazer turismo e só cogite viajar para o Exterior se for para se instalar e vivenciar de fato o dia a dia da cidade.

Uau. Eu adoraria estudar em Londres, escrever em Londres, viver um tempo lá como vivo aqui, mas não é tão simples. Geralmente, ou se faz turismo com os dias contados (o que já é um luxo), ou se vai para lavar prato, fazer faxina, pegar no pesado.

Jean Charles de Menezes morava numa cidadezinha no interior de Minas e foi para a Inglaterra ganhar a vida como eletricista. Passou a viver lá com mais três primos, todos tentando faturar em moeda forte. Eu saí do cinema pensando em como essa ilusão custa caro. A gente deveria ter condições de viver dignamente como eletricista ou garçom ou camareira no país em que nasceu mesmo.

É barra ter que se deslocar pra tão longe, sem direito a nenhum prazer. Há um momento em que a atriz Vanessa Giácomo, interpretando a prima Vivian, que deixou o namorado no Brasil para trabalhar em Londres como garçonete numa espelunca, diz a Jean Charles algo como: “Maldita hora que eu vim pra cá ralar nessa porcaria de cidade”.

Diz isso à beira do Tâmisa, em frente ao deslumbrante prédio do Parlamento, que para ela não tem nenhum significado – ela está na Europa apenas pelo dinheiro, longe do seu amor, do seu idioma e sem nenhuma chance de crescimento interior.

Numa situação como essa, é perfeitamente compreensível que Londres se transforme numa porcaria, por mais que doa associar essa palavra à terra de Shakespeare.

Jean Charles se divertia como? Não era frequentando o Ronnie Scott’s, tradicional clube de jazz londrino, e sim vendo Sidney Magal ao vivo num teatro de quinta, cercado de outros brasileiros, muitos deles ilegais no país, saudosos da pátria, do feijão, da goiabada e da Sandra Rosa Madalena, sem a possibilidade de absorver a cultura local, de sofisticar o gosto, de viver uma experiência nova.

O objetivo é apenas economizar e voltar pra casa assim que der, como fazem milhares de trabalhadores rurais que se transferem para centros urbanos. É o êxodo atrás de emprego e futuro.

Não bastasse a dureza que é viver desse modo, seja em Londres, São Paulo ou em qualquer lugar, levar uns tiros na cabeça às dez da manhã dentro de um transporte coletivo, sem chance de defesa, entra pra categoria das histórias inacreditáveis.

No filme, Vivian, a prima que chegou pela primeira vez a Londres odiando tudo aquilo, volta à capital inglesa mais capitalizada e mais madura. E faz o quê? Coloca uma mochila nas costas e, sozinha, vai conhecer melhor a Europa e a si mesma. Realiza, enfim, uma viagem de verdade, e honra a vida que Jean Charles só teve em sonhos.

Uma ótima quarta-feira. Um excelente mês de julho e um grande segundo semestre de 2009 com muitas realizações, especialmente para você.

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