sábado, 11 de abril de 2009


Cristiane Segatto

A pílula do esquecimento

Cientistas tentam apagar más lembranças. Isso é bom ou ruim?

Todos nós temos pelo menos uma lembrança que gostaríamos de esquecer. Eu tenho duas. Adoraria tomar uma pílula e tirar de vez da minha cabeça a cena do raio que quase me fulminou há 16 anos, enquanto eu fazia uma reportagem no Parque de Ibitipoca, em Minas Gerais.

Até hoje me lembro da força que me levantou do chão e me atirou para frente. Revejo a faísca que correu pelo chão e sinto o cheiro de enxofre que ficou no ar. A descarga elétrica fez meu cérebro sofrer. Durante alguns minutos não conseguia sentir o lado direito do meu corpo. Sobrevivi. Meus neurônios ainda funcionam. A lembrança ficou.

O outro evento que gostaria de apagar foi igualmente marcante. É a do bando de traficantes que me atacou na Favela de Heliópolis, em São Paulo, em 2000, enquanto eu fazia uma reportagem de saúde. Fui ameaçada com um revólver, levei chutes nas pernas e coronhadas na cabeça. Estava grávida de sete meses. Eu e minha filha sobrevivemos. De novo, a péssima lembrança ficou.

Memórias traumáticas são o foco de investigação de cientistas comandados pelo neurocientista Todd C. Sacktor, da State University of New York. Quando ocorre um evento traumático, ele é registrado por várias células do cérebro que funcionam em cadeia. Segundo Sacktor, a comunicação entre elas parece ser feita por uma substância chamada de PKMzeta. As células funcionam em rede como se fossem um grupo de testemunhas de um terremoto devastador.

Sacktor faz parte de um consórcio de cientistas interessados na possibilidade de “editar” memórias. Em testes com animais, uma equipe do Weizmann Institute of Science, em Israel, diz ter conseguido interferir no funcionamento da substância PKMzeta.

Eles teriam alcançado esse feito ao injetar no cérebro dos animais uma única dose de uma droga experimental (identificada pela sigla ZIP). Segundo eles, a droga fez com que ratos esquecessem a repugnância que haviam desenvolvido pelo sabor de um alimento que os deixou doente três meses antes.

As pesquisas estão só começando. Ainda vai demorar muito tempo até que uma pílula como essa esteja disponível para uso humano – se é que um dia vai estar. Mas esse tipo de pesquisa abre espaço para longos debates.

“A possibilidade de editar memórias provoca enormes discussões éticas”, disse o neurobiologista Steven E. Hyman ao jornal The New York Times. Hyman acredita que uma droga como essa seria muito útil porque ajudaria uma pessoa a amenizar memórias traumáticas. “Por outro lado, também poderia ser usada para aliviar a consciência do mau comportamento e até de crimes”, diz.

O debate sobre a “edição” de memórias é a base do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, estrelado por Jim Carrey. Joel, o personagem vivido pelo ator, recorre a uma clínica neurológica para tirar da cabeça a namorada, Clementine (Kate Winslet). Por meio de imagens de ressonância magnética e objetos que o fazem lembrar da moça, os médicos localizam no cérebro o ponto exato onde reside a memória indesejada e destroem neurônios, apagando as lembranças.

Por enquanto, a limpeza radical de arquivos mentais só existe no cinema. Mas as pesquisas sobre a "pílula do esquecimento" ainda vão dar muito o que falar. Se uma pessoa nada mais é do que o conjunto de suas memórias, seria ético receitar uma pílula capaz de apagar lembranças? Caso um remédio como esse estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, o destino dos americanos, do Iraque e do mundo teria sido diferente?

Lembro (e esta lembrança faço questão de não apagar!!!) de ter conversado sobre isso há alguns anos com o neurocientista Iván Izquierdo, professor da PUC do Rio Grande do Sul. Argentino naturalizado brasileiro, Izquierdo é reconhecido no mundo todo como um dos mais ativos pesquisadores da memória. Tem mais de 600 artigos publicados em revistas científicas. Perguntei a ele se as vítimas do 11 de setembro deveriam tomar a "pílula do esquecimento" caso ela existisse. Ele respondeu:

"Acho que não. Os americanos não devem apagar essa memória. Precisam se lembrar de que foram atacados. Não é desejável que os cidadãos se lembrem daquilo o tempo todo. Se fosse assim, a sociedade ficaria brutalizada. Mas é preciso aprender a atribuir a cada lembrança seu real valor. Existem tratamentos que ajudam a calibrar o peso das memórias e guardá-las assim".

Relembrar um pensamento de Izquierdo é um privilégio. Pensando bem, acho que ele tem razão. Já não quero apagar minhas duas experiências traumáticas. Preciso delas para ter certeza de que enfrentei o pior e sobrevivi. E para me lembrar todos os dias de que a sorte nunca me abandonou.

E você? Gostaria de apagar más lembranças? Tomaria a "pílula do esquecimento" se ela estivesse disponível?

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