sexta-feira, 10 de outubro de 2008



10 de outubro de 2008
N° 15754 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Um traço de ternura

Foi na esquina de uma avenida da Cidade Baixa. Havia ali uma feira de antigüidades mais ou menos modernas. Senhoras que eram passeadas por seus poodles. Marmanjos que ameaçavam cuidar dos carros. Pombas que ensaiavam vôos rasantes sobre os transeuntes.

E havia o pai e o filho.

O pai tinha uns 30 anos e toda uma experiência de mundo. Vestia roupas gastas que já não lhe serviam e trazia uma barba de três dias. O filho não devia ter mais de dois anos e trajava uns panos que em alguma época haviam sido um macacão branco.

Estavam no entanto acompanhados, naquela encruzilhada de duas avenidas movimentadas, da aura de algo incomum nas cidades grandes: um traço de ternura.

O pai se dirigia ao filho como quem tentasse lhe explicar o universo. Falava-lhe da diferença entre as pessoas que são donas de casas e carros e as que não são, das que dispõem do que comer pelas manhãs, tardes e noites, das que padecem de fome, das que sofrem de desesperança, das que são pobres, embora essa não seja sua culpa, das que são açoitadas pelo frio e pela solidão e pelo medo.

O filho ouvia, um pouco triste porque seu pai estava triste, mas em outros instantes distraído pelo vôo livre de uma borboleta, pelo canto de um pássaro no alto de uma árvore imensa, pelo jeito com que um gato se espreguiçava em cima de um muro.

As borboletas nasceram para voar? – se indagava. Os pássaros conhecem todas as músicas? Os gatos são preguiçosos porque não dormem?

Foi bem nesse momento que apareceram umas damas severas na companhia de uns homens sérios e fardados e começaram a fazer umas perguntas ao pai.

Ele poderia apresentar a certidão A? Ele poderia exibir o certificado B? Ele poderia mostrar o atestado C?

O pai não podia, pois nunca se dera bem com essa questão de papéis. E então se aproximaram do filho, que se fingiu distraído com um pássaro, um gato, uma borboleta.

Uma ótima sexta-feira e um excelente fim de semana.

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