quarta-feira, 3 de setembro de 2008



03 de setembro de 2008
N° 15715 - MARTHA MEDEIROS


Atravessando fronteiras

Anos atrás, quando eu malhava em academia, sempre cruzava com uma fotógrafa que eu conhecia de vista. Eu dizia oi, ela dizia oi. Depois parei de freqüentar a academia e comecei a caminhar no parque. De vez em quando, ela caminha por ali também.

Quando a gente se cruza, ela diz oi, eu respondo oi. Essa emocionante troca de ois constitui toda a nossa “relação”.

No entanto, temos uma querida amiga em comum. Contei para essa amiga que eu estava indo para Londres. Tiraria uma semana de férias, sozinha. Essa minha amiga então me disse: “Você vai estar lá no mesmo período que a Eneida, a fotógrafa. Quer o e-mail dela?”

Encurtando a história: escrevi para a Eneida, que já se encontrava em Londres. “Você vem para cá? Ótimo! Vamos jantar juntas? Combinado”. Trocamos endereços, telefones e afeto.

E isso tudo me fez pensar no seguinte: nós duas moramos na mesma cidade e possivelmente no mesmo bairro, dada a relativa freqüência com que nos cruzamos. E, no entanto, nenhuma das duas jamais pensou em convidar a outra para jantar, por uma razão muito simples e compreensível: somos duas estranhas.

Ela tem a vida dela, eu tenho a minha. Ela tem uma agenda apertada, eu tenho a minha. Ninguém convida para jantar alguém que só conhece de vista, a não ser que seja cantada, o que não é o nosso caso.

O nosso caso é outro: somos um exemplo de como uma cidade estrangeira pode anular cerimônias e estranhamentos. Na cidade da gente, nos agarramos aos nossos hábitos e aos nossos vínculos.

Estando fora, viramos uns desgarrados e, naturalmente, nos abrimos para conhecer novas culturas, novos costumes e novas pessoas, mesmo pessoas que já poderíamos ter conhecido há mais tempo – mas que não víamos necessidade.

Viajando, ficamos mais propícios ao risco e à experimentação. Encaramos bacon no café da manhã, passeamos na chuva, vamos ao súper de bicicleta, dormimos na grama, comemos carne de cobra, dirigimos do lado direito do carro, usamos banheiro público, fazemos confidências a quem nunca vimos antes.

O passaporte nos libera não só para a entrada em outro país, como também para a entrada em outro estilo de vida, muito mais solto do que quando estamos em casa, na nossa rotina repetitiva.

No momento em que você lê essa crônica, estou dentro do Eurotunnel, ou seja, no trem que percorre o Canal da Mancha.

É, embaixo d’água. Saí de Londres e estou indo para Paris, de onde embarcarei de volta para o Brasil no próximo final de semana. A esta altura, já jantei com a Eneida. Já nos tornamos amigas de infância ou cada uma decidiu trocar de parque nas próximas caminhadas.

O que importa é que atravessamos a barreira do oi, esse cumprimento protocolar que tão raramente progride para uma proximidade de fato.

Eu teria uma dúzia de razões para explicar por que gosto tanto de viajar, mas por hoje fico apenas com esta: pela alegria de viver e pela falta de frescura.

Embora com chuva e com o calor que teima em sobrepor-se ao inverno, que tenhamos todos uma ótima quarta-feira.

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