terça-feira, 20 de novembro de 2007



20 de novembro de 2007
N° 15424 - Liberato Vieira da Cunha


Preenchida de ausência

Como orbito no mesmo espaço de Porto Alegre desde que me mudei para cá há 50 anos, acho que tenho direito adquirido a alguns mergulhos nostálgicos.

Salvo pelos grandes edifícios, que se resumiam a três ou quatro e hoje são dezenas, a paisagem circundante não mudou muito: preencheu-se de ausências.

Guri, eu costumava contemplar um imenso sobrado que havia na Bento Martins, quase defronte à Farmácia Santa Catarina, e ficava ali imaginando como era possível reunir num único prédio tantas portas, janelas, porões e águas-furtadas.

Em matéria de variedade, contudo, imbatível era mesmo o Armazém Pimenta, ali perto, na esquina da Duque, onde se encontravam desde tachinhas a filtros dágua, desde agulhas a fogareiros a querosene.

Na linha transversal direita era o Bar Cristal, entregue aos cuidados e ao bom humor de Amílcar, um dos melhores produtos de exportação de Portugal, só igualado por seus primos António (assim com ó) e José, proprietários da (assim com z) Panificadora Luzitana.

Descendo-se a ladeira, ainda na Bento, quem queria cultivar as belas-artes estaria bem servido no Conservatório Musical do Professor Vito Favale.

Já a quem apetecia não mais do que cortar o cabelo, podia escolher entre dois salões, de mestres igualmente peninsulares. Italianos eram também dois sapateiros instalados perto do cruzamento da Riachuelo com a João Manoel.

Falei de alguns imigrantes. Eram muitos mais, de variadas nacionalidades, gente amável e rija, que vinha refazer a vida do lado de cá do Atlântico, depois da hecatombe da II Guerra. No meu edifício morava um inglês e havia outro que passeava o cão harrier pelas pedras azul e rosa da travessa.

A lista de chamada de minha aula era respondida por nomes checos, austríacos, uruguaios, escoceses e romenos. Se houve uma vez a Terra Prometida, tinha uma prima-irmã em Porto Alegre.

Depois, não sei. Veio abaixo o sobradão da Bento Martins. Fecharam a Farmácia Santa Catarina, o Armazém Pimenta (embora Seu Ivo, o proprietário, resista heróico na calçada oposta), o Bar Cristal, a Panificadora Luzitana, o Conservatório, barbearias e sapateiros.

Não me arrisco a dizer que nos civilizamos; suspeito que apenas nos transformamos. Pois de repente a paisagem preencheu-se de ausência.

Uma ótima terça-feira e um excelente feriado para aquelas capitais onde é feriado. Sexta, sábado, domingo, segunda e terça-feira...aja ócio para tantos dias..Enfim...

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