sábado, 25 de maio de 2019



25 DE MAIO DE 2019
PAULO GLEICH

O DEMÔNIO DO MEIO-DIA

Em um dia qualquer de um outono que se arrasta em chegar, o sol cálido banha ruas e casas. Crianças e adolescentes tomam as calçadas na saída da escola, cheiros diversos anunciam no ar cardápios que só serão degustados por quem compartilhará aquela íntima refeição. Os barulhos e as cores da cidade tocam a harmonia caótica que embala sonhos e vaivéns de seus habitantes.

Muitas dessas pessoas, porém, não sentem o suave calor que o sol projeta em seus corpos. Os cheiros não despertam seu apetite, e a vida que corre à sua volta mal é percebida - e, se percebida, causa alguma tristeza, quando não indiferença. Movem-se com esforço, como se o ar oferecesse resistência a seus corpos. Dessas, algumas sequer saíram de casa, porque ar tornou-se pesado demais para levantar.

Alguns desses sujeitos, tão acostumados que estão a não sentir prazeres, já se conformaram: a vida é isso mesmo. Limitam-se a seguir sua rotina, que ao menos oferece um estímulo externo - mesmo que esse não seja muito estimulante - para não parar de vez. Veem a vida em tons de cinza, contentam-se quando conseguem evitar ao máximo os tons mais escuros.

Outros já não conseguem mais ver tom nenhum: tudo é escuridão, e a única forma que têm de lidar com ela é ficando imóveis, porque andando podem topar com algo que os derrube de vez. Há os que sonham com morrer, como se fosse o único remédio capaz de trazer alívio a seu inferno particular. Desesperados e desesperançados, alguns chegam a apressar a chegada da morte, não mais suportando o vazio da escuridão.

Há também os que reconhecem que há algo de errado em ver tanto breu e em não sentir sequer o calor do sol. Falam de seu mal-estar, numa tentativa de encontrar amparo para sair desse lugar tão insuportavelmente penoso. Uns azarados encontram ouvidos fechados e respostas como "vai passar", que sua dor é "só coisa da cabeça" - como se a cabeça não fosse parte do corpo e também não adoecesse.

Os que nunca padeceram nas garras do demônio do meio-dia - como Andrew Solomon nomeou a depressão em seu livro sobre o assunto - se assustam ao deparar com quem está sob a influência deste mal. Talvez por medo de serem também acossados por ele, tentam enxotá-lo com alegrias e distrações, ignorando que esses são, no máximo, paliativos. Algumas pessoas de fato acabam se contagiando, vendo-se paralisadas diante do excesso de escuridão na vida de quem pede ajuda.

Os avanços da farmacologia têm oferecido um importante auxílio para quem sofre com esse demônio que, a cada ano, atinge mais pessoas em todo o mundo. Ajudam a clarear um pouco seus tons mais escuros, aliviar o peso para que possam ao menos sair da cama. Mas também induzem a um equívoco frequente, ao igualar a depressão a uma doença como outra qualquer, para a qual bastaria apenas a pílula diária.

O demônio do meio-dia é um ser tinhoso, entranhado na alma e no corpo de quem está sob seu domínio. A melhor estratégia é, ainda, aquela máxima do general chinês Sun Tzu: conhece teu inimigo como a ti mesmo - até porque esse demônio não deixa de ser uma parte de nós mesmos. Para isso, a palavra e o pensamento ainda são os melhores recursos, mesmo que esse inimigo interno insista em repetir que de nada adiantam. Uma psicoterapia não pode prometer a luz do sol, mas pode oferecer uma essencial companhia para ajudar a entender e desarmar as engenhosas armadilhas criadas por esse demônio.

PAULO GLEICH

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