sábado, 5 de dezembro de 2015



06 de dezembro de 2015 | N° 18377 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Humores centenários


Teve algo de abençoado o ano de 1915, no campo do humor, no Brasil. Não é pouca coisa terem sido lançados, cem anos atrás, tanto o Antônio Chimango, de Amaro Juvenal, cá no Rio Grande do Sul, quanto La Divina Increnca, de Juó Bananére, em São Paulo.

Os autores estão escondidos nas duas assinaturas. O gaúcho Amaro Juvenal se chamava, na vida real, Ramiro Fortes de Barcellos. Foi médico, compôs a geração que inventou a República no Estado, fez carreira política importante (deputado estadual, secretário de estado, embaixador no Uruguai, senador); viveu entre 1851 e 1916, tendo tempo de realizar muitas coisas, incluindo o “poemeto campestre” lançado cem anos atrás.

O pseudônimo Juó Bananére foi inventado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, um engenheiro paulista de vida curta (entre 1892, Pindamonhangaba, e 1933, São Paulo). Juó Bananére foi um cronista satírico que fez do mundo italianado paulistano sua matéria- prima e sua linguagem. (Por uma desgraça que eu vivo comentando, ele mal consta nos manuais de ensino de literatura; e quando consta ainda é xingado como “pré-modernista”, termo que só faz atrapalhar nosso acesso a ele, por julgá-lo de antemão como alguém que é menor, que deve algo ao futuro.)

As assinaturas já dão o que pensar. Amaro Juvenal combina o adjetivo “amaro”, amargo, com o nome do satirista latino Juvenal; mas o conjunto parece mesmo nome de gaúcho. “Juó” é a imitação escrita da pronúncia meio italiana de “joão”, e “bananére”, com ar de palavra italiana pela terminação, mal esconde a fruta-símbolo brasileira, a banana. Um sarro, dois sarros.

Antônio Chimango é uma obra-prima: um poema narrativo escrito nas boas regras da literatura gauchesca, mas com requintes inéditos. São cinco partes, as “rondas”, que acompanham uma tropeada; um narrador externo aos fatos relata as dificuldades de conduzir o gado por estradas e corredores e, a cada noite, ao se organizarem os turnos de vigia, entra em cena um velho gaúcho, sábio e matreiro, o tio Lautério, que conta a história do personagem-título, que é uma caricatura do mais longevo governador do Estado, que estava vivo e tinha poder amplo, o notório Antônio Augusto Borges de Medeiros.

Em linguagem e forma perfeitamente adequadas ao gênero, Ramiro/Amaro fez a denúncia que prometeu, ao perder para o candidato oficial a viciada eleição ao senado naquele ano: o tal Chimango sai com a imagem muito ruim, como um fracote, puxa-saco, arrogante, mau administrador, tudo isso e mais ainda. O humor do livro vem temperado de funda amargura.

Já o livro de Bananére é de outra matriz humorística. Seu forte é a paródia, a começar do título, La Divina Increnca, que evoca a séria e famosa (e italiana) Divina Comédia. Ironizando o nacionalismo brasileiro (e ocidental – estávamos no começo da I Guerra Mundial), sem livrar a cara nem dos amigos do autor, os poemas do livro nos fazem sacudir a barriga da inteligência ao atacar a poesia brasileira, especialmente o paradigma que era Olavo Bilac, aquela mala.

Tendo como fundo o famoso Soneto XIII de A Via Láctea, aquele do “Ora – direis – ouvir estrelas”, escreve Bananére: “Che scuitá strella, né meia strella! / Vucê stá maluco! e io ti diró intanto / che p’ra iscuitalas moltas veiz livanto / i vô dá una spiada na gianella”. Lido em voz alta, imitando um italiano a falar, o resultado é muito engraçado.

A irreverência de Bananére havia já rendido a ele algum prejuízo – chegou a perder um emprego justamente por atacar o mesmo Bilac. Oswald de Andrade, antes de 1922, gostava dele, e, bem, quem não o admiraria, se fosse dotado de bom humor e de disposição para a ironia?

O começo de “Os meus otto anno”, anti-casimirianamente diz:

O chi sodades che io tegno

D’aquillo gustoso tempigno,

Ch’io stava o tempo intirigno

Bringando c’oas mulecada.

Che brutta insgugliambaço,

Che troça, che bringadêra,

Imbaxo das bananera

Na smobra dus bambuzá.

Já o tio Lautério, criatura de Amaro Juvenal, assim diagnosticava a situação do Rio Grande do Sul, cem anos atrás:

E tudo mais em S. Pedro

Vai morrendo, pouco a pouco,

A manotaços e a soco,

Rolando para um abismo;

Pois c’o tal Positivismo,

O home inda acaba louco.

Cem anos... Que falta faz um talento humorístico literário assim agora!

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