05 de janeiro de 2014 |
N° 17664
MARTHA MEDEIROS
À flor da pele
Quando
tento buscar na memória a menina que fui, não consigo me ver chorando. No
colégio? Nunca. Em casa? Só de forma muito reservada e profunda no silêncio do
meu quarto, jamais por fricotes infantis. Mesmo adolescente, com os hormônios
em curto-circuito, tampouco lembro de abrir as torneiras. Era durona, não
chorava nem quando havia sério motivo para tal aliás, bastava que algum parente
distante tivesse morrido para me dar uma vontade louca de rir. Tinha vergonha
de me emocionar.
Depois veio a idade dos namoros,
e aprendi a chorar por dor de cotovelo e também por autopiedade. Meu choro era
tão sentido, vinha de zonas tão secretas em mim que, mesmo quando o motivo do
choro já havia se dissipado, eu continuava chorando pela simples emoção de
estar testemunhando a minha tristeza reprimida que finalmente desaguava — eu
chorava pela comoção que eu mesma me causava.
Chorei por amor e ainda vou
chorar, porque é da natureza do amor despertar nossas fragilidades. Chorei no
momento em que minhas filhas nasceram, porque o esforço e a intensidade da
emoção do parto faz tudo vazar sem barragem que represe. E chorei de raiva nas
poucas vezes em que me senti injustiçada. E só. Tudo choro emocional, mas com
razão conhecida.
Porém acabou o tempo de estio,
quando eu chorava tão de vez em quando que podia lembrar a data. Nos tempos que
correm, as lágrimas também correm — muito! E se antes chorava por alguma emoção
irreprimível como o nascimento de um filho ou por um sofrimento doloroso como a
partida de um grande amor, ando chorando agora durante a Dança dos Famosos.
Quando o Gabiru fez o gol que deu ao Inter o Campeonato Mundial de Clubes,
chorei. Quando uma criança canta na festinha da creche: “Quero ver você não
chorar/Não olhar pra trás...”, me debulho. Choro em formatura.
Choro em discurso de família.
Chorei quando os Stones entraram no palco no Hyde Park e quando Paul McCartney
cantou My Love no Beira-Rio. Choro com os fogos de artifício do Réveillon.
Choro no trânsito. Choro quando os caixões são fechados, mesmo que eu não
conheça quem esteja dentro. Choro ao ver qualquer pessoa chorando. Choro em
apresentação de dança da Dullius. Choro em aeroporto. Choro no banho. E quando
ouço Chão de Giz, do Zé Ramalho, daí não são apenas olhos marejados:
transbordo. Essa música toca em alguma coisa que me cala fundo e ainda não sei
o que é.
Dizem que ficamos mais amolecidos
com a idade, mas eu achava que estavam se referindo às dobrinhas nos joelhos.
Pelo visto, os sentimentos, com o tempo, também afrouxam. Melhor assim: deixam
de empedrar e de nos enrijecer por dentro. Deslizam pela face e nos purificam:
ficamos banhados, limpos, batizados.
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