segunda-feira, 26 de janeiro de 2009



26 de janeiro de 2009
N° 15860 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Noites da infância

Em Cachoeira da minha primeira infância, as noites eram povoadas de súbitos ruídos. Eu ia cedo para o berço, mas o sono não me acompanhava. Ficava no quarto, sintonizado com os sons de minha circunstância.

Primeiro eram meus pais e seus amigos, que se reuniam no grande living da casa da Rua Sete, conversando sobre as notícias do dia, filmes, discos, livros, pequenos escândalos municipais. Mas chegava a hora em que as vozes iam se aquietando, as pessoas se despedindo e tomando seus rumos. Eram rumos de paz, porque Cachoeira desconhecia mortes, assaltos, sequestros e outros sinais de civilização que hoje a cercam, como sitiam Porto Alegre e cada cidade pequena ou média deste Rio Grande.

Mas certas épocas eu ouvia tiros. Eram foguetes – eu não tardava a reconhecer. Havia novenas na Igreja Matriz, corais de cem vozes culminavam com salvas noturnas, com fogos de artifício que transfiguravam de cores os sonhos recém-adormecidos.

E tinha o lamento dos trens. Um grito lancinante varava a escuridão e invadia de pesadelos o vestíbulo do sono. Era o apito do noturno que se aproximava da estação e escalava na gare antes de seguir viagem em direção a Santa Maria. E que preenchia de sustos cada milímetro da vigília da inconsciência.

Subia então pelas venezianas cerradas uma luz dourada. Era rápida e levemente fantasmagórica, como se fosse o avesso do reverso de si mesma. Era o farol de neblina do carro do Louco percorrendo territórios espectrais, quem sabe à procura de fogos-fátuos antes de se desfazer na vertigem da treva.

Assim eram as noites de Cachoeira da minha infância. Isso quando não tocava o sino da torre esquerda, anunciando uma morte inesperada, um desaparecimento, uma tocata e fuga. Ou simplesmente um pacto de amor que adormecia nas dobras da penumbra.

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