sábado, 27 de fevereiro de 2021


27 DE FEVEREIRO DE 2021
LYA LUFT

Nós, os sequelados

(Não quero parecer pessimista com esse título, mas amorosa. Parece que o primeiro golpe, que pode deixar sequelas, é o nascimento. Depois, a família, carinhosa ou violenta; depois, a juventude com esperança ou mortificação; a adultez com seus fracassos ou conquistas, por menores que sejam; a velhice com afetos ainda, mas alguma irrecuperável perda. Hoje homenageio meus leitores condensando em prosa poemas vários, para que sintam que poesia é prazer e magia. E cura algumas sequelas.)

O mar dos meus amores é turvo de desencanto. Não é azul nem verde: é marinho. Na crista do sonho, um raro gesto faz desmaiarem as sereias. No mar das minhas dores, escuro do naufrágio do mundo, espero e escuto: alguém virá? O cavalo da espuma deixa pelo caminho a luz dos momentos que são mais que muito: são tanto e tão fundo. Meu mais secreto destino como o reverso das ilhas; maremoto marinho, calado alado e sonoro: mais que navego, imagino.

Eu pedia licença a Deus, encostava a testa no vão da porta e espiava: lá estavam os mortos, aquietados, cada um em sua gaveta, o rosto eterno que eu não via. (Os mortos, sim, me vigiavam.) Guardados naquele silêncio, dobras de vidro e metal, à noite, eu sabia, eles voltavam às casas onde tinham amado, esfregavam os rostos nos espelhos até sangrar, e seu lamento agudo gotejava no sono dos vivos, como chuva. Eu me retirava devagar pelo caminho de pedra, os olhos dos mortos grudados nas minhas costas.

No jardim moravam todos os segredos: as vozes cantavam entre as folhas, e choravam no vento. No horizonte, morros azuis da tinta que um anjo distraído deixara cair do céu. Nada parecia impossível, nem princesas nem unicórnios, nem fantasmas na noite. Todos os mundos que criei, pessoas que inventei, destinos que tracei, nasceram ali: perderam-se mas persistem, porque o que parece perdido existe.

Naquele tempo sem tempo, a verdade parecia estar nos livros: ali moravam as respostas e nasciam os nomes. Quanto mais procurei, mais me enredei na ramagem das indagações: as respostas não vinham, a verdade era miragem, a busca era melhor que a descoberta - e nunca se chegava. (Viver era mesmo sentir aquela fome.)

Na parede atrás de minha mesa, ombro a ombro, a menina e seu pai, em dois retratos, conversam no escuro da noite. Quando apago a luz e fecho a porta, eles riem baixinho desta que hoje sou: ainda tão distraída e desassossegada, cheia de encantamento, e susto. E dizem, meneando as cabeças: ela nunca vai mudar.

Estou sempre dando adeus: também ao desencontro e ao desencanto. Estou sempre me despedindo do ponto de partida que me lança de si, do porto de chegada que nunca é aqui. Estou sempre dizendo adeus: até a Deus, para o reencontrar em outra esquina de adeuses. Estarei sempre de partida, até o momento de sermos deuses: quando me fizeres dar adeus à solidão e à sombra.

LYA LUFT

27 DE FEVEREIRO DE 2021
MARTHA MEDEIROS

Minhas águas

Watsu é um tratamento que se faz dentro de uma piscina aquecida e que é inspirado nos movimentos do zen shiatsu: você fecha os olhos enquanto o terapeuta segura seu corpo e o conduz com tanta lentidão e suavidade que você entra num estado de quase sedação. Serve para atenuar estresse, insônia ou apenas para relaxar, como fiz recentemente num spa. Desconectei do ambiente externo e vivi uma regressão: eu parecia um feto boiando no útero materno. Não costumo ser viajandona, então me dê um crédito. Nunca havia pensado na minha relação com a água e em como ela também conta a minha história.

Tudo começou no apartamento onde vivi os primeiros anos: no banheiro, tinha um box com cortina, limitado por uma muretinha de azulejos amarelos, e era ali, dentro daquele pequeno espaço onde caía a água do chuveiro, que eu fantasiava ter a piscina que nunca tive.

Mas havia o clube, onde, depois de saltar e correr pela piscina das crianças (enquanto minha mãe advertia: "Devagar para não escorregar!"), eu recebia permissão para entrar na piscina dos adultos, que não dava pé - me agarrava na borda e meu coração saltava pela boca nas vezes em que era levada até o outro lado nos braços do meu pai.

Nas férias, havia o mar gelado de Torres, com ondas irregulares e pouco azul, mas era meu Caribe, onde pegava jacaré com uma prancha de isopor e saía da água com os dedos murchos. Torres faz fronteira com Santa Catarina, e assim que cresci mudei de mar, upgrade celebrado nas areias de Bombinhas: nos meus 18 anos, era uma extensão de praia quase desabitada, onde passei os melhores dias da juventude, numa casa de pescador com amigos da vida toda e um visual que não perdia para o da Tailândia.

Chegamos à idade adulta, onde o oceano se expande e mergulho em cartões-postais: em Koh Pee Pee, vivi uma epifania, nadando ao lado de peixes luminosos enquanto superava medos infundados. Em Fernando de Noronha, o mergulho foi ao lado de tartarugas gigantes, o mais perto que cheguei do universo Jacques Cousteau. No México, duas experiências aquáticas longe do mar: um banho regenerador num cenote (depressão circular inundada de água fresca e cercada por vegetação) e um banho pelas águas esmeralda de uma gruta subterrânea, sob estalactites penduradas no teto: mistério, silêncio e fascínio.

Faltou espaço para falar da companhia dos botos cor-de-rosa nas águas doces do rio Negro, dos banhos de chuva na calçada, de uma tarde de sol dentro do mar do Arpoador e da única cachoeira da minha vida, quase na beira da estrada. Distante de mim mesma nesta longa e árida pandemia, uma simples sessão de watsu veio me lembrar: tão pé no chão, tão terra e fogo, essa também sou eu, de cabelos molhados e alma lavada.

MARTHA MEDEIROS

27 DE FEVEREIRO DE 2021
LEANDRO KARNAL

A IDADE DA LÍNGUA

Você sabe que, mais do que rugas ou falta de cabelos, sua fala traz seu ano de nascimento à tona. Entenda fala em sentido amplo. Manda mensagens no celular e coloca acentos ou vírgulas? Escreve muito e abrevia pouco? Não usa figurinhas? Provavelmente, como eu, você viu, emocionado, diante de um televisor preto e branco, o homem chegar à Lua, em 1969.

Existem as coisas óbvias e que já observei por aqui: "Caiu a ficha? Vira o disco!"; tudo indica pouco colágeno. Usa expressões como "dondoca", "de lascar", "fulana é uma dondoca"? Nem precisa mostrar sua carteira de identidade, sei que ela é bem antiga. Claro, entre os "experientes" existem ainda abismos cronológicos. Há uma geração inteira entre "balacobaco" e "putz, grila". Distingamos gente de idade e aqueles de muita idade, claro. Meu pai chamava o blazer de "fatiota". Minha tia Shirley perguntava por que eu estava "borocoxô" quando me via triste. Minha orientadora soltava um "bicho" de quando em vez. São ecos de um português com outra marca de carbono 14.

Uns viram aparecer Woodstock já adultos, outros desejaram ir para lá na juventude e, por fim, alguns nunca ouviram falar do festival. Cada um com a sua "patota".

Não está entendendo "patavinas"? Não fique "grilado". O tema é "supimpa pra dedéu". Não é só a gíria ou a maneira de construir uma frase que envelhecem rápido.

Consideremos, também, como a gestualidade constitui, em si, documento histórico. A língua é viva. Os termos nascem, crescem e morrem. Estava ouvindo Machado enquanto fazia atividade física. O gênio usa muito a expressão "muita vez", que, apesar de corretíssima, deixamos de usar assim. Estou acostumado com "muitas vezes". Empaco no singular. Estranho. "A pedra no meio do caminho" mostra que a pavimentação da estrada da língua depende de usuários diferentes a cada momento. Antes de a Terra assumir sua atual forma plana, ela era bem esférica e rolava em alta velocidade. A língua acompanhava a velocidade da mudança.

Meu pai usava "senhorita, por obséquio", ao chegar a um balcão onde uma jovem atendia. O termo ficou politicamente incorreto. Expressões em francês são sinais de idade. A anglofonia invadiu e massacrou a população anterior da cidadela. Quem ainda suporia que uma casa duvidosa moralmente pudesse ser um estabelecimento de "rendez-vous"?

Vamos para o campo das moradias. Alguém ainda sonha com uma "casa geminada"? Oswald de Andrade teria, hoje, uma quitinete ou uma "garçonnière"? Alguém ainda compraria um "JK" como investimento imobiliário? Em que momento espaços minúsculos foram tomados pela elegante palavra "studio"? Se tudo for apertado e o teto subir um pouco, teremos um "loft"... A criatividade do mercado imobiliário é uma constante universal.

Quase todas as pessoas mais velhas acham que o uso da língua portuguesa está em decadência. Ouvia isso dos meus professores há 40 anos: "Os jovens de hoje falam de forma errada!". A reclamação é tão constante que podemos deduzir que o declínio tem origem no Paleolítico.

Eu comecei afirmando que a língua denunciava nossa idade. Na verdade, ela mostra uma visão de mundo específica de cada geração. Os jovens não falam "pior". As orações subordinadas desapareceram na fala e fenecem na escrita. O modo subjuntivo agoniza (convenhamos que já estava doente quando o estudamos). Se usarmos o subjuntivo na pessoa vós, criamos uma peça arqueológica exótica: "que vós partais"; "se vós partísseis", "quando vós partirdes". Três formas subjuntivas expressando incerteza gramatical e delírio prático de quem as emprega.

Há, no seu eu mais profundo, um desejo caetânico de sentir sua língua roçar a de Luís de Camões? Não se esqueça de que uma hipotética palestra de Camões no YouTube seria, na prática, incompreensível até para ouvidos versados em prosódias antigas. Quase sempre, tal regra valeria para perfumes do século 18, pratos do século 14 ou hábitos em geral de eras passadas. Tudo tem vida, e a estranheza é o abismo do tempo que marca gostos que, ingenuamente, imaginávamos naturais.

O português começou a falar ao mundo com um pequeno nobre, Paio Soares de Taveirós, em algum momento do século 12. Reclamando que nada possuía de dado por sua amada, por menor que fosse, o galego escreveu: "Pois eu, mia senhor, d?alfaia nunca de vós houve nem hei valia d?ua correia!".

A língua de Paio Soares de Taveirós seria compreendida, com alguma dificuldade, três séculos depois, por Gil Vicente. Entre o autor da Farsa de Inês Pereira e o nosso Machado de Assis, outro abismo de metamorfoses, séculos e silêncios. Os três citados não conseguiriam ler uma mensagem de WhatsApp, em 2021.

Então, afinal, me perguntam a querida leitora e o estimado leitor, qual a maldita diferença? As distâncias da mudança entre cada um eram cronologicamente amplas.

Hoje, provavelmente, você, caro leitor e queridíssima leitora, também não leria muitas mensagens eletrônicas de adolescentes. Entre você e sua filha sardenta, existe um abismo maior do que o verificado entre Gil Vicente e Machado. Há hiatos enormes entre falantes de eras diferentes, mesmo que a outra era tenha sido gerada por você e sua esposa... Console-se lendo mais clássicos, ninguém mais lhe entende... É preciso ter esperança ou um bom emoji.

LEANDRO KARNAL

27 DE FEVEREIRO DE 2021
FRANCISCO MARSHALL

WORDS, WORDS, WORDS

Essa foi a resposta do príncipe Hamlet, o herói angustiado, a Polônio, homem da corte, quando este lhe perguntou o que lia:"Palavras, palavras e mais palavras" (Shakespeare, Hamlet, 2.2.183). O príncipe-leitor queria confundir com ironia ao pai de Ofélia, que ora tramava contra ele; faz-se de louco, quando transborda de conhecimento sobre a trama macabra que golpeou a Dinamarca: o assassinato-regicídio de seu pai, o Rei Hamlet, por seu tio Claudius, com a cumplicidade de sua mãe, Gertrude, e sobre as ameaças que o cercam. "Há algo de podre no reino da Dinamarca" (1.4.67), diz Marcellus, amigo de Hamlet, ao parceiro Horatio, enquanto o príncipe trata com o fantasma de seu pai, o rei injustiçado, e todos sentem que lá, como cá, no Brasil-lisarB, há algo muito podre. O que será, que será?

É experiência terrível escrever com sinceridade no duro tempo em que vivemos. A pena-teclado é também radar sensível, e, tal como o fantasma de Hamlet, vêm ao estúdio assopros de assombros tenebrosos dos dramas em que ora soçobramos. Prouvera pudesse o humanista apenas dar vazão a seus e nossos sonhos e compartilhar só belas memórias e imagens, das pinturas mágicas das cavernas de Chauvet e do Piauí aos traços perfeitos de Picasso, do som de danças e fogueiras paleolíticas ao ribombar de tímpanos de Beethoven e Villa-Lobos, dos versos perfeitos de Sófocles aos cantos enigmáticos de Ezra Pound e à modernidade da pedra de Drummond, da ciência que vem das pirâmides e de Pitágoras ao pouso da sonda Perseverance em Marte (18/02/2021), das pulsões e memórias que geram o samba e a bossa nova, de tudo de potente que precisamos rememorar a cada geração, para fecundarmos o tempo com o melhor da humanidade. 

Mas como fazer-se de Poliana, a personagem de Eleanor H. Porter (1913), para quem o mundo era jogo da felicidade, ou emular Pangloss, do Cândido de Voltaire (1759), o otimista ingênuo? Pobre Poliana, nunca soube que o êxtase vem de nó e desenlace, e que a imagem do mundo é feita em chiaroscuro. É compreendendo o trágico da história que podemos avançar mais fortes.

Hoje, com a força de palavras e evidências, está tudo esclarecido, como esteve para Hamlet. A tragédia atual é fruto de uma farsa, a tomada do poder e o desmonte de uma nação, desde 2016, quando o Brasil assassinou sua alteza, a democracia, e a deixou insepulta. A ilusão dos manifestoches desfilou na Sapucaí (Paraíso do Tuiuti, 2018), a tramoia de juizeco, procurador palestreiro e cúmplices conspiradores do Estado e da imprensa veio a furo, e hoje a pátria flagelada mostra aonde poderia chegar o governo de um ignorante raivoso e despreparado: destruição, e montanhas de mortos sem vacina, que podem incluir você e os seus amanhã. A trama mórbida está evidenciada, escrita, lida, mas prevaricadores irresponsáveis, rapineiros (com traje ou grana verdes) e omissos covardes no atacado e no varejo ressoam Hamlet, e fazem nossas palavras parecerem apenas blablablá. É duro escrever em era trágica, em meio à farsa.

Palavras, ide erguer os vivos contra a morte, e dar-lhes a rosa redentora.

FRANCISCO MARSHALL

27 DE FEVEREIRO DE 2021
DRAUZIO VARELLA

CIGARRO ELETRÔNICO NA ADOLESCÊNCIA

A indústria acrescenta sabores ao cigarro para disfarçar o gosto de fumo queimado.

Mentol e as essências de baunilha, morango, maçã, chocolate e crème brûlée têm sido empregadas com o objetivo de tornar o cigarro mais palatável às crianças e aos adolescentes. Tentativas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de proibir essa prática criminosa têm fracassado diante do lobby milionário da indústria tabaqueira.

O Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, acaba de banir a adição dessas essências nos cigarros eletrônicos. Sim, eles usaram a mesma estratégia para arregimentar legiões de adolescentes dependentes da nicotina, inalada em dispositivos no formato de pen drives com baterias adaptadas para receber carga nos computadores da criançada.

A quantidade de nicotina presente nos reservatórios desses dispositivos é muito alta. Alguns deles chegam a conter o equivalente à de um maço inteiro.

O impacto dos cigarros eletrônicos foi tão grande no país que, finalmente, atraiu o interesse dos neurocientistas para estudar a ação a longo prazo da droga no cérebro em desenvolvimento.

No mês de fevereiro de 2020, no congresso anual da Academia Americana de Ciências, a neurocientista Marina Picciotto, da Universidade Yale, apresentou os resultados de estudos conduzidos em animais, uma vez que a moda dos cigarros eletrônicos em humanos é recente.

A nicotina tem a propriedade de ressaltar o prazer proporcionado pelos sabores adicionados ao vaporizador, dando origem a associações neurais que a tornam mais desejável. Pelo mesmo mecanismo, ela acentua a sensação de prazer provocada por outros estímulos agradáveis, como ouvir música, tomar café ou ter uma experiência sexual.

Camundongos adolescentes expostos aos vapores de nicotina desenvolvem alterações estruturais em seus neurônios, que modificam o tráfego de informações pelo tecido cerebral. Os camundongos se tornam mais sensíveis ao estresse e passam a responder a estímulos fracos que não chegam a provocar reação nos que não foram expostos à droga.

Assim, choques elétricos de baixíssima intensidade que não chegam a ser percebidos por camundongos não expostos provocam reações exageradas nos que foram expostos.

Comportamentos semelhantes foram descritos em crianças cujas mães fumaram durante a gravidez.

Além da nicotina, o líquido usado nos vaporizadores contém outras substâncias nocivas, algumas das quais são responsáveis pelas 64 mortes e as quase 3 mil internações hospitalares ocorridas nos Estados Unidos. Segundo o Center for Diseases Control (CDC) daquele país, a causa mais provável é a presença do óleo de vitamina E na solução contendo nicotina inalada.

A vitamina E não é o único produto encontrado em alguns dispositivos. Existem outros. Um deles, o polietileno glicol, é parente do dietileno glicol, que provocou a tragédia da cerveja em Minas Gerais.

Viciar crianças em nicotina é o negócio dessa indústria. Não é à toa que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o fumo uma doença pediátrica.

DRAUZIO VARELLA

27 DE FEVEREIRO DE 2021
MONJA COEN

DESPERTAR

É preciso despertar. Claro que você entende, afinal, se está lendo esta coluna é porque despertou. Será?

O despertar tem um som. Cada palavra tem um som e cada palavra pode ser entendida de forma diferente por cada um de nós em momentos diversos. Acorde. Desperte. Aprecie a vida. A palavra solta no papel solta um grito, um sussurro.

Um som que já não me pertence. Nem a você. Não tem pertencimento. Meus pensamentos não são meus nem seus nem de outras pessoas. Pensamentos pensam pensamentos que passam, flue m.

Fica uma leve memória.

Despertar Inspirado - livro do professor Clóvis de Barros Filho com pequenos comentários meus. Por muitas semanas, todas as manhãs, ao terminar a sexta badalada do sino do Mosteiro de São Bento, o professor Clóvis nos falava de gregos e troianos, de passado no presente e de futuro no agora. Riquíssimo, inspirador. Escrevi algumas poucas palavras para um amigo, que decidiu incluir em seu livro. Está por aí. Da editora gaúcha Citadel.

Pode nos ajudar a despertar ins pirada mente. Fui escrevendo livros durante esta pandemia, e o último a ser publicado, depois de Vida-Morte, da Bella Editora (como separar uma da outra?), é o que estou hoje oferecendo ao mundo: O Bom Contágio, da editora Record (selo Best Seller).

Fui me inspirando e despertando: o livro Vírus (edição independente) saiu logo depois do Ponto de Virada (Ed. Planeta). Este ponto deste instante, neste sábado. Aqui e agora é onde podemos virar o jogo.

Isolamento. Contágio perigoso, danoso, que nos leva a Repensar a Existência - outro livro, em parceria com Dom Anselm Grün, que a editora Vozes vai lançar brevemente. Depois do Bom Contágio, o que vai chegar em abril é a Cura, também da Planeta. Escrevi, pensei e soltei ao vento da impermanência.

Cada livro, cada palavra, cada suspiro ofereço a quem se interesse por amor, alegria, o bem, sabedoria. Construir a paz através da paciência, compaixão e arrependimento, equidade e doação, vida ética - preceitos, silêncio e fala correta, investigação dos fenômenos, meio de vida benéfico e amor incondicional. Topa essa? Contagiar o mundo com o bem?

Ainda é tempo: acorda, tenha um Despertar Inspirado, perceba o Ponto de Virada, cuidado com o Vírus, reconheça Vida-Morte, envolva-se com O Bom Contágio, dê um novo "significado à existência", encontre a Cura e depois só Poesia do Allan, com meus comentários, em construção pela editora Sextante. Para completar, que tal um Quatro por Quatro, da editora Papirus, no qual os professores Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho interagem entre si e dialogam comigo?

Pandemia é tempo de leitura e de escrever. Haverá mais surpresas e novidades, em estudos.

Podemos juntos construir uma cultura de respeito e dignidade, usando máscaras reforçadas, mantendo o distanciamento social, lavando as mãos e os pés, as roupas e as compras, purificando o mundo com doação, solidariedade, ternura e muita saudade.

Fique em casa. Vacinação salvadora. Aceite e facilite a imunização de toda a humanidade. Depende de você e de todos nós. Juntos podemos e vamos curar o mundo.

Mãos em prece. 

MONJA COEN

27 DE FEVEREIRO DE 2021
DAVID COIMBRA

Um virgem de 32 anos de idade

Não demora, chega outro outono, e nós estaremos ainda sitiados pelo corona. O que fazer? Uns, pão. Muita gente aprendeu a fazer pão no confinamento. Outros leem mais, veem mais filmes e séries, e tem também quem não canse de se entediar, afundado no sofá, jogando Candy Crush.

Eu, aqui, no meu tugúrio, há algo que faço diferente, nestes tempos pandêmicos. Não meus hábitos de leitura, esses continuam os mesmos: leio dois ou três livros simultaneamente, cada um de um gênero. Em geral, um de literatura, um de história e uma biografia. De repente, engato num, deixo os outros choramingando no criado-mudo e vou até o fim do escolhido com sofreguidão, especialmente se é um romance policial.

Sei que haverá quem me julgue mal por ler romance policial. Sei que narizes intelectuais ainda se retorcem de preconceito contra esse gênero. O grande Raymond Chandler morreu amargurado por causa disso. No tempo de Chandler, dizia-se que era "literatura noir", "negra", em francês, muito mais chique do que "romance policial".

Chandler, você sabe, foi o criador de um dos detetives mais carismáticos da história da literatura, Phillip Marlowe. Todos que liam Chandler queriam ser Marlowe, eu, inclusive, mas quem acabou sendo foi Humphrey Bogart, o Marlowe perfeito - cínico e humano ao mesmo tempo. Em todos os seus papéis, Bogart foi Marlowe, até no seu mais célebre, em Casablanca. Logo, se você quisesse ser de fato Marlowe, teria de ser também Bogart. O que me fez desistir de ser qualquer outra coisa que não eu próprio, algo que não tem muita graça.

Já Chandler foi, de certa forma, um pouco Marlowe. Ou Marlowe foi um pouco Chandler, faz mais sentido. Chandler era um homem atormentado. Tinha problemas em duas áreas fundamentais da vida: bebidas e mulheres. Com bebidas, ele as bebia demais. Com mulheres, ele as tinha de menos. Até os 32 anos, Chandler foi virgem como uma noviça. Foi, digamos, "deflorado" por Cissy, a melhor amiga de sua mãe. Cissy era 18 anos mais velha do que ele, gostava de sair à noite, dançar, beber e namorar. Namoraram por quatro anos, até a mãe de Chandler, que não aceitava o relacionamento, morrer. Aí, casaram-se.

Chandler era feliz no matrimônio, mas continuou bebendo e fazendo coisas de bêbado, pelo que foi demitido do bom emprego que ocupava. Para conseguir algum, começou a escrever histórias de detetive, e então se consagrou. Você só está lendo sobre Chandler agora porque ele perdeu o emprego devido ao alcoolismo. Um mal e uma perda o empurraram para a imortalidade. A vida é mesmo imprevisível.

Mas estou escrevendo tanto sobre Chandler para dizer que gosto de literatura noir. E cinema noir também. E, por que não?, séries noir. Assim, chego aonde queria chegar. Desde o começo, discorrendo a respeito do outono que virá, queria enaltecer um personagem da sociedade gaúcha que, se você não conhece, deveria. É um cara que tem uma assinatura moderna: Magrolima, assim, tudo junto.

O Magrolima trabalha na Atlântida, participa do Pretinho Básico e de um dos melhores podcasts do sul do mundo, o "Era uma vez no Oeste", com o Potter e o Daniel Scola. Trata-se de uma cabeça privilegiada, capaz de estocar um volume de informação que só o Google emula. Mas o melhor é que ele sabe o que fazer com a informação que guarda. O Magrolima é perspicaz e sensível, o que lhe dá bom gosto e capacidade de saber o que é importante e o que é interessante.

Pois bem. Munido de todos esses predicados, o Magrolima recomendou uma série que tem tornado emocionantes estes meus dias de final de verão encoronado. Babylon Berlin, o título. Está num cantinho da Globoplay e é um diamante de ficção noir. Passa-se na Alemanha de 1929, uma das épocas mais agitadas da História. É alemã e isso é um adjetivo, não um substantivo. Porque a história é narrada com originalidade tipicamente germânica, tanto na forma quanto no conteúdo, com personagens envolventes e uma música que não me sai mais da cabeça.

Cara, como sou grato ao Magrolima por me indicar essa série! Só podia ser ele. O Magrolima sabe das coisas. Assista a essa série que ele indica. Ouça o Magrolima, confinado leitor. Você se tornará uma pessoa melhor.

DAVID COIMBRA

27 DE FEVEREIRO DE 2021
FLAVIO TAVARES

O CAOS NO CAOS

A pandemia transformou o mundo numa ilha cercada de caos por todos os lados. E, nela, nós, humanos, a cada dia temos menos terra firme. A continuar assim, em meses ou anos, não teremos onde pisar. Escrevo "anos" porque nada sabemos sobre o fim da peste, tal qual quase nada sabemos do seu início.

O aumento dos casos de covid-19 em Porto Alegre e em todo o Estado (ou pelo país inteiro) é aterrador por não existir solução a curto prazo. O contágio se alastra e cada um de nós deve agir, não só o poder público. O governador e os prefeitos podem servir de modelo a copiar ou evitar, mas - além da vacina - o cuidado maior está em nossos pequenos gestos, como usar máscaras, lavar as mãos e nunca aglomerar-se.

Basta já a desmobilização da sociedade provocada pelo presidente da República e seu ministro da Saúde, que desdenharam a peste e jamais a enfrentaram. Em vez de nos dividirem na errática burocracia das cores, governador e prefeitos devem evitar que se repita, aqui, o horror de Manaus, onde se aguardava a morte de algum infectado para outro doente ocupar seu lugar num leito de UTI, tentando sobreviver.

Toda morte é brutal, mas, quando alguém próximo nos deixa, a dor se transforma em abismo. Assim me senti com a morte de Ludwig Buckup, um dos nossos raros cientistas verdadeiros, dedicado à zoologia e à botânica e aguerrido protetor do bioma pampa e da natureza. Fomos contemporâneos no curso de Biologia da UFRGS, que não concluí, mas onde conheci sua dedicação à ciência. Agora, a covid-19 o matou, mostrando que o contágio é um assassino que nos espreita em qualquer lugar.

A grande tarefa é evitar que o caos engendre ainda mais caos e crie pânico.

O caos maior, porém, é não perceber o caos ou fantasiá-lo de "inocente" para estendê-lo à administração pública. Ou - indago - não é isto que Jair Bolsonaro anuncia ao prometer atenuar o rigor da lei de improbidade administrativa que, hoje, leva à prisão funcionários corruptos?

O presidente da República alega que a lei atual inibe a atividade dos prefeitos, como se a improbidade ou o roubo encoberto fossem virtudes, nunca um malefício em si.

As grotescas ideias que o deputado bolsonarista Daniel Silveira vomitou pelas tais "redes sociais" mostram a estupidez do caos dominando a política. Mas, em vez de tentar extirpá-la, a Câmara dos Deputados quer mudar a Constituição para impedir que os parlamentares possam ser presos pelo Supremo Tribunal, como agora ocorreu.

Não é o caos no caos?

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

27 DE FEVEREIRO DE 2021
ARTIGOS

TODOS SOMOS RESPONSÁVEIS

É insano o argumento de que os governos culpam as pessoas pela contaminação em razão da covid-19. É preciso muito desconhecimento das informações públicas, ainda mais no Rio Grande do Sul, onde se prima pela transparência, para pensar que o agente público transfere responsabilidade, até porque, no assunto pandemia, a responsabilidade é de todos.

O Estado agiu e age para enfrentar uma doença de fácil transmissão, com ciclos de aumento exponencial de casos e percentual considerável de pacientes demandando UTIs, o que coloca a rede de saúde em risco permanente de colapso. O Rio Grande do Sul se preparou de inúmeras maneiras. Criou um sistema que acompanha diariamente a estrutura hospitalar e, ainda antes do primeiro caso, definiu um plano de contingência em fevereiro de 2020.

Para proteger vidas e mitigar impactos na economia, desenvolvemos uma estratégia mista, modulada e pactuada, equilibrando a prioridade da vida com a retomada econômica, com o modelo de distanciamento controlado com base no histórico do comportamento do vírus e mediante monitoramento de indicadores para a tomada de decisão. É uma ferramenta que aplica medidas conforme o comportamento da doença no território, um mecanismo versátil, ponderado e coletivo.

O governo investiu na ampliação da capacidade de testagem e qualificou a rede de atendimento. Durante 2020, o governo ampliou a capacidade hospitalar em UTI em cerca de 122% e, neste momento, trabalha em conjunto com a rede hospitalar e os municípios para abrir mais 250 leitos para a população. Quanto às vacinas, embora não haja disponibilidade no mercado, o governo articula com empresa e já formalizou interesse na complementação do Programa Nacional de Imunizações.

A soma de todas as ações permitiu a redução de danos, não a eliminação completa dos prejuízos. Foi um longo aprendizado, que se materializou em um esforço diário de técnicos do governo e colaboradores externos. Neste período, o governo cumpriu o seu papel fundamental, o de estar ao lado das pessoas, de uma maneira absolutamente empática.


27 DE FEVEREIRO DE 2021
OPINIÃO DA RBS

PELA CONCILIAÇÃO

Grande parte da efetividade da decisão do governador Eduardo Leite de colocar todo o Rio Grande do Sul sob a bandeira preta por nove dias, deste sábado até o dia 7, vai depender do grau de adesão de lideranças locais, como os prefeitos. Mesmo acertado, um canetaço de cima para baixo não bastará se, nos municípios, vozes dissonantes forem compreendidas pelas comunidades como a sinalização de que os protocolos não precisam ser rigidamente cumpridos. Mais do que não contestar a diretriz do Piratini, tomada a partir da orientação do Comitê Científico do Estado e dos números assustadores da covid-19, é preciso engajamento. Caso contrário, o vírus continuará vencendo, e a quantidade de mortes, se elevando a cada dia, com o colapso do sistema de saúde.

Um caso exemplar de desarmonia é o que envolve Leite e o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo. Se o que está em jogo são vidas, prioridade absoluta, seria indispensável que o governador e o gestor da maior cidade do Estado aparassem arestas e começassem a agir no mesmo sentido. O vírus é um agente infeccioso que conta com a circulação de pessoas para se disseminar. Não é mais possível tergiversar com medidas cosméticas. É chegada a hora de lançar mão de todos os meios possíveis para minimizar deslocamentos desnecessários nas cidades. Esta é uma questão, hoje, de vida ou morte. O apelo vale para todos os demais prefeitos que, mesmo legitimamente contrariados com as restrições temporárias das atividades, precisam compreender a gravidade do momento e o caos logo ali à frente se nada de sério for feito para diminuir os contágios. Por isso, é adequada a decisão do Piratini de suspender a cogestão, evitando flexibilizações e uniformizando medidas em todo o território gaúcho.

O Brasil conta com um presidente que, por exemplo, é incapaz de compreender ou aceitar a importância das máscaras para evitar as contaminações. Se não é possível ter um alinhamento entre os três níveis dos entes federados, que ao menos os municípios gaúchos se somem aos esforços do governo do Estado, que teve de tomar uma decisão dura, que terá reflexos na economia mas neste momento é inevitável. Basta observar o crescimento assombroso do número de novos casos, internações e buscas por unidades de tratamento intensivo (UTIs). Se há agonizantes filas para o ingresso nas UTIs, médicos já têm de escolher quem poderá ter chances de viver e quem será deixado à própria sorte e a tendência é de piora do quadro, é irresponsabilidade ficar de braços cruzados. O julgamento da História tende a ser implacável.

Ampliar leitos de UTI é importante, mas são reiterados os alertas de que não será uma medida suficiente, tanto pela velocidade dos contágios quanto pela falta de equipamentos e recursos humanos. Os dados mais recentes, inclusive, mostram que 60% dos pacientes internados nas UTIs acabam não resistindo. Para vencer esta batalha, portanto, é vital evitar que mais pessoas precisem de tratamento intensivo. A vacinação, grande arma para derrotar a pandemia, é demasiadamente lenta devido à falta de doses. No curto prazo, infelizmente, não é possível contar com a imunização, pela baixa cobertura. O distanciamento social, portanto, segue como a arma mais eficaz neste momento. Passou a hora de, ao menos o Rio Grande do Sul, deixar de lado diferenças, agir com a ciência como guia e unificar um discurso claro à população, contando com a compreensão de lideranças de todas as áreas. Neste momento, toda a energia deve ser direcionada para salvar o maior número possível de vidas.


27 DE FEVEREIRO DE 2021
CHAMOU ATENÇÃO

Terraço é "Espaço de Deus"

É no terraço do Edifício Santa Tecla que famílias chegadas do Interior ou de outros Estados em busca de atendimento na Santa Casa recebem acolhimento com cama confortável, cozinha, sala e banheiro em Porto Alegre. O endereço - na Praça Dom Feliciano, no Centro - se tornou referência em ajuda a partir da ação da proprietária da cobertura, a engenheira Isabel Mânica Ruas, 54 anos. Em 2017, ela transformou o apartamento anexo, que antigamente era local para moradia de empregados, no que chama de "Espaço de Deus".

Isabel ampliou parte da área para ajudar pessoas que chegam sem conhecer ninguém e sem condições financeiras para se manter em hotéis enquanto familiares passam por acompanhamento no hospital. Tudo nos cerca de 30 metros quadrados é oferecido por ela de graça. Muitos dos auxiliados são pais e mães de crianças que precisam de transplante de órgãos no Hospital Santo Antônio.

Segundo ela, o apartamento sempre foi referência para familiares e amigos que vinham para Porto Alegre, especialmente por ser na frente da Santa Casa. Mas foi em uma ação da igreja que frequenta, a Igreja Mundial do Poder de Deus, visitando famílias em hospitais, que ela deu o pontapé inicial. Percebeu que muitos ficavam em acomodações de más condições ou dormindo nos corredores e bancos do hospital.

Ao longo dos últimos anos, ela calcula ter dado abrigo para mais de cem pessoas - entre pais e crianças -, inclusive moradores de Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo, Pará e até da Argentina:

- Todas as histórias me emocionam. São histórias diferentes, é a vida de cada um. Estamos lidando com vidas.

VITOR ROSA


27 DE FEVEREIRO DE 2021
J.R. GUZZO

Licença para trabalhar

Houve um tempo neste país em que se perseguia o "subversivo", considerado então uma desgraça pior que a saúva - ou o Brasil acabava com eles, ou eles acabavam com o Brasil. Hoje, para a esquerda em geral, para a classe médiaalta urbana que reza pelo "verde" e, sobretudo, para milhares de burocratas que habitam a máquina pública, "aparelhada" até o talo nos últimos anos, o inimigo público número 1 do Brasil e do povo brasileiro são o agricultor e o pecuarista.

O agronegócio, neste mundo, não é o setor que mais dá certo em toda a economia brasileira; o único, talvez, que vai realmente bem. Não é o responsável direto por pouco mais de US$ 100 bilhões em exportações em 2020 - isso mesmo, US$ 100 bilhões, sem os quais o país não teria como comprar um prego no Exterior. Não é um criador essencial de empregos, de renda e de impostos. Não é a área mais competitiva, moderna e tecnológica do universo econômico nacional. Nada disso: o agronegócio, no entendimento dos citados acima, é uma doença a ser exterminada a qualquer custo.

O agronegócio, segundo seus inimigos, está transformando o país numa "monocultura" - um "fazendão", dizem os intelectuais da cidade, que só serve para produzir soja e espalhar "agrotóxicos". Está tornando o Brasil "dependente da China". Está acabando com a "floresta amazônica" - mesmo quando as safras são colhidas no Paraná ou no Rio Grande do Sul. Está levando as pessoas, aqui e fora daqui, a comerem mais carne. Está matando as abelhas - enfim, é uma desgraça só.

O último ataque é particularmente estúpido - trata-se de um negócio chamado "zoneamento econômico e ecológico" do Mato Grosso. É uma aberração através da qual os ditadorezinhos ambientalistas que vivem dos impostos pagos por você estão tentando deixar aleijada uma região inteira do Estado que é hoje o principal produtor de grãos do Brasil. Esse "zoneamento" declara que o Vale do Araguaia, uma região com cerca de 20 municípios e 4 milhões de hectares, é uma "zona húmida" - e em zona húmida, segundo propõem os autores da ideia, ninguém pode mexer.

Segundo o "zoneamento" proposto, vai ficar proibido em toda a região, que tem como polo central o município de São Félix, o plantio de soja, milho ou qualquer lavoura intensiva. Vai ficar proibido o cultivo de pastagens para criação de gado. Vai ficar proibida, até mesmo, a criação de peixes em tanques de água - uma atividade de subsistência para assentados da reforma agrária e proprietários de áreas mínimas de terra. Só será permitida a pesca natural, nos rios - provavelmente sob a fiscalização, controle e permissão dos criadores do "zoneamento" e, quem sabe, do Ministério Público do "Meio Ambiente". É uma alucinação.

Um país está com problemas sérios quando quem trabalha no campo, e está dando uma contribuição vital à sociedade, precisa pedir licença para fazer o seu trabalho a um bando de burocratas que não foram eleitos por ninguém.

J.R. GUZZO*


27 DE FEVEREIRO DE 2021
INFORME ESPECIAL

Izquierdo, o homem que falava direito

O professor Ivan Izquierdo sempre é citado quando explico a diferença entre falar difícil e falar bem. Generoso, me concedeu uma dezena de entrevistas no Estúdio 36, programa da TVCOM que teve Lauro Quadros como pioneiro e esse que vos escreve como sucessor, durante quase uma década.

Izquierdo, que morreu em fevereiro, enquanto eu estava em férias, era um dos maiores especialistas do mundo em memória. Mas quando se dirigia a um público leigo, sua maior preocupação era ser entendido. Conseguia, em nome da causa, simplificar ao máximo um tema extremamente complexo. Usava palavras simples e comparações conectadas com a vida cotidiana das pessoas. 

Era encantador ver como um cientista citado no mundo inteiro, argentino de nascimento, fluía em português de um jeito preciso e acessível. Peço licença para uma pequena digressão que me traz boas lembranças. Mais de uma vez comecei nossas conversas, ao vivo, na tevê, como a mesma pergunta: "Sobre que o senhor veio falar aqui mesmo, que eu esqueci?". Ele ria, mais por educação do que pela improvável graça da minha tentativa de piada com o tema ao qual dedicou a vida.

Simplificar é complicado, porque exige o conhecimento total e profundo de um tema. Falar difícil é para qualquer um. Na maioria das vezes, é apenas um exercício de poder e uma ostentação de status. Por medo ou insegurança, boa parte dos especialistas pronunciaria, pomposamente: "O balão de couro branco atravessou a linha que une os dois postes configurando a incidência de um tento". Ivan Izquierdo diria: "É gol". E foram muitos, disso nos lembramos bem.

TULIO MILMAN

domingo, 21 de fevereiro de 2021


20 DE FEVEREIRO DE 2021
COM A PALAVRA

COM A PALAVRA

MARIO SERGIO CORTELLA

filósofo, 66 anos Escritor e educador nascido em Londrina (PR), é um dos principais nomes do pensamento contemporâneo no país

Autor de 45 livros, o paranaense Mario Sergio Cortella, que completará 67 anos em 5 de março, é hoje uma das atuais referências no Brasil no campo da filosofia. Professor, doutor em Educação, escritor, palestrante e comentarista de rádio e televisão, o midiático filósofo faz questão de salientar que está em distanciamento social desde 16 de março de 2020, em São Paulo, onde mora. Um dos momentos de maior felicidade nesse período, conta, foi receber a notícia, por telefone, enquanto estava ao vivo em uma rádio, de que a mãe, a professora aposentada Emilia, 91 anos, havia recebido a primeira dose da vacina contra a covid-19, em 9 de fevereiro. Ela mora a uma quadra da casa do filho, e os dois vinham se comunicando, na maior parte do tempo, pela janela. Nesta entrevista, citando vários artistas e pensadores gaúchos, Cortella analisa o primeiro ano da pandemia de coronavírus, fala sobre a vida, a morte, as lições que o período já trouxe e deixa um conselho para o país nas próximas eleições.

NO SEU LIVRO VIVER EM PAZ PARA MORRER EM PAZ (2017), O SENHOR COMENTA QUE O HOMEM NÃO TEME O QUE VÊ, MAS O QUE NÃO VÊ. NO CASO DA PANDEMIA, ACREDITA QUE ISSO SE CONFIRMA, APESAR DE PESSOAS CONTINUAREM NEGANDO SUA EXISTÊNCIA?

O impacto da pandemia no início de 2020, adensando para pior no decorrer do ano passado, trouxe uma primeira circunstância que lembra o título de um álbum da Adriana Calcanhotto: Nada Ficou no Lugar. O estremecimento do nosso cotidiano fez com que houvesse duas atitudes extremamente perigosas quando se juntam: uma certa descrença na doença, que afinal não podia ser notada diretamente, é "invisível", e a tolice de supor que somos invulneráveis. O vírus nem é considerado vivo, mas é absolutamente danoso. O vírus não tem ética, isto é, não tem critérios de escolha. Ele não decide para onde vai. Isso está na natureza dele. 

Quem pode decidir e escolher o que fazer diante dele somos nós. Nós tememos muito aquilo que não vemos, mas, nesse caso, ficamos desatentos aos seus sinais, por mais que haja alertas muito expressivos. É que nossa possibilidade de mudança, de alteração, é um pouco mais complexa, como diz o gaúcho Apparício Torelly, o Barão de Itararé: "Tudo seria mais fácil se não fossem as dificuldades". Algumas pessoas ainda criam a fantasia de que não há dificuldade, de que se trata de invenção. Isso não só retarda a possibilidade de enfrentamento como agrega periculosidade ao vírus. Se o vírus raciocinasse, não imaginaria que seríamos capazes de tantos descuidos e que, assim, a natureza dele se cumpriria com tanta facilidade.

HAVERÁ UMA MUDANÇA ÉTICA PÓS-CORONAVÍRUS, COM AS PESSOAS PREOCUPANDO-SE MAIS OU MENOS COM O COLETIVO?

Uma parte das pessoas alterará sua conduta. Mas essa parte não é tão expressiva. Se olharmos para a trajetória anterior da humanidade, veremos que momentos graves que gerariam, em princípio, uma mudança de conduta para melhor, não trouxeram esse resultado de forma mais imediata. Assim que a tempestade acalma, muitos saem novamente supondo que não haverá tanto efeito posterior da tempestade e que ela não voltará. Esse tipo de crença em algo que não tem sentido acaba gerando em vários momentos da história humana uma dificuldade de trazer uma memória mais imediata. Assim que há uma diminuição do sufoco, parte das pessoas relaxa em larga escala e, portanto, se distrai e se torna mais insegura. 

Há pessoas que aproveitarão a circunstância daquilo que tivemos e temos de viver, que é muito difícil, que é agonizante e agoniante, e tirarão lições positivas. Mas uma grande parte permanecerá no mesmo modo de ação no dia a dia. Pessoas que eram tolas antes, tolas permaneceram durante a pandemia e é provável que tolas continuarão. Charles Darwin, ao construir sua concepção em relação ao modo em que as espécies e a vida progridem, no século 19, lembrou algo que a gente nem sempre interpreta de modo correto. Darwin nunca usou a palavra "evolução" no sentido de melhoria, mas de mudança. Que, aliás, é o sentido original no grego antigo. A palavra evolução não é positiva ou negativa por si mesma. Tampouco desenvolvimento e progresso. Encrenca também progride, corrupção também se desenvolve. E, portanto, dizer que nós estamos evoluindo é uma crença meio mística numa positividade. Quando um de nós falece, o médico anota no prontuário "evoluiu para óbito". Nesse sentido, a humanidade pode estar se, tolas e tolos continuarmos em várias situações, evoluindo para óbito. Alguém diria: "Mas isso não é nossa escolha". Sim, é nossa escolha. Quem não tem escolha é o vírus. Nós temos.

ALGUNS PENSADORES LEMBRAM QUE A HUMANIDADE PASSOU POR OUTROS TRAUMAS COLETIVOS E NÃO EVOLUIU. OUTROS, MAIS ESPERANÇOSOS, ACREDITAM QUE VAMOS SAIR DESSA MELHORES. EM QUE TIPO DE CORRENTE O SENHOR SE ENQUADRA, ENTRE OS OTIMISTAS OU PESSIMISTAS?

Não sou triunfalista a ponto de imaginar que sairemos redimidas e redimidos, que teremos uma conversão ao mundo da bondade e da solidariedade. Mas também não sou catastrofista para supor que não haverá alterações de conduta de várias pessoas e de alguns governos que forem inteligentes, que aprenderão com essa lição. Pelo meio mais difícil, que é o dano, mas aprenderão. A humanidade é capaz, em algumas circunstâncias, de dar um passo além. Há mais de 70 anos que a gente busca negar o horror nazista. Aquela foi uma lição. Quem passou por processos como genocídios diz o tempo todo que não podemos esquecer, que não podemos deixar de lado aquilo que foi tão horroroso. O mesmo vale para outras situações na história humana. A gente conseguiu dar um passo adiante. O grande Ivan Izquierdo (1937-2021) produziu uma reflexão muito forte ao falar do papel do esquecimento na preservação da saúde mental: "Existe um esquecimento que é ruim, que traz maldade, porque se acaba correndo o risco de, colocando na penumbra o que já foi negativo, trazê-lo de volta num outro momento. Mas existe um esquecimento que é necessário". Temos de sair da pandemia, temos de ter um controle maior sobre as circunstâncias de vida coletiva e não podemos levar na memória de modo contínuo tudo o que vivenciamos porque, do contrário, não damos o próximo passo. Por isso, há coisas que precisam ser trancadas num baú de memórias, mas há outras que a gente não pode esquecer. Na história humana, há momentos em que o aprendizado foi mais elevado do que o esquecimento proposital marcado pelo fingimento de que as coisas não tinham acontecido.

O SENHOR, ENTÃO, FICA EM UM MEIO TERMO ENTRE O OTIMISTA E O PESSIMISTA?

Não. Sou um otimista crítico. Sou aquela pessoa que enxerga a possibilidade de fazermos o que é melhor, mas não acha que isso será automático, que virá conosco apenas aguardando as coisas acontecerem. Nesse sentido, ao contrário do que escreveu Lupicínio Rodrigues, não acho que "a felicidade foi-se embora". A gente tem de colocar um ponto de interrogação e sermos capazes de reescrever e reinventar nosso trajeto. O otimismo crítico é aquele da esperança ativa, de quem se junta e vai buscar o melhor. Não é o da esperança que aguarda. Uma das frases que eu menos aceito é: "Por favor, alguém tem que fazer alguma coisa". Essa expressão deve ser colocada como uma pergunta espelhada. De modo que, embora ninguém consiga fazer tudo, ninguém é incapaz de fazer algo para que as coisas melhorem.

HÁ PESQUISAS E PESQUISADORES ALERTANDO PARA UM AUMENTO DOS PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL DURANTE A PANDEMIA. MUITA GENTE ESTÁ COM DIFICULDADE DE PASSAR PELO PERÍODO COM AS RESTRIÇÕES, O ISOLAMENTO, A SENSAÇÃO DE MEDO... JÁ TEM GENTE FALANDO DE UMA OUTRA EPIDEMIA: DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO. SERÁ QUE, COMO SOCIEDADE, AGORA VAMOS FINALMENTE LEVAR MAIS A SÉRIO ESSE TIPO DE DOENÇA?

Agora ainda não conseguimos olhar melhor para isso. Porque hoje o perigo do vírus é muito expressivo. As situações de transtornos depressivos de maneira geral ainda não são tão notadas porque ficam dispersas em meio a essa outra agrura que estamos vivendo. Mas os lutos que serão vividos, que não só são lutos em relação a perdas de pessoas, mas a todas as perdas, de emprego, da condição econômica, do convívio, dos projetos, do tempo em isolamento, sem dúvida, deixarão cicatrizes. Não podemos fingir que isso não virá à tona. O surto possível de transtornos depressivos tem uma possibilidade muito grande de eclodir. E aí, nas várias instâncias de cuidados sociais, é preciso que não se subestime a condição depressiva que algumas pessoas terão. Será necessário entender que talvez não estejamos diante apenas de demonstrações de fraqueza, mas do resultado de uma série de circunstâncias que são funcionais, no campo da mente, que são orgânicas, no campo químico, e que não podem ser desprezadas. Então, se agora a emergência é cuidar para evitar a contaminação, o passo seguinte no campo da saúde pública e das políticas em geral será lidar com a saúde mental.

COMO PODEMOS SUPERAR AS MUDANÇAS TRAZIDAS PELA PANDEMIA E ENTENDER QUE AQUELA VIDA DE ANTES JÁ NÃO É MAIS A MESMA? ELA PODERÁ VOLTAR A SER?

A vida nunca é do mesmo modo. Ela é de modos diversos. Mas a aceleração das mudanças foi muito impulsionada neste momento. De 16 de março de 2020 até a data de agora estou em isolamento social quase completo. Tive de me reorganizar e mesmo reinventar o meu trabalho para que pudesse fazê-lo de modo remoto, para que minha produção e convivência com as pessoas com as quais eu trabalho se desse de outra maneira. Sou professor há 46 anos. Imagine o quanto que tive de alterar o modo de ensinar, a convivência com as novas gerações, a chegada de tecnologias. Sempre mudei, mas nunca tive de mudar tanto num tempo tão comprimido. Por isso, a nossa dificuldade maior quando do apaziguamento pandêmico será nos darmos conta de algo que não foi digerido direito. Nós não deglutimos, não conseguimos refletir tanto sobre a vida que levávamos e que passamos a levar. Em março, lanço um livro novo que busca também analisar essas questões todas nossas, mas especificamente ligadas ao mundo do trabalho. Um livro inspirado no estupendo paraibano Geraldo Vandré que se chama Quem Sabe Faz a Hora - Competências Certas em Tempos Incertos. A única maneira de lidarmos com tudo o que está acontecendo de modo que não seja traumático é sermos capazes de imaginar que, em todos os nossos momentos anteriores da vida, ultrapassamos fases não tão densas e danosas como esta, mas conseguimos fazê-lo. Afinal, não nascemos prontos. Vamos nos construindo dentro da nossa trajetória. Os idosos têm uma expressão que nos ajuda, serve para meditarmos, quando diziam que "quando não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe", ou "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe". A vida é um processo, e processo é mudança. Teremos de reaprender, refazer, recriar, mas faremos isso. Vou citar um exemplo muito pessoal. Minha mãe, Emília, está a um quarteirão e meio do meu apartamento. Ela fará 92 anos, e foi vacinada em 9 de fevereiro. Ela nasceu em 1929, ano da grande crise econômica, quando meus avós espanhóis, que estavam no Brasil desde o final do século 19, quebraram porque eram da área do comércio. Minha mãe nasceu uma década depois de a gripe espanhola levar 50 milhões de vidas, 10 anos depois do fim Primeira Guerra Mundial, que levou vários parentes. Quando minha mãe tinha 10 anos, estourou a Segunda Guerra, na qual morreram 55 milhões de pessoas. E depois se viveu o terror de uma guerra nuclear que poderia extinguir a humanidade de modo conclusivo. Quando ela já era mãe e quase avó, tivemos a crise do petróleo, a inflação estupenda no Brasil, e momentos em que o terrorismo se deu de vários modos. Agora, com ela já bisavó, vivemos um mundo de violência e brutalidade. Quando falo para ela "mãe, tá difícil", ela diz assim: "Cê não viu nada!?. É um sinal de alento nestes tempos difíceis.

O SENHOR COSTUMA CITAR O PERSONAGEM RIOBALDO, DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, PARA QUEM VIVER É MUITO PERIGOSO. É MESMO?

Riobaldo diz isso várias vezes em Grande Sertão: Veredas, e temos de lembrar que Guimarães Rosa era médico. Portanto, ele estaria, se vivo estivesse, provavelmente envolvido num trabalho de busca de proteger a vida. Das várias vezes em que Riobaldo diz, numa delas é um pouco mais inclemente porque ele diz que "viver é muito perigoso, sempre acaba em morte". Nesse momento, ele está dando um sinal que serve para o nosso tempo. A consciência da nossa mortalidade ficou muito mais evidente na pandemia. Algumas pessoas esquecem de que a morte não é uma ameaça, mas uma advertência de que não somos infinitos. E que, portanto, nós temos de cuidar para que a vida que temos, enquanto a temos, não seja banal, inútil, fútil, descartável. De modo algum, entendo a morte como ameaça. Ela é apenas uma condição de qualquer ser vivo. Nesse sentido, é preciso entender que esse perigo não significa uma impossibilidade de enfrentá-lo. Viver é perigoso, mas enfrentar o perigo é preciso. Como lembra Mario Quintana: "Um dia... Pronto! Me acabo. Pois seja o que tem de ser. Morrer: que me importa? O diabo é deixar de viver". E deixar de viver não é algo que aconteça quando se morre. Deixa-se de viver quando se vive de modo banal, egoísta e tolo. Nesse sentido, insisto: viver é muito perigoso, mas a gente faz aquilo que deseja e aquilo que pode para que este perigo seja enfrentado, e a vida, enquanto der, não cesse.

QUE LIÇÕES DEVEMOS TIRAR DESSE PERÍODO? É POSSÍVEL TIRÁ-LAS AINDA EM MEIO À DOR E À TRISTEZA?

Podemos tirar três grandes lições deste período. Em filosofia, a gente costuma dizer que quem menos sabe da água é o peixe. Estamos, ainda, muito mergulhados neste momento para entendê-lo. Então, ainda não dá para olharmos para todas as lições. Mas três são nítidas. A primeira é que precisamos ter cautela com a nossa arrogância enquanto humanidade. É preciso mais humildade. Não somos capazes de todas as coisas, nem com a velocidade que a gente imagina. Nações altamente poderosas, com a capacidade destrutiva de fazer com que o planeta desapareça se utilizarem todo o seu armamento num determinado tempo ou de modo concomitante, são incapazes de liquidar num tempo mais veloz um adversário que nem é visível. A segunda lição é o quanto a ciência colaborativa e o trabalho cooperado são decisivos. De fato, não haveria como diminuir o horror produzido à nossa volta não fosse a força que a cooperação oferece. Se cada local buscasse achar a sua saída exclusiva, individual e localizada, não se produziria o resultado inédito que se conseguiu em ciência até agora. Terceira lição: havia muitas coisas que estavam na penumbra. Não estávamos vendo o quanto havia de sofrimento cotidiano para muitas pessoas que, independentemente da pandemia, já tinham suas dores, suas feridas, em relação à condição de vida. Veja o acesso à tecnologia, por exemplo. Quantos alunos estão tendo dificuldades com o ensino remoto por não disporem de aparato tecnológico. Há uma ausência brutal de condições de existência de vários tipos que a pandemia acabou trazendo à tona.

EM 2020, O SENHOR LANÇOU O LIVRO FELICIDADE: MODOS DE USAR JUNTO A LUÍS FELIPE PONDÉ E LEANDRO KARNAL. HOJE É MAIS DIFÍCIL SER FELIZ?

A felicidade é uma circunstância eventual. Não é uma presença contínua. Ela não é um evento futuro. Quem diz "um dia eu vou ser feliz" terá uma grande chance de não sê-lo, porque fica aguardando, tal como em Esperando Godot, alguém que não virá e não chega. Uma pessoa que, no momento como este, estiver o tempo todo feliz, não é feliz; ela é tonta. Está alienada em relação ao que a circunda. Mas uma pessoa que for infeliz o tempo todo está perdendo ocasiões em que a vida dela poderia vibrar. Não dá para ser feliz o tempo todo, mas não dá também para ter a escolha da amargura e da melancolia. Mesmo que se tenha muito mais incômodos do que sofrimento, como pode ser o caso atual com as restrições de circulação e de convivência social.

QUE IMPACTO A SOCIEDADE PODE TER DIANTE DE LIDERANÇAS QUE INCITAM O NEGACIONISMO, FAZEM FALAS ANTICIÊNCIA E DÃO CORDA PARA MOVIMENTOS CONSPIRATÓRIOS? É UMA PERGUNTA PARA ALÉM DO IMPACTO INICIAL ÓBVIO DE TER GENTE QUE ENTRA NA ONDA SE RECUSANDO A SE VACINAR, POR EXEMPLO: PODEMOS COLHER ALGO A LONGO PRAZO, UMA SOCIEDADE PARANOICA OU ALGO DO TIPO?

Aderir ao que ameaça a vida das comunidades humanas é grave. Mais ainda quando vem daqueles que precisam exercer a liderança. O fato de haver várias nações com líderes que não têm preparo para fazê-lo tornou muito mais expressivo este momento ruim. Por outro lado, também serve como alerta para que se entenda que o negacionismo tem de ser levado a sério. Não pode ser lidado de modo folclórico. E a maneira de enfrentá-lo é com provas, com o concreto. E com a responsabilização. Isso é, pessoas que, por conta de uma atitude despreparada, fizeram com que as sociedades com as quais elas têm responsabilidades públicas ficassem desprotegidas, não podem ficar impunes em relação ao que fizeram. Falo de várias lideranças mundiais que desqualificaram a pandemia. 

O Brasil, especificamente, terá de sair deste momento com uma noção mais nítida de que a democracia tem alguns mecanismos de proteção que ajudam bastante. Bom, mas nenhum de nós que em 2018 depositou o voto na urna imaginaria que uma pandemia poderia ocorrer. A gente não imaginava, mas tínhamos de levar em conta que, quando escolhemos uma liderança, esta terá tarefas e responsabilidades. A longo prazo, não sei se ficaremos paranoicos, mas mais atentos e atentas nós precisamos ficar. Afinal, como dizem alguns, "confie em Deus, mas amarre bem os seus cavalos". Porque, de repente, alguma coisa pode vir pela frente.

ALINE CUSTÓDIO

20 DE FEVEREIRO DE 2021
LYA LUFT

O terrível e o sublime

Que somos animais predadores com vernizinho de civilidade, ou de humanidade se quiserem, isso me parece óbvio. Basta soltar as amarras num impulso de raiva, num momento de ódio, num fanatismo qualquer, e lá vamos nós, nada bonzinhos, matando, esquartejando, estuprando, aniquilando com mísseis ou espalhando morte e tripas com algum homem-bomba. Lá vamos nós treinar menininhos para matar com fuzis maiores do que eles. Lá vamos nós queimar prisioneiros vivos dentro de jaulas aos olhos de uma multidão.

Onde, quando ouvi ou li coisas parecidas? Foi no Holocausto? Está sendo em tantos holocaustos atuais? Foi Nero, que mandou matar a mãe, assassinou com pontapés na barriga sua mulher grávida, mandava empalar cristãos cobertos de óleo em postes para queimarem iluminando seus jardins? Nero, incompreensivelmente discípulo do meu amado filósofo Sêneca, cujos pensamentos sábios, harmoniosos, nobres e tranquilizadores leio e releio desde adolescente? Comentei com um de meus filhos, quando falávamos mais uma vez sobre a violência no Brasil, e também aqui, que, lendo um bocado de História, até acho que melhoramos muito. Não havia imprensa, não havia organizações, não havia democracia que botasse limite na ferocidade humana.

Mas hoje, mesmo tendo melhorado em relação às barbáries passadas, aqui nas nossas ruas não temos sossego. A cada dia, alguém que conheço ou que é conhecido de algum amigo é assaltado, e tudo termina com o suspiro de alívio: "Ainda bem que só levaram minha carteira, meu carro, não minha vida, nem minha mulher ou meus filhos. Tivemos sorte".

Que vida é essa, que pensamento funesto? Terrível atestado da nossa vergonha e conformidade, e da incompetência de quem deveria administrar o país. O crime começa a compensar. O criminoso nos controla. Saímos pouco à noite, e com receio. Não paramos o carro nos sinais vermelhos altas horas, o que aliás nos foi há tempos sugerido por uma autoridade de segurança, se não me engano. Em cidades como Rio, e lugares do Norte e Nordeste, está vivo o espírito dos jagunços, tiroteios, mortes, roubos de grandes quantias, bancos arrombados, cofres explodidos. Criminosos fugidos, às vezes mortos eles e os policiais. Apesar da pandemia assassina, essa loucura prossegue.

Meus filhos brincavam nos terrenos baldios perto de casa, há algumas décadas, e ninguém se preocupava com a possibilidade de tragédias hoje banais. Ao escurecer, a gente chegava na esquina, chamava, "venham tomar banho e jantar!". E vinham, suados, cansados e felizes, os pais de nossos netos, que já não andam sozinhos nem até a escola. Sei que é ingenuidade querer de volta aqueles tempos, mas podíamos estar mais civilizados.

O consolo é que essa humanidade sedenta de sangue também produz milagres como as obras de arte e seus autores. Van Gogh, Monet, Mozart e Bach, Shakespeare e Pessoa, os sublimes: os artistas. Mas também os mais cotidianos gestos dos jovens alegres e saudáveis, das crianças carinhosas, dos pais maravilhados, tudo o que nos faz acreditar que não produzimos só barbárie e repulsa, mas claridade, beleza, e - apesar de tudo - esperança. Muito necessária nestes tempos da Peste do século. Que nos assusta, nos intimida, e nem sempre nos faz escolher a melhor opção, além de cuidados: Vacina.

LYA LUFT